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Chanacomchana 10: resgate e edição comentada

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024 2 comentários

CCC 10jun., set. 1986 © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho


Em dezembro de 1982, era lançado o primeiro número do boletim Chanacomchana (ver resgate do CCC 1 aqui, CCC2 aqui, CCC 3 aqui, CCC 4 aqui, CCC 5 aqui, CCC6 aqui, CCC 7 aqui, CCC 8 aqui, CCC 9 aqui), seguido de outros 11 números. Neste artigo, abordo o ChanacomChana 10, não sem antes falar do contexto histórico e político de onde o periódico emerge, fundamental para entender sua produção e conteúdo (ver mais informações (ver mais informações em Memória Lesbiana: 41 anos de ChanacomChana  aqui).

Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).

Na prática, os grupos daquele incipiente movimento se preocupavam com a não reprodução da política tradicional, suas hierarquias, disputas de poder, discursos da boca para fora, e tentavam (com pouco sucesso) não reproduzir suas mazelas. Nesse sentido também, pregavam a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, uma das bandeiras de maior bom senso daquela época. O GALF era tributário dessas ideias (vide o texto Autonomia), via esquerda libertária, das ideias do feminismo de segunda onda, com seu questionamento dos papéis sexuais, e das correntes do separatismo lésbico do também incipiente movimento lésbico internacional.

A Revolução DIY
Todo esse amálgama de ideias e inspirações aparecem nas páginas do Chanacomchana do seu período inicial e nele permanecem no período posterior, de 1985 em diante, apesar do afã revolucionário contracultural do MHB ir sendo paulatinamente substituído pelo reformismo pragmático de grupos como o GGB e o Triângulo Rosa.

Também do ponto de vista gráfico, o CCC vai seguir a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo) matriz, entre outras produções, dos fanzines produzidos artesanalmente, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Nas vendas, o corpo a corpo junto ao público-alvo ou, posteriormente, via correios através do sistema de associação.

Nem o GALF nem o ChanacomChana refletem qualquer luta contra a ditadura militar mesmo porque seu contexto histórico é o do governo da abertura do general Figueiredo, da redemocratização, que se iniciara com a revogação do AI-5 em 13/10/78, ainda sob o governo Geisel. De fato, o governo Figueiredo foi uma democratura, uma convivência de elementos ainda autoritários do regime em decomposição com aumento crescente de características democráticas caminhando a passos largos para o restabelecimento do poder civil. Embora a censura, só revogada com a Constituição de 1988, ainda existisse no período, ela não vitimou o GALF ou o ChanacomChana em momento algum. Tal fato pode ser constatado facilmente pela simples leitura dos Chanas onde não se encontram sequer informes referentes ao regime militar, muito menos registro de qualquer arbitrariedade que tenhamos sofrido dos militares. O GALF e suas publicações foram, de fato, insurgências contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória praticamente onipresente do período.

Chanacomchana nº 10 – Edição comentada

 Sumário

  Editorial
  O Mito da opção sexual e a organização lésbica - p.1  
  Dicas de leitura - p. 5
  Poesia - p. 7
  Homossexualidade nas leis - p. 8
  Depoimento: Patrão a Ferro's - p. 15
  Em Movimento - p. 16
  Conferência Lésbica em Genebra - p. 20
  Entrevista: Assumindo - p. 28
  Troca-Cartas - p. 31


Editorial (Míriam Martinho)
Mulheres Comoiurã executanto danças preliminares para a
festa da Yamarikumá (Amazona) no Parque Nacional Indígena do Alto Xingú
Neste décimo número do ChanacomChana, eu começo o boletim com o sumário do mesmo e uma apresentação de seus objetivos, um processo que repetirei em seus outros dois últimos números e também no boletim e revista Um Outro Olhar (nesta com editorais mais elaborados).

Na apresentação de seus objetivos, informo que o boletim procurava focar diferentes aspectos das vivências lésbicas bem como temas referentes à política dos movimentos sociais autônomos. E também quebrar o muro de preconceitos que envolvia e isolava as mulheres lésbicas, criando uma rede contatos, informações e apoio tanto no Brasil quanto no exterior (já prevendo a rede Um Outro Olhar).

O Mito da opção sexual e a organização lésbica, p. 1 (Míriam Martinho)

Montagem sobre poster de O Vento Levou,
com base em postcard lésbico dos anos 80
Neste texto, procurei apontar a despolitização que o termo "opção sexual", em voga na classe média da época, aparentemente não-discriminatório, trazia para a organização lésbica. Atrás da fachada liberal que postulava uma igualdade dos desejos (tudo bem você se relacionar com mulheres ou homens), o termo implicava, de um lado, uma suposta liberdade de escolha que desconsiderava as pressões e coações sociais para a heterossexualidade e, de outro, uma redução da lesbianidade ao terreno puramente sexual, privado e de resolução individual.

Lembrava que não era tanto o sexo entre mulheres que provocava reação negativa da sociedade, mas sim a vivência lésbica autocentrada. Desde que dentro de um contexto onde pudessem servir aos homens ou não ameaçar seu poder, as relações entre mulheres eram consideradas inclusive desejáveis. Por exemplo, até hoje uma das categorias preferidas dos homens que assistem pornografia é a dos "vídeos lésbicos" onde atrizes fazem sexo lésbico fake.

Na época desse texto também, quando muitas lésbicas ainda levavam vida dupla - amantes de mulheres, mas casadas com homens - lembrei que muitos desses relacionamentos eram de conhecimento do marido que até os via como afrodisíacos. O problema todo começava quando essas relações deixavam o terreno puramente sexual, e a casada decidia se separar para ir viver com outra mulher. Principalmente se tinha filhos, ocorriam sérios problemas de custódia, não raro com a mulher perdendo a guarda das crianças.

Recorri a historiadora americana Lillian Faderman que pesquisou as relações entre mulheres, nos EUA e na Inglaterra, do século XVI até a década de 80, do século passado, e que afirmava que o lesbianismo só passou a ser taxado de anormalidade e condenado com veemência a partir de meados do século XIX, precisamente quando as mulheres começaram a ter acesso ao mercado de trabalho, a poder ter alguma independência econômica que as possibilitasse se sustentar sozinhas. Segundo essa historiadora, antes desse período, as relações entre mulheres, as chamadas amizades românticas, eram toleradas, com beijos e carícias inclusive, embora não se cogitasse sexo genital. Somente as mulheres que se travestiam eram levadas a tribunais e até condenadas à morte por supostamente quererem tomar o lugar dos homens. As demais viviam em completa situação de dependência da família, dos homens, não sendo necessárias outras estruturas de controle.

Com o advento da emancipação feminina que se inicia em meados do século XIX e avança pelo século XX, as relações entre mulheres deixam de ser toleradas e as envolvidas neste tipo de amizades românticas começam a ser encaradas como "invertidas, anormais, doentias, etc...", caracterizando um suposto terceiro sexo. Era preciso separar essas mulheres das ditas normais, já que agora elas estavam partindo para uma vida fora da estrutura do casamento, deixando de servir aos homens em qualquer sentido fosse afetivo, sexual ou reprodutivo. Tal independência era difícil de tolerar, e as hereges deveriam pagar pela ousadia com o alto preço da marginalização e da rejeição sociais.

Uma Opção sem muita escolha

Finalizo o texto apontando que, embora a ideologia da "opção sexual" tivesse representado, na última década, um avanço se comparada com a visão de que o lesbianismo era uma doença e acabou, tornava-se importante perceber suas armadilhas. Embora parecesse traduzir uma certa "aceitação da homossexualidade", tratava-se mais de uma tolerância ao sexo entre mulheres no privado, não de uma aceitação social plena. Argumentava que o termo escamoteava os aspectos sociais do preconceito, levando a desmobilização política, já que, como questão particular, privada, a lesbianidade não teria porque ser politizada. Tal posição fingia desconhecer que poder ser homossexual (gay ou lésbica) fora das quatro paredes de um quarto, representava, em geral, possível expulsão da família, perda de emprego, perda da custódia dos filhos (no caso das lésbicas em particular) e isolamento social, já que, ao contrário dos heterossexuais, gays e lésbicas não tinham instituições de apoio. E que o estresse adicional de levar uma vida dupla, por questões de sobrevivência, causava danos emocionais significativos às lésbicas.

Concluía dizendo que, considerando o descrito, preferia falar em vivência lésbica do que em "opção sexual" já que vivência dava uma visão mais global de nossas pessoas, incluindo não só nossa sexualidade como também nossas experiências sociais no trabalho, na família, com amigos e a sociedade em geral. E que exatamente para discutir essas vivências e encaminhar reivindicações de direitos era necessária a organização das lésbicas em grupos. Elencava então as formas mais utilizadas  de organização conhecidas desde a leitura de textos sobre a vivência lésbica e a produção de publicações como o resultado dessas reflexões até a organização de bibliotecas e grupos de pressão junto a parlamentares para passar leis antidiscriminatórias.
O termo "opção sexual" acabou sendo substituído por "orientação sexual" que, ao menos, não escamoteava a discriminação sofrida por gays e lésbicas dando a entender que eram livres de coação e de repressão as escolhas de parceiras e parceiros. Também acrescida do adjetivo livre, como em livre orientação sexual, apontava para o respeito imprescindível a todas as variantes da sexualidade humana. Eu, contudo, continuei usando bastante a expressão vivências lésbicas por considerá-la mais abrangente.

Dicas de leitura, p. 5

Amostra dessa seção cada vez mais ampla no CCC

Poesia - p. 7

Poesia era um espaço que eu definia como "para as lésbicas poderem falar de como era bonito, sensual, gostoso e ótimo amar outra mulher." Nesse sentido, sempre busquei trazer poesias de teor romântico e erótico de autoras conhecidas e desconhecidas que apreciavam escrever poesias, mais ou menos elaboradas, atividade pela qual lésbicas sempre tiveram predileção. (Míriam)

Neste número 10, escolhi quatro poesias, uma de Vânia Garcia, duas de Marina e uma de Jurema Barreto, as quatro tematizando os encontros e desencontros amorosos e eróticos.

Em Apesar dos Pesares, Vânia Garcia fala sobre amainar a dor da separação através de um sono profundo que, no entanto, surge como sono inconformado, sono da perda, do tudo acabado. Um sono que não lhe valia porque não a fazia esquecer a amada, como deveria, o que tornaria tudo mais fácil. Um sono no qual insistia, porém, em abandono, porque cansara de brigar a briga de quem sai perdendo e, apesar de tudo, continua querendo o amor que se foi.

Em Cigana, Marina também reclama da cigana que só por sorte lhe fazia companhia, mas a quem promete abandonar pela moça do lado que se apresenta como um ramo mais fértil de uma geografia que num sonho adivinhava. Um caminho por onde seguiria para não mais voltar às portas tortas e cheias de melancolia da amada errante.

Em Possibilidades, Marina tematiza, ao contrário de em Cigana, o encontro com uma menina corajosa, de olhar às vezes distante, às vezes fatal, com a coragem delicada de viver o tempo dos parques, das palmas, dos tambores. E fala do dardo do amor que a atingiu (ou ao eu lírico) no ombro e a deixou sangrando feliz em uma tarde de provável sábado.

Em Face a Face, Jurema Barreto tematiza um encontro erótico que afrouxa sua coleira, desata o nó do desejo. A faz festejar a mão da amada que alisa seus dedos que crescem como raízes no fundo da terra escura. Louca, na madruga promete calar seu grito trancando-o no armário do banheiro com o perfume predileto da amada e  amor indiscreto da poetisa.

Homossexualidade nas leis - p. 8
 (Rosely Roth)

Em Homossexualidade nas leis, Rosely procurou, nas leis então vigentes, se havia algo explícito contra a homossexualidade ou não explícito que pudesse ser utilizado contra gays e lésbicas. Não encontrou nenhum artigo na Constituição, no Direito Penal ou no Direito Civil que se referisse diretamente à homossexualidade feminina ou masculina, seja criminalizando-a ou protegendo-a.

No que não era explícito, encontrou o atentado ao pudor e suas variantes e o ultraje público ao pudor como possíveis instrumentos legais a serem usados contra gays e lésbicas. Vale lembrar que o estupro na época era caracterizado como estritamente a relação não-consensual pênis-vagina chamada de "conjunção carnal". Todos os outros atos sexuais, inclusive os héteros, caíam na definição de atos libidinosos. A homossexualidade em geral entrava nessa categoria de atos libidinosos. Eram eles:

👉O atentado violento ao pudor, quando ocorriam atos não consensuais entre os envolvidos, sem a chamada "conjunção carnal" (penetração pênis-vagina);

👉 O atentado ao pudor mediante fraude, quando se induzia "mulher honesta" a participar de atos libidinosos distintos da "conjunção carnal".

👉O crime de rapto poderia ser aplicado em tese às lésbicas, pois se definia como "raptar mulher honesta mediante violência, grave ameaça, para fins libidinosos". Sendo a mulher maior de 14 e menor de 21 anos, mesmo consentindo em ser levada, sua parceira seria considerada raptora.


👉O ultraje público ao pudor, praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público. Considerando que qualquer expressão da homossexualidade publicamente, andar de mãos dadas, dar beijo na boca, era considerada obscena, essa lei era a de mais fácil aplicação contra gays e lésbicas.

Propostas para a constituinte

Dando continuidade a sua preocupação com a constituinte, Rosely lembrava da importância de se votar em candidatos a deputados federais e senadores que pudessem vir a encampar as demandas dos grupos GGB, Triângulo Rosa e Grupo Ação Lésbica-Feminista de inserir a frase "contra a discriminação por preferência ou orientação sexual" na nova constituição. Aqui se nota que ainda havia a discussão sobre os termos opção, preferência ou orientação sexual, acabando esta última por se firmar e as demais entrarem em desuso.

Rosely acreditava que a partir da inserção dessa expressão na nova constituição se abriria a possibilidade de aprovação de outros artigos análogos nos códigos penal e civil que visassem proteger os direitos de livre expressão de gays e lésbicas em qualquer lugar (trabalho, família, escolas, ruas, igrejas, bares e boates). Termina seu texto lembrando o histórico de apoio da vereadora Irede Cardoso à causa homossexual (e ao GALF em particular) como alguém que apoiaria sem dúvida a inserção do dispostivo contra a homofobia na nova constituição. Reproduz o texto de um panfleto da vereadora, onde ela dizia: 

Vale lembrar que, ao contrário do Brasil, a homossexualidade masculina, com base nas leis de sodomia, só foi descriminalizada, por exemplo, na Inglaterra e Wales, em 1967, e nos EUA, sobretudo a partir de 1971 em 19 estados americanos. Antes destes, só Illinois em 1961. Nos EUA, também dava cadeia usar roupas atribuídas ao sexo oposto, crossdressing, com casos de detenção sendo registradas até 1974.

Destaco um comentário de Rosely que até hoje os brasileiros em geral não conseguiram absorver. Muitos organismos que monitoram as democracias pelo mundo consideram o Brasil uma democracia falha ou meramente eleitoral. Considerando a última eleição, eu diria que nem isso. 

 
Depoimento: Patrão a Ferro's - p. 15 (Angela Costa)


O tratamento do bar das lésbicas, dado às lésbicas, sempre foi tumultuado para dizer o mínimo. Haja vista a manifestação que o GALF teve que fazer para simplesmente poder voltar a vender o boletim Chanacomchana naquele nada sacrossanto recinto (Orgulho Lésbico: o happening político do Ferro's Bar). Não era incomum rolar um clima de faroeste no bar envolvendo inclusive os donos e os empregados.  


Em Patrão a Ferro's, Angela Costa relata um desses episódios a la faroeste, no Ferro's, que a envolveu mais uma amiga negra e o dono do bar e equipe. Segundo a depoente, ela foi comer e beber na madrugada após horas de trabalho (o Ferro's fechava tarde realmente). Quando estava para terminar sua última taça de vinho, o garçom veio pedir que ela e a amiga se retirassem porque o bar iria fechar. Ela concordou, mas não teve tempo de terminar de beber o vinho porque o dono do Ferro's, Antonio Manoel, segundo seu relato, apareceu raivoso, provavelmente porque esperava mais agilidade na deglutição do vinho, jogando-lhe a taça no chão. Na sequência, houve troca de desaforos seguida de socos e pontapés onde Angela e a amiga levaram a pior.

Fusca da polícia apelidado de "baratinha"

Depois do barraco, Angela vai até o telefone da esquina para ligar para o 4 distrito na tentativa de lavrar um flagrante. A polícia aparece e a leva com a amiga, numa "baratinha" (ver acima), para a delegacia, embora sob suspeita de que as vítimas fossem de fato os donos do Ferro's,  enquanto os próprios seguiam em carro particular. Na delegacia, conta várias vezes o ocorrido para o delegado, depois vai de táxi até o Parque D. Pedro (centro de São Paulo)  fazer o corpo de delito no IML. Angela termina o relato dizendo:
Aberto o inquérito, transfira tudo para a Delegacia da Mulher, aos cuidados da Rose e acredite na Justiça Divina, que essa não falha nunca.
Patrão a Ferro's é uma crônica "do território livre das noites de boemia" de Sampa, que, apesar de relatar uma agressão, mantém uma linguagem coloquial, o tom irônico e um humor crítico e sarcástico. Coisas só dos tempos do Ferro's Bar?

Em Movimento, p. 16 (Míriam Martinho)

Em Movimento eram notas que eu fazia com base em informações advindas de parlamentares, grupos nacionais e internacionais, notícias da imprensa (mídia tradicional e específica) sempre girando em torno da questão homossexual (e especificamente lésbica) e das mulheres.

Contra a discriminação

A muito ativa vereadora Irede Cardoso aprovou projeto que determinava a cassação dos alvarás de funcionamento de estabelecimentos comerciais que viessem a praticar discriminações contrariando o princípio a isonomia, contra o direito de todos os cidadãos de serem tratados de forma igual perante a lei sem discriminação de qualquer natureza. Clique aqui para ver o projeto.

Delegacias da Mulher

A primeira delegacia da mulher foi lançada em 1985 em São Paulo. Em 1986, já havia várias na cidade. Eu informava que então já era possível em caso de violência física ou moral dar queixa nas Delegacias de Defesa da Mulher, onde o atendimento era feito só por mulheres especializadas em casos de violência à mulher para que fossem melhor atendidos. Os casos de mal atendimento em delegacias comuns foi uma das razões da criação das delegacias da mulher. Clique aqui para ver um mapa das delegacias atuais.

Dossiê: A Imprensa Lésbica

Capas dos boletins do Amazones d'hier,
lesbiennes d'aujourd'hui
Nos anos 80, começaram a aparecer publicações lésbicas em número suficiente para que as integrantes do grupo canadense "Amazonas de Ontem, Lésbicas de Hoje" (Amazones d'hier, lesbiennes d'aujourd'hui) tentassem organizar um dossiê a respeito numa edição especial sobre o assunto. Elas pediam que as produtoras das publicações e mesmo suas leitoras respondessem as seguintes questões: 


Homossexualidade na TV: Desrespeito ou tolerância (as duas faces do preconceito)

Apresentador Blota Júnior
Nessa longa nota, resgato os programas de TV que falaram de homossexualidade, numa perspectiva ou sensacionalista ou de tolerância diante de gays e lésbicas, no primeiro semestre de 1986.

O primeiro programa foi o do Blota Júnior, apresentador famoso desde os anos 60, que, na TV Bandeirantes, em março, resolveu discutir o tema "a homossexualidade e a constituinte", tendo convidado, para o debate, Rosely Roth, pelo GALF, e o Paulo Bonfim, pelo GAPA, mas também o radialista sensacionalista e homofóbico Afanásio Jazadi (depois também deputado estadual). Embora Rosely e Bonfim tentassem levar a discussão a sério, Jazadi transformou o programa no seu mundo cão costumeiro, desrespeitando os participantes e reforçando estereótipos onde lésbicas virariam homens por se relacionar com mulheres, e gays, mulheres, por se relacionarem com homens. O programa também não permitiu a Rosely mostrar o Chanacomchana nem divulgar a caixa postal do GALF.

No programa da Hebe Camargo, apresentado no dia 26/04/1986, o segundo da apresentadora do qual Rosely participou,  desta feita também com o pintor Darci Penteado, além do psicólogo Ronaldo da Costa, entre outros, predominou o enfoque da tolerância, onde o amor desculpava a homossexualidade entre os mais progressistas. Embora não conste da nota, Rosely deu uma bela cortada em Penteado que começou com a lenga-lenga da não rotulação das pessoas como homossexuais ou héteros, etc,, porque isso restringiria a fluidez da sexualidade humana, em plena TV que mal começava a falar da homossexualidade. 

Cabeleireiro Rudi
Apesar de criticar o enfoque da tolerância do programa da Hebe, pois de fato a homossexualidade deveria ser encarada como algo apenas natural, considerei que, dada à homofobia reinante, ainda era melhor do que nada. Apontei como maiores senões do programa, o fato de terem convidado o cabeleireiro Rudi e sua mãe e só terem deixado que falasse ao final do programa (ele deixou o programa dizendo uns desaforos) e o fato de terem tentando impedir Rosely de divulgar a caixa postal do GALF, mesmo depois das 23:00, quando a censura não teria como chiar.

Nova York aprova lei antidiscriminatória

Em 20 de março de 1986, a cidade de Nova York aprovava projeto de lei contra a discriminação a gays e lésbicas no aluguel de moradias, acomodações públicas e emprego. A chegada da AIDS, apelidada a princípio de câncer gay, peste gay, fez aumentar o preconceito e a discriminação em particular contra os homens homossexuais, e a lei em questão, Intro. 2, veio para possibilitar recurso rápido junto à municipalidade a fim de combater casos de despejo e demissão motivados por heterossexismo.

A nada santa madre Igreja obviamente protestou contra a lei, e eu aproveitei para lembrar da hipocrisia dessa instituição que, embora fale de fraternidade, sempre marginalizou pessoas homossexuais, e, apesar de se dizer defensora da vida, sempre ceifou a de muitas mulheres com sua oposição à descriminação do aborto. Lembrei ainda que a Igreja colaborava com a censura, já que, por sua iniciativa, o presidente José Sarney, havia conseguido censurar o filme Ave, Maria do cineasta franco-suíço Jean Luc Godard.

Grupos Lésbicos e Homossexuais do Brasil

Interessante observar, nessa nota, como em 1986, os grupos de gays e lésbicas já podiam ser contados nos dedos de uma mão. No caso dos grupos lésbicos, apesar de algumas tentativas, nenhum conseguiu vingar, com exceção do GALF. Os dois grupos gaúchos abaixo foram efêmeros.

Terrorismo no final da conferência lésbica

A 8ª Conferência do Serviço de Informação Lésbica Internacional, ocorrida dos dias 28 a 31 de março de 1986, na cidade de Genebra, na Suíça, transcorreu bem, mas por causa de integrantes do grupo antinuclear inglês de Greenham Common terminou mal. As mulheres desse grupo vandalizaram os abrigos antiatômicos, como forma de protesto contra a corrida nuclear (sic), que abrigaram boa parte das integrantes da conferência, após o final da mesma, criando sérios problemas financeiros e políticos para as organizadoras do evento. 

Estas enviaram uma circular registrando que a atitude irresponsável dessas figuras (do tipo que hoje dá como mato) prejudicava as organizadoras que se comprometeram sob contrato a entregar os abrigos em perfeita ordem. Além de enfatizar que ninguém mais em Genebra lhes alugaria ou cederia espaço para conferências lésbicas, as organizadores salientaram que teriam que pagar cerca de R$142.000,00 reais pelos danos das vândalas, mais da metade do dinheiro previsto para a próxima conferência. E terminavam conclamando a todos os grupos que rejeitassem a participação dessas mulheres nos movimentos locais de lésbicas porque elas eram perigosas para o movimento lésbico e não se sabia a que interesses serviam.

Conferência Lésbica em Genebra p. 20 (Míriam Martinho)


A 8ª Conferência do Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS em inglês) ocorrida em março de 1986 (28-31), na Universidade de Genebra, foi, sem dúvida, minha melhor experiência como ativista. Cerca de 600 lésbicas de várias partes do mundo reunidas durante quatro dias para discutir suas questões em comum e suas diferenças. Sem homens, gays ou não, travestis, mulheres heterossexuais, talvez nem bissexuais, idiotas de partido, parecia o paraíso na terra. Apesar dos perrengues de costume em eventos desse porte, como quando uma moça branca que se levantou para falar, na plenária de abertura, quando a mesa organizadora perguntou se havia alguém da África do Sul presente, o que provocou a ira das mulheres negras (o apartheid só terminaria em 1991), o encontro contou com bem mais momentos positivos do que negativos e dele brotaram muitas iniciativas interessantes, como redes regionais de lésbicas e encontros específicos. 

As organizadoras conseguiram bancar passagens e a estadia de mulheres não-europeias, latino-americanas (7), asiáticas (7), negras (7 de diferentes países), uma iugoslava (a Iugoslávia se desintegraria em 1992) e duas integrantes de um grupo de mulheres com limitações físicas. Fora as reuniões oficiais que constavam da agenda do encontro, ainda houve reuniões informais paralelas e boa diversão.

Tive um choque cultural com a cidade de Genebra  e seus prédios baixinhos, ruas superlimpas, habitantes civilizados, ausência de crianças abandonadas ou não e abundância de cachorros, tão diferente de São Paulo, com seus arranha-céus, trânsito caótico, gente sempre apressada e pobreza evidente em muitos lugares. Até o dia do início da conferência, eu e Denise Bretas, associada ao GALF à época, que chegáramos no dia 24, já havíamos entrado em contato com mulheres de Portugal, Iugoslávia, República Dominicana, Peru, Costa Rica e Chile, fora algumas asiáticas. Ajudamos inclusive as organizadoras na infraestrutura do encontro, com a produção da alimentação, sob uma temperatura de 5 graus com neve caindo (pra minha alegria) que procurávamos minimizar com vinhos e chocolates suíços. 

Durante a conferência, tivemos reuniões com os grupos latino-americanos do período, representados por mulheres do Brasil, Chile, Costa Rica, México, República Dominicana e Peru, de onde se tirou a ideia de uma rede lésbica latino-americana e do Primeiro Encontro Lésbico Feminista Latino Americano e do Caribe em agosto de 1987, entre outros pontos que elenco ao final do artigo.

Tivemos também uma reunião emocionante com as lésbicas asiáticas, do Japão, Índia, Bangladesh, Tailândia e China, falando de suas lutas contra a obrigação do casamento em suas culturas e por uma sexualidade liberta. A emoção com que falaram dos problemas de isolamento e solidão mas também de seus primeiros amores, primeiras transas e da alegria de estarem ali juntas pela primeira vez,  foi contagiante. À noite, também apresentaram slides sobre as lésbicas na Tailândia e no Japão e sobre a presença das lésbicas na história da China e da Índia.
Emocionante também foi a passeata pelas ruas da tranquila cidade de Genebra com aquele monte de lésbicas que saiu da universidade até o monumento nacional (1857) formado pelas estátuas da deusa Helvétia e Geneva. Nele, lésbicas da conferência colocaram as faixas "Pelo direito ao asilo político para lésbicas de todos os países" e "Primeiro monumento ao lesbianismo internacional".

As deusas representam a integração de Genebra à Confederação Suíça, com a deusa Helvetia, representando a Suíça, abraçando a deusa Geneva para simbolizar a amizade entre elas.

Os anos 80 e 90 representaram as décadas de ouro para a mobilização lésbica no mundo. Não só em termos de visibilidade pessoal e política (a década de 90 é a da saída do armário para muitas) como na mídia que trouxe para séries e filmes as relações lésbicas não mais com o enfoque trágico do passado. 

Nos anos 2000, porém, como relatei no texto Orgulho Lésbico: o happening político do Ferro's Bar (edição 2022),  "todavia, toda essa efervescência lésbica começará a declinar de fins da década de 2000 em diante. Já em novembro de 2006, numa reunião internacional de grupos de direitos humanos na cidade de Yogyakarta (Joguejacarta), na Indonésia, criam-se os chamados Princípios de Yogyakarta, onde teóricos da identidade de gênero conseguiram introduzir não só o conceito de identidade de gênero como também redefinir orientação sexual da seguinte maneira:

Compreendemos orientação sexual como uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas."

A substituição de sexo por gênero abriu o caminho para que homens héteros que se dizem mulheres, porque reproduzem o estereótipo de gênero feminino, pudessem passar também a se identificar como lésbicas e demandar os espaços e a cama das mulheres homossexuais. Essa bizarria pós-moderna pegou carona no antigo movimento pelos direitos de gays e lésbicas para enfiar suas demandas fetichistas inclusive nas leis. O resultado é que as lésbicas foram perdendo seus direitos e espaços a ponto de hoje,

como no tuíte ao lado (ou xuíte), um grupo lésbico australiano ter tido seu direito de se reunir publicamente sem a presença de homens proibido por uma comissão de direitos humanos (sic) - Comissão de direitos humanos australiana - AHRC. Tal atitude fere inclusive um dos princípios básicos da democracia que é o direito de livre associação e reunião. Ninguém tem a obrigação de se reunir com quem não quer. 

Entrevista : Assumindo, p. 28 (Luiza Granado)

Com esta entrevista, Luiza Granado, em suas palavras, procurou através de 4 depoimentos feitos a partir de questionários enviados às associadas do GALF, uma reavaliação de como lésbicas seriam entendidas pela sociedade ou simplesmente uma constatação de que o sonho sáfico poderia ser realizado. De fato, esta entrevista resume a temática do se assumir já abordada anteriormente em outras entrevistas mais específicas sobre lésbicas e trabalho, lésbicas e maternidade, etc.

As perguntas giraram em torno da situação que abriu a consciência das entrevistadas para sua sexualidade, a época de suas vidas em que se deu essa conscientização, os problemas derivados do se assumir, as dores e as delícias de se saber lésbica, a resposta que deram a sua condição recém-encontrada, o que a descoberta da própria sexualidade representou para elas, os aspectos positivos e negativos dessa descoberta e o que pensavam na época da entrevista sobre todo o processo de se assumir. 

A entrevistada Rita, que fora casada por 9 anos, afirmou que se assumiu aos 30 (há dois anos da entrevista), embora tivesse sempre sentido atração por mulheres de forma difusa. Foi só, porém, quando se apaixonou por uma mulher especial que o desejo veio a toda e lhe provocou muito conflito. Na época, era-lhe inconcebível que sentisse desejos sexuais por outra mulher. Não aceitava pensar em namorá-la. Mas o desejo superou o medo e bastou uma troca de revelações e o primeiro beijo para resolver todos os seus problemas de cabeça. Para ela,  assumir-se representou a liberdade de ser ela mesma, a consciência de sua liberdade íntima e individual. De negativo, apontou os novos problemas a serem enfrentados em relação à família e à sociedade.

A entrevistada Sandra afirmou que se dera conta de ser lésbica aos10 anos de idade quando fazia de tudo para estar perto de certas amigas, arrumando um jeito de criar situações mais íntimas, sentindo ciúmes das coleguinhas. Mas a consciência plena do desejo de amar o corpo de outra mulher se dera há apenas 4 anos da entrevista. E que fora uma época boa para essa descoberta porque estava com a cabeça adulta, madura e forte o suficiente para não se sentir diferente de outras pessoas. Por isso, não teve problemas a resolver devido a sua sexualidade. De negativo no processo de se assumir, citou a consciência do tempo perdido em entender que podia ser feliz sem ser pelas regras ditadas pelos outros. De positivo, citou a descoberta de que o fato de ser mulher não mais a obrigava a ser dependente do sexo masculino, que todos podiam encontrar o prazer e o ideal com quem quisessem. Para ela, depois de tudo, via sua relação como totalmente normal em relação a de tantas outras pessoas.

Fonte: Mirko Ilic, 2004. Ilustração
matéria sobre o casamento
igualitários na Village Voice,


A entrevistada Raquel disse que desde pequena e adolescente sempre tivera namoricos com colegas, mas sem se dar conta disso. A consciência de ser lésbica surgiu quando se apaixonou perdidamente pela professora de francês, mulher bem mais velha e vivida do que ela, quando fazia pré-universitário. Entretanto, teve conflitos para se assumir, acabando inclusive por casar com um "macho bem feminino" com quem esperava poder se relacionar intimamente. O casamento, contudo, não se consumou, pois eles desejavam coisas diferentes sexualmente, apesar de, através de sexo intercoxa, ter ficado grávida. O desastre do casamento fake, porém, serviu para que assumisse seu lesbianismo sem conflitos ou culpa, embora a descoberta tenha lhe causado prazer, o prazer de amar e ser amada, e dor, a dor de perde a pessoa amada. De positivo no processo de se assumir, apontou o forte questionamento que lhe desenvolveu o espírito crítico e, de negativo, a perda de tempo, o medo irracional, o isolamento, o conflito interno vividos por falta de um conhecimento mais sólido a respeito de suas necessidades e do direito que tinha de exigi-las para sua felicidade.

A entrevistada Sílvia descobriu sua atração por mulheres há seis anos da entrevista quando tinha 38 anos, desquitada, com dois filhos adolescentes, e em um segundo casamento também já findo. Apaixonou-se por uma colega de serviço, lésbica, uma pessoa que considerava inteligente  e cuja companhia a gratificava muito. Revelou também que essa colega a rejeitou quando tentou "aproximações", acabando por se afastar dela definitivamente. Quatro anos depois, teve outro caso que também não deu certo porque a parceira lhe pareceu muito insegura e possessiva. Para piorar, sua filha de 18 anos percebeu a natureza do relacionamento da mãe e fez pressão para a relação acabar. Após o término do caso, explicou à filha que a relação acabara por não lhe ser prazerosa. E a entrevistada disse que também sofreu com o próprio medo de que as pessoas soubessem e não aprovassem seu estilo de vida. Apesar das experiências negativas, contudo, Sílvia concluiu dizendo que se reconhecer lésbica lhe fizera bem,  pois o desejo e afeto por mulheres faziam parte de sua personalidade, mas estiveram por muito tempo reprimidos. Ter se conscientizado ampliara sua vida, fizera-lhe amadurecer bastante, permitira-lhe se compreender melhor e aos outros. 

Não fica claro, nessas entrevistas, se o se assumir era apenas o reconhecimento das entrevistadas de sua própria lesbianidade  ou se também se projetava publicamente.


Troca-cartas 
Para um bom papo, aquela transa, um grande amor

Neste troca-cartas, 24 mulheres buscaram trocar cartas com outras em SP e no Brasil e até no exterior. Foram 13 de São Paulo (capital e interior), 4 do RS, 2 da Bahia, e uma de dos seguintes estados:  MS (Campo Grande), RJ , DF (Brasília), MG (BH) e Iowa (EUA). 

A novidade dessa edição do TC foram os anúncios mais personalizados, com indicações de passatempos e o tipo de contato que as anunciantes queriam, se para compromisso, amizade, transa. 

Chanacomchana 8: resgate e edição comentada

segunda-feira, 25 de setembro de 2023 0 comentários




Em dezembro de 1982, era lançado o primeiro número do boletim Chanacomchana seguido de outros 11 números (ver resgate do CCC 1 aqui, CCC2 aqui, CCC 3 aqui, CCC 4 aqui, CCC 5 aqui, CCC6 aqui, CCC 7 aqui, CCC 8 aqui, CCC 9 aqui, CCC 10 aqui, CCC 11 aqui). Neste artigo, abordo o ChanacomChana 12, não sem antes falar do contexto histórico e político de onde o periódico emerge, fundamental para entender sua produção e conteúdo (ver mais informações em Memória Lesbiana: 41 anos de ChanacomChana  aqui).

Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).

Na prática, os grupos daquele incipiente movimento se preocupavam com a não reprodução da política tradicional, suas hierarquias, disputas de poder, discursos da boca para fora, e tentavam (com pouco sucesso) não reproduzir suas mazelas. Nesse sentido também, pregavam a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, uma das bandeiras de maior bom senso daquela época. O GALF era tributário dessas ideias (vide o texto Autonomia), via esquerda libertária, das ideias do feminismo de segunda onda, com seu questionamento dos papéis sexuais, e das correntes do separatismo lésbico do também incipiente movimento lésbico internacional.

A Revolução DIY
Todo esse amálgama de ideias e inspirações aparecem nas páginas do Chanacomchana do seu período inicial e nele permanecem no período posterior, de 1985 em diante, apesar do afã revolucionário contracultural do MHB ir sendo paulatinamente substituído pelo reformismo pragmático de grupos como o GGB e o Triângulo Rosa.

Também do ponto de vista gráfico, o CCC vai seguir a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo) matriz, entre outras produções, dos fanzines produzidos artesanalmente, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Nas vendas, o corpo a corpo junto ao público-alvo ou, posteriormente, via correios através do sistema de associação.

Nem o GALF nem o ChanacomChana refletem qualquer luta contra a ditadura militar mesmo porque seu contexto histórico é o do governo da abertura do general Figueiredo, da redemocratização, que se iniciara com a revogação do AI-5 em 13/10/78, ainda sob o governo Geisel. De fato, o governo Figueiredo foi uma democratura, uma convivência de elementos ainda autoritários do regime em decomposição com aumento crescente de características democráticas caminhando a passos largos para o restabelecimento do poder civil. Embora a censura, só revogada com a Constituição de 1988, ainda existisse no período, ela não vitimou o GALF ou o ChanacomChana em momento algum. Tal fato pode ser constatado facilmente pela simples leitura dos Chanas onde não se encontram sequer informes referentes ao regime militar, muito menos registro de qualquer arbitrariedade que tenhamos sofrido dos militares. O GALF e suas publicações foram, de fato, insurgências contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória praticamente onipresente do período.

Chanacomchana nº – Edição comentada

 Sumário

 GALF 6 Anos - p. 1
 Origem da Denominação Lésbica-feminista - p. 2
 O GALF e o feminismo lésbico - p. 3
 Objetivos e atividades do GALF - p.4
 Dicas de Leitura - p. 5
 Poesia - p. 6
 GALF na Hebe - p. 7-11
 Uma História de Heterror: Preconceito no CVV- p.12
 Ideias Particulares sobre Papeis Sexuais no Lesbianismo - p-14-15 
 Associe-se ao GALF - p. 15
 Informes - p. 16-18
 Lésbicas e Trabalho - p. 19-25
 Troca-cartas - p - 25

GALF: 6 anos - p. 1 (Míriam Martinho)

1985 - Um divisor de águas para o GALF e o Chana

Na resenha da edição 7 do Chana, salientei que o ano de 1985 foi um divisor de águas para o GALF e o Chana, iniciando um processo de afastamento gradual do movimento feminista (o texto Uma História de Heterror da edição 7 exemplifica um dos porquês disso) e uma depuração da identidade do grupo que, ao final do ano, irá se desvencilhar finalmente da ligação simbólica com o coletivo que o precedeu (Grupo Lésbico-Feminista -05/79-06/81).

De fato, o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) nasce, em outubro de 1981, como um rescaldo do Grupo Lésbico-Feminista, ou Grupo de Ação Lésbico-Feminista (uma outra de suas assinaturas mais recorrentes). Esse coletivo surge como subgrupo do grupo Somos, em maio de 1979, torna-se oficialmente independente do Somos como Grupo Lésbico-Feminista um ano depois, em maio de 1980, sofre um racha em outubro de 1980, quando perde duas de suas destacadas ativistas, e tem uma sobrevida de uns 8 meses, diluindo-se em junho de 1981, paradoxalmente quando uma de suas ativistas encontrara uma sede para o coletivo. Parte de suas integrantes ou deixou a militância ou aderiu ao movimento feminista, em particular ao grupo SOS Mulher, onde puderam manter o clima de socialização (e pegação) que caracterizava o lésbico-feminista (LF), sacrificando, contudo, a politização da questão lésbica (o mantra do SOS era submergir a identidade lésbica na identidade feminista). Apenas duas remanescentes desse coletivo, que nele atuaram em momentos diferentes de sua efêmera trajetória, eu e Rosely Roth, decidimos continuar com o ativismo especificamente lésbico, reavivando as brasas sob as cinzas do grupo lésbico-feminista e lhe dando outra sobrevida simbólica ao incorporarmos seu breve histórico ao do recém-nascido GALF, como as réstias de um sentimento que insiste em perdurar.

Este texto GALF: 6 anos é o último em que mantenho essa relação simbólica entre os dois coletivos sobre a qual a dura realidade finalmente se impôs. A ficha que já vinha caindo aos poucos, pois, de fato, nunca houve real continuidade entre os citados coletivos, caiu de vez durante o III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, em Bertioga, onde nos encontramos com ex-integrantes do lésbico-feminista numa reunião lésbica que improvisamos com o Grupo de Autoconciencia de Lesbianas Feministas (GALF do Peru). O desinteresse dessas ex-integrantes do LF por qualquer atuação específica por e para lésbicas, seu acomodamento no armário feminista da época (uma depois viria a dizer inclusive que não se podia organizar lésbicas no Brasil), nos trouxe a consciência de que nem simbolicamente tínhamos de fato mais nada em comum com o citado coletivo que justificasse continuar agregando-o ao histórico do GALF. Embora possa soar um clichê, de fato com o passado aprendemos, mas devemos deixá-lo passar.

Neste texto, o histórico dos dois coletivos ainda vem misturados, mas é fácil separá-los. Todas as atividades até junho de 1981 são do grupo lésbico-feminista. As do GALF veem a partir do segundo semestre de 1981, em particular depois de outubro. Mais detalhes sobre o coletivo lésbico-feminista podem ser lidos aqui. Sobre o GALF, seu longevo histórico pode ser lido aqui 

Origem da Denominação Lésbica-Feminista, p. 2 (Míriam Martinho)

Neste texto apresento o porquê de o GALF ter se adjetivado como "ação lésbica-feminista". Antes de tudo, destaco que o GALF, a partir de março/abril de 1983, passou a adotar a denominação "grupo ação lésbica-feminista", eliminando o "de" dessa identidade. Minha intenção com essa decisão foi forçar a concordância com "ação" e não com "grupo". Geralmente, quando se utilizava "grupo de" a tendência era que as pessoas concordassem tudo no masculino, ficando "grupo de ação lésbico-feminista". Com a retirada da preposição, a concordância passava a ser com ação, ficando Grupo Ação Lésbica-Feminista, "ação lésbica-feminista" se tornando o nome do grupo. A estratégia teve bons resultados, diga-se de passagem. Por isso, falo, neste texto, sobre a origem da denominação lésbica-feminista, criada para ressaltar a dupla opressão das lésbicas como mulheres e mulheres de orientação homossexual.


Saliento que a gente preferia não se identificar como homossexual por causa da ligação da palavra com uma patologia (criada por sexólogos e psicanalistas), o homossexualismo, ou inversão, associada à ideia de um suposto terceiro sexo do qual faríamos parte com os gays. 

Destaco que, no caso das lésbicas, a categoria homossexual surgira para supostamente explicar por que algumas mulheres sentiam tão forte necessidade de serem independentes dos homens e do papel de passividade, docilidade, feminilidade que eles lhes impunham. Assim o procediam, segundo os especialistas, porque não seriam mulheres normais e sim um terceiro sexo.

Lembro que tanto o movimento feminista (de segunda onda) quanto o então movimento gay, nos anos 60, vão questionar a noção da heterossexualidade como a única sexualidade possível para os seres humanos e a própria noção patriarcal do que é ser homem e mulher calcada na dominação das mulheres pelos homens. E que os grupos lésbicos-feministas vão se diferenciar dos outros grupos lésbicos por entender que a opressão das lésbicas só podia ser entendida e resolvida, em sua complexidade, dentro do contexto da opressão de todas as mulheres e não apenas pela questão da homofobia.


O GALF e o feminismo lésbico, p. 3 (Míriam Martinho)

O chamado "lesbianismo político" foi uma das fontes de inspiração do GALF não no sentido de propor que todas as mulheres se tornassem lésbicas, porém na perspectiva de apontar a lesbianidade como mais do que uma mera preferência sexual, como um estilo de vida que permitia maior autonomia e autodeterminação para as mulheres em geral.
 
No texto eu exemplifico as vantagens que a lesbianidade oferecia em relação ao modelo heterossexual e de como ela, para nós, representava uma maneira nova de ser mulher, sem a tutela e a repressão feminina, sem a reprodução dos estereótipos sexuais de feminino e masculino e o padrão patriarcal de dominação e exploração de uns sobre os outros. Termino dizendo que, portanto, a própria palavra lésbica significava mais do que transa entre mulheres. Significava também uma mulher comprometida com a luta das mulheres por direitos, autonomia e autodeterminação.


Passados 38 anos deste texto, eu ainda o endosso, embora considere necessário adicionar-lhe outros ângulos. Vivemos numa sociedade que, mesmo no Ocidente, onde os direitos das mulheres e de gays e lésbicas obtiveram muitos avanços, ainda tem a heterossexualidade, não como uma simples variante da sexualidade humana, mas sim como uma norma a ser seguida por todos. Inclusive vemos hoje um grande retrocesso nesses direitos vindo não só da direita conservadora, mas da própria esquerda que, metida em ideologias pós-modernas, não defende mais os direitos do sexo feminino nem dos homossexuais. 

No contexto de tal sociedade heteropatriarcal, onde as mulheres ainda são criadas para servir aos homens, a lesbianidade continua sendo sim mais do que uma orientação sexual, também um fator  disruptor desse sistema. Basta pensar que, se apenas metade de mais da metade da população humana, que é feminina, deixasse de se relacionar com homens, dificilmente o sistema atual se manteria o mesmo. É a autonomia sexual e reprodutiva das lésbicas que faz tremer as bases dessa sociedade.

Por outro lado, lésbicas, ainda que contingencialmente ameaçadoras para o status quo, como indivíduas criadas nesta sociedade heteropatriarcal, sofrem da mesma socialização que leva pessoas a reproduzir estereótipos de gênero, sexismo, racismo e tantos outros "ismos" baseados nas relações de dominação e exploração de uns sobre os outros típicas do mundo em que vivemos. Essas reproduções, na prática, acabam se contrapondo ao poder disruptor da lesbianidade como produtora de relacionamentos onde o parasitismo masculino não vigora.

Nesse sentido, há que se equilibrar a necessária análise coletiva e estrutural com a análise individual para uma compreensão mais profunda do lugar das lésbicas neste mundo de homens. A homossexualidade, apesar de em si mesma ser só uma variante da sexualidade humana, no contexto social da heterossexualidade obrigatória, permanece uma grande pedra no sapato do patriarcado. Haja vista a nova cura gay do transgenerismo, um reacionarismo profundo que se traveste de progressista. É preciso a um tempo conscientizar sobre a opressão coletiva que se abate sobre todas as pessoas do sexo feminino, mas sempre também considerar como cada pessoa age enquanto indivíduo, reconhecendo suas responsabilidades pessoais sobre sua própria vida e da sociedade em geral.

Objetivos e atividades do GALF, p. 4 (Míriam Martinho)

Finalizando o artigo, elenco os objetivos do grupo: conscientizar as lésbicas sobre seus direitos, formar redes de contatos e troca de informações com lésbicas e ativistas lésbica do Brasil e do exterior, promover debates, exibir filmes e vídeos, organizar a biblioteca do GALF.

E descrevo suas atividades: reuniões de reflexão semanais, elaboração do boletim Chanacomchana, participação em debates, simpósios, palestras, etc. e manutenção de correspondência com lésbicas de todo o Brasil.

Dicas de Leitura, p. 5 (Míriam Martinho)

Lista de livros que o GALF vinha adquirindo para sua biblioteca.

Poesia, p. 6

 
Poesia era um espaço que eu definia como "para as lésbicas poderem falar de  como era bonito, sensual, gostoso e ótimo amar outra mulher." Nesse sentido,  sempre busquei trazer poesias de teor romântico e erótico de autoras  conhecidas e desconhecidas que apreciavam escrever poesias, mais ou menos  elaboradas, atividade pela qual lésbicas sempre tiveram predileção.

Nesta edição, trouxe a prosa poética de Margot intitulada Desesperança descrevendo um encontro, ou encontros eróticos, que a arrebataram (ou a seu eu lírico). A descrição da amante com quem trocou nomes no primeiro encontro:

Seu porte de rainha - esbelto - corpo esguio, cabelos longos, castanhos, mãos fortes, macias, boca de pele macia avermelhada e sorriso lindo, voz traiçoeira, feiticeira, "olhos que olhavam", costas de ombros largos que não deixavam seus sonhos fenecerem.

Afirmava querer tudo que aquelas mãos e dedos lhe ofertavam em termos de prazer e ainda mais. Queria o que aquela boca macia e aquele sorriso lindo lhe extraíam:



Confessava que a voz traiçoeira e feticeira da amante iluminavam os azuis do seu céu, do seu mar. Que seus olhos que buscavam e vasculhavam varreram as entranhas do seu eu enquanto também desnudavam a si mesma, mas que a autora, sempre jogadora inveterada, não soubera pagar para ver. 

De repente, o raio laser das duas" se apagou por falha técnica. 

E autora termina melancolicamente apontando para o desalento provocado por esse caso tão fulgurante quanto passageiro que fez de seu coração um terreno devastado,  um violão sem cordas, que tem corpo, mas não toca. 


GALF na Hebe, p. 7 (Rosely Roth)

Lésbicas x Censura

Folha da Tarde, 30/31/05-01/06/85
Neste texto, Rosely Roth fala de sua participação no programa da Hebe Camargo de 24/05/1985. Relata como ficou conhecida da produção do programa por ter participado do simpósio sobre homossexualidade feminina (18/05/85), no Centro de Convenções Rebouças (SP), organizado pelo Centro de Estudos da Sexualidade Humana e coordenado por Moacir Costa e Ronaldo Pamplona da Costa. Um dos organizadores, o Ronaldo Pamplona da Costa, ao ser contatado pela produção do programa, a indicara por ter gostado de sua participação no simpósio. E ambos foram ao programa e acabaram fazendo um contraponto à dona Maria Amélia, mãe cristã de uma filha lésbica.

Rosely relata que, nas conversas de bastidores do programa, a maioria dos outros convidados não sabia que a temática da noite era o lesbianismo (nos termos de então). De fato, estavam ali para divulgar livro (Ignácio de Loyola Brandão), peça teatral (Maria Lúcia Dahl), programa de TV (Maria Gabriela) e dar palpite no que viesse. E que ninguém sabia, de antemão da participação da mãe de uma garota lésbica, a dona Maria Amélia Rocha de Souza, a quem, segundo Rosely, foi dado muito mais tempo para falar do que todos os demais. De fato, dona Amélia teria abocanhado 60% do espaço do programa, com discurso para lá de heterossexista, como dizer que preferia a filha infeliz com um homem do que feliz com uma mulher.

Rosely relatou haver falado bem menos do que gostaria (só quando a Hebe abriu o microfone para ela) mas que conseguira mostrar o Chana na TV e dar a caixa postal do grupo duas vezes. E que a lesbofobia da dona Amélia acabou se voltando contra ela própria, pois começou bem aplaudida no começo de suas falas, e acabou quase vaiada no final do programa em função de seu discurso rancoroso e autoritário.

Termina o texto falando da repercussão do debate na imprensa e da reação do chefe de censura federal de São Paulo (lembrando que a censura só termina com a constituição de 1988), Dráusio Dornellas Coelho, que exigiu que a produção do Hebe elevasse a faixa etária do programa e que o gravasse previamente. Segundo ele, o programa teria feito apologia do lesbianismo, principalmente por ter permitido a Rosely mostrar o Chanacomchana e falar a caixa postal do grupo.

Aborda por fim a repercussão do programa junto às lésbicas da época informando que, em julho de 1985, o GALF já havia recebido mais de 200 cartas de todo o Brasil, muitas identificando suas mães com a autoritária Maria Amélia.

Uma História de Heterror: Preconceito no CVV, p.12 (Shirley Roth)

Depoimento de Shirley Roth, irmã de Rosely, sobre sua má experiência como atendente do Centro de Valorização da Vida (CVV), da Barra Funda, onde a família Roth morava em 1985. 

Shirley sofria de síndrome dos ovários policísticos o que a fazia ter barba. Isso somado a uma aparência bastante masculinizada (fanchona) no geral, a tornava uma bandeira ambulante. Hoje poderia ser lida como um "homem trans", mas em 1985, ela se definia como homossexual simplesmente (não havia identidades trans na década de 80): 


Shirley disse que em sua interação com outros plantonistas procurou mostrar que pessoas homossexuais eram normais, como ela e a companheira, aparecendo em festas do trabalho com sua mulher e o filho das duas ou mesmo em reuniões do CVV. Apesar da boa receptividade de algumas pessoas, no geral, Shirley relatou um certo monitoramento de seu desempenho nos plantões, como se buscassem algum deslize para condená-la. Até que começou a rolar um rumor de que ela cantaria mulheres nos atendimentos, rumor que chegou aos ouvidos do Chefe Nacional do CVV que se reportou à coordenadora do CVV Barra Funda. A coordenadora, Ana, abordou Shirley relatando que estavam dizendo que havia uma homossexual pervertendo atendidos pelo telefone e transformando o CVV Barra Funda num bordel telefônico. Shirley protestou e disse que, de fato, quem cantava atendidos eram seus colegas heterossexuais, inclusive marcando encontros, etc. 

O fato é que sua visibilidade começou a lhe criar certas limitações no trabalho, tirando-lhe a motivação para o que gostava de fazer. Concluiu dizendo que o CVV tinha preconceitos contra homossexuais e propôs a criação de um CVV específico.


A Opinião da Leitora, p. 12 (Roxana Herrera Álvarez)

Ideias Particulares sobre Papéis Sexuais no Homossexualismo Feminino (Roxana Herrera Álvarez)

Butches and femmes Corky e Violet em “Ligadas pelo Desejo” (Imagem: reprodução)

Este é um dos poucos textos publicados no CCC onde a autora assinou seu nome por extenso. Nele, Roxana discorre sobre a temática dos papéis sexuais nos relacionamentos entre mulheres. Vale salientar, como comentei em outras resenhas do CCC, que nem os termos gênero nem papeis de gênero circulavam em meados da década de 80. A maioria das pessoas utilizava a expressão "papel sexual", muito mais precisa do que "gênero". 

Embora tenha dito que os textos publicados nessa seção não traduziam necessariamente a posição do GALF, o fato é que este particular traduzia sim. Roxana vai questionar a pseudo naturalidade dos papeis sexuais tanto quanto eu mesma havia feito em "Roberta Close: Homem ou Mulher"? Os papeis sexuais, hoje papeis de gênero, são um amontado de convenções sociais, agrupadas e amoldadas para configurar os modelos de mulher e homem na sociedade patriarcal. Suas características estão presentes em todos os seres humanos, as variações por conta das individualidades, não por conta dos sexos. 

A autora também vai dizer que acredita nas relações homossexuais como uma via de mais flexibilidade e criatividade nos relacionamentos humanos com as pessoas intercambiando os papeis sexuais na cama ou no dia a dia. E que, diferentemente dos casais heterossexuais, lésbicas não precisariam ficar confirmando sua aderência à rigidez desses papéis.


De fato, as relações homossexuais, de gays e de lésbicas, tendem a ser mais horizontais realmente porque o casal é formado por duas pessoas que receberam o mesmo tipo de socialização, havendo, portanto, menos cobranças a priori de adequação a papeis X ou Y. O que não significa que essas relações não possam padecer de outros perrengues presentes em todos os relacionamentos humanos e serem inclusive também tóxicas. Ainda que não se deva esquecer o coletivo, o fato é que cada casal é fruto de dois indivíduos e sua combinação pode ser positiva ou não.

Associe-se ao GALF, p. 15

Como disse na resenha do Chanacomchana 7, o ano de 1985 foi um divisor de águas na história do grupo e de sua primeira publicação. Esta edição n. 8 é a última em que o GALF incorpora o histórico do coletivo que o antecedeu, o Grupo Lésbico-Feminista, com quem mantinha uma ligação simbólica sobre a qual a dura realidade acabou por se impor.

Também, como já dito, foi o início do progressivo distanciamento do grupo do movimento feminista por essa relação ser muito contraproducente. E ainda o ano que o grupo inicia seu processo de associação, com o qual pretendia ter mais suporte financeiro em troca de alguns serviços. O processo de associação vai ser fundamental para a sustentação do segundo título que produzi pelo GALF, o boletim Um Outro Olhar, a partir do final de 1987.

Informes - p. 16 (Míriam Martinho)

Simpósio sobre Homossexualidade feminina (p. 16)

Registro de um simpósio de um dia sobre homossexualidade feminina, considerado como provavelmente o primeiro do gênero no Brasil, ocorrido no dia 18/05/85, no Centro de Convenções Rebouças, organizado pelo Centro de Estudos da Sexualidade Humana, coordenado por Moacir Costa e Ronaldo Pamplona da Costa. Foram abordados diferentes aspectos da lesbianidade. 
A participação de Rosely Roth neste simpósio lhe rendeu a indicação para o programa da Hebe Camargo em 24/05/85

Vivências Lésbicas (p. 16)

Após a expulsão do CIM, nós tentamos obter apoio para uma nova sede, mas só conseguimos verba para alugar uma sala para a realização do evento Vivências Lésbicas onde apresentamos vídeo de um filme sobre o amor entre mulheres e o programa da Hebe Camargo do qual Rosely participou em 24/05/85 (ver relato acima).

Notinhas

Endereço do Grupo de Prevenção a AIDS (GAPA-SP) para quem quisesse obter mais informações sobre a síndrome que naquele início da epidemia foi chamada de "peste gay" e "câncer gay".

Informe sobre o material do extinto grupo Outra Coisa que foi doado para o Arquivo Edgard Leuenroth  da UNICAMP.

III Encontro Latino-Americano e do Caribe (p. 17)

Faço um apanhado desse encontro na próxima edição do CCC. Ele teve pontos importantes na mudança de rumos do GALF seja porque nos permitiu ter contato direto com outro grupo lésbico latino-americano, o também GALF do Peru, seja porque determinou o fim da ligação simbólica que o grupo tinha com seu predecessor o Grupo Lésbico-Feminista. A década de 80 teve prevalência de grupos lésbicos-feministas no incipiente movimento lésbico internacional, daí essa denominação aparecer nos títulos de vários grupos.


Vitória do Movimento Homossexual (p. 17)

Finalmente, em 9 de fevereiro de 1985, o Conselho Federal de Medicina, deixou de aplicar o código 302.0 da Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) que colocava a homossexualidade como desvio e transtorno sexual. A partir desta data a homossexualidade passou a ser tratada como uma das circunstâncias psicossociais, ao lado de desemprego, desajustamentos sociais e tensões psicológicas que podiam levar alguém a um médico (código 2062-9).  Derrubar este código foi uma das primeiras bandeiras do movimento homossexual do período, por iniciativa do Grupo Gay da Bahia, em meados de 1981, a qual o GALF deu todo o apoio. 

8 Encontro do Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS) em Genebra (p. 18)

Informe sobre o mais internacional dos encontros do ILIS, previsto então para março de 1986. As organizadoras do evento, do grupo suíço Vanille-Fraise, buscavam então financiamento para bancar os custos de viagem de lésbicas da América Latina, África e Ásia e os custos do próprio evento na cidade dos bancos, chocolates, queijos e relógios. Também vinhos. Fui agraciada por um desses financiamentos e descrevi o encontro no ChanacomChana 10.


Um caso de custódia lésbica (p. 18)

Nota sobre problemas de custódia de filhas de casais lésbicos nos EUA, numa época (1985) em que as americanas já estavam tendo acesso à inseminação artificial, mas ainda tinham que lutar na justiça para garantir a parentalidade. Vale lembrar que neste ano de 2023, na Itália, sob o governo da direita ultraconservadora da primeira-ministra Giorgia Meloni, casais do mesmo sexo que não possuem ligação biológica com a criança perderão o direito legal à parentalidade.

Entre em contato conosco (p. 18)

Os marcos de fundação do Movimento Homossexual no Brasil são o jornal Lampião da Esquina e o grupo Somos, ambos de 1978. O grupo Somos se inicia como um grupo de amigos gays que buscava um espaço diferenciado dos de pegação de bares e boates para discutir suas questões específicas e amenizar a solidão. Em fevereiro de 1979, o grupo aceita um convite para participar de um debate sobre homossexualidade na Ciências Sociais da USP, tornando-se conhecido, e a partir daí passa a crescer exponencialmente. Durante os anos de 79 e 80, o movimento cresce e se espalha para outras cidades de outros estados, organizando um primeiro encontro nacional em abril de 1980 (Iº Encontro Brasileiro de Homossexuais). No entanto, em meados de 81, época em que deveria ter realizado o II Encontro no Rio, o movimento já mostrava sinais de refluxo que se acentua a partir de 1985. Essa nota demonstra que em meados de 85, os grupos já podiam sem contados nos dedos de uma mão.


Lésbicas e Trabalho, p. 19 (Rute Amorim e Luiza Granado)


Lésbicas e Trabalho foi uma entrevista feita por Luiza Granado e Rute Amorim com duas lésbicas, uma motorista de táxi, Ana, 32, e uma funcionária pública, Renata, 52, abordando suas vivências lésbicas no trabalho. Ana, autointitulada sapatão, demonstrou mais tranquilidade quanto a sua visibilidade como lésbica na profissão. Renata demonstrou mais ambiguidade: embora negasse que se enrustia, não acreditava ser necessário se assumir no espaço de trabalho.

Motorista de táxi, Ana relatou ter sofrido preconceito de uns cinco caras quando estava obtendo o alvará para seu ponto. Eles falaram que não queriam sapatão no pedaço, que ia sujar o ponto, que o passageiro não ia querer pegar o táxi. Depois que obteve o alvará, o coordenador do ponto veio perguntar a ela se era lésbica. Ela confirmou, mas disse que estava ali para trabalhar como todo o mundo, sem extrapolações. Segundo Ana, um ano depois, mesmo os mais incomodados a princípio com sua visibilidade lésbica passaram a aceitá-la, inclusive outras taxistas mulheres, héteros ou entendidas.

Ana afirmou que a autonomia da profissão favorecia sua visibilidade: o carro era dela, trabalhava por conta própria já há 10 anos. Quando trabalhara como funcionária pública, porém, relatou que procurava disfarçar sua orientação sexual para não perder o emprego. Perguntada se achava importante ser assumida no trabalho, afirmou que sim porque quando a pessoa estava sendo "ela mesma", sendo aceita pelos interlocutores como é, tanto faz por dentro ou por fora, não existia coisa mais "de paz".

Sobre como melhorar a situação das lésbicas no trabalho, Ana respondeu:


Funcionária pública, Renata fez um depoimento contraditório, onde, embora dissesse que não se esquivava de abraçar e beijar casos e amantes em qualquer ambiente, na família ou mesmo no emprego, não via o porquê de as pessoas saberem que era lésbica no trabalho, pois tal revelação implicaria uma mudança nas pessoas que seria impertinente e sem objetivo. Para ela, a homossexualidade não dita, só suposta, era admissível, mas quando dita abertamente se tornava imperdoável porque as pessoas não queriam a responsabilidade de saber. Relatou a experiência de desabafar com uma amiga heterossexual sobre a dor da separação de um grande amor, a qual chamou de pessoa, sem revelar que se tratava de uma mulher. A suposta amiga a apoiou até saber a verdade. Após a revelação, a relação das duas se rompeu.

Não obstante, Renata achava que o isolamento das lésbicas ficava muito por conta das próprias devido à culpa que interiorizavam. Considerava importante não exagerar o papel da repressão social como gerador de culpas e um dos fatores mais importantes ou talvez o único a gerar debilidade e depressão. Que viria das próprias lésbicas aceitar sua homossexualidade perante si próprias. Por outro lado, entendia que ninguém tinha uma vivência tranquila da homossexualidade, mas que, apesar de muita culpa e drama, com apoio de outras homossexuais e ativistas, podia-se chegar a bom termo com a própria orientação sexual.



Troca-cartas, p. 25

Para um bom papo, aquela transa, um grande amor

Numa amostra de como o Chanacomchana foi se tornando nacional, neste troca-cartas, tivemos 14 correspondentes, sendo 8 paulistas e paulistanas, 3 gaúchas, uma mineira, uma amazonense e uma cearense, curiosamente, como observado no CCC 7, com a maioria colocando seu nome por extenso.

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