Chanacomchana 3: resgate e edição comentada

quinta-feira, 30 de março de 2023

CCC 3 Maio de 83 © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho

Míriam Martinho

Em dezembro de 1982, era lançado o primeiro número do boletim Chanacomchana (ver resgate do CCC 1 aqui e CCC2 aqui), seguido de outros 11 números. Neste artigo, abordo o ChanacomChana 3, não sem antes falar do contexto histórico e político de onde o periódico emerge, fundamental para entender sua produção e conteúdo (ver mais informações aqui).

O Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).

Na prática, os grupos daquele incipiente movimento se preocupavam com a não reprodução da política tradicional, suas hierarquias, disputas de poder, discursos da boca para fora, e tentavam (com pouco sucesso) não reproduzir suas mazelas. Nesse sentido também, pregavam a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, uma das bandeiras de maior bom senso daquela época. O GALF era tributário dessas ideias (vide o texto Autonomia), via esquerda libertária, das ideias do feminismo de segunda onda, com seu questionamento dos papéis sexuais, e das correntes do separatismo lésbico do também incipiente movimento lésbico internacional. Nem o GALF nem o ChanacomChana refletem qualquer luta contra a ditadura militar que, aliás, já estava em seus estertores. O GALF e suas publicações foram, de fato, insurgências contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória.

A Revolução DIY
Todo esse amálgama de ideias e inspirações aparecem nas páginas do Chanacomchana do seu período inicial e nele permanecem no período posterior, de 1985 em diante, apesar do afã revolucionário contracultural do MHB ir sendo paulatinamente substituído pelo reformismo pragmático de grupos como o GGB e o Triângulo Rosa.

Também do ponto de vista gráfico, o CCC vai seguir a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo) matriz, entre outras produções, dos fanzines produzidos artesanalmente, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Nas vendas, o corpo a corpo junto ao público-alvo ou, posteriormente, via correios através do sistema de associação.

Ilustração CCC3 : GALF: 4 Anos de Atuação, p.1

ChanacomChana nº 3 – Edição comentada




Em maio de 1983, era lançado o boletim ChanacomChana número 3, terceiro de uma coleção de 12 edições que produzi e editei pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF). Ele se insere no período inicial do GALF (10/81 a 08/ 85) correspondente à fase em que a organização encampa o histórico do coletivo que o precedeu, o Grupo Lésbico-Feminista - LF (05/1979-06/1981) - adota, inclusive, nos dois primeiros números do CCC, uma das últimas assinaturas do LF (a saber, Grupo de Ação Lésbico Feminista) -, divide sedes com o grupo gay Outra Coisa de Ação Homossexualista e promove a hoje célebre invasão do Ferro’s Bar. Também é o período em que o grupo vive vários conflitos com o Movimento Feminista por este não incorporar a questão lésbica à sua agenda oficial. Neste ChanacomChana de n⸰ 3, o GALF assume seu nome definitivo, Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), para inclusive forçar uma concordância nominal no feminino, com o qual assinará seus documentos e produzirá as demais edições do ChanacomChana e as do boletim Um Outro Ohar (10 edições) a partir de maio de 1983 até março de 1990. 

(CCC 3, p.1-2)

A mudança para Grupo Ação Lésbica-Feminista também aproxima o nome do grupo de seu nome estatutário fantasia que era Grupo Ação de Liberação Feminista. Importante salientar isso porque já vi texto onde colocaram o ChanacomChana como produzido pelo Grupo de Ação Lésbico-Feminista. Com esta assinatura, produzi apenas os dois primeiros números do Chana. Todos os outros 10 foram produzidos sob o nome de Grupo Ação Lésbica Feminista. Grupo de Ação Lésbico-Feminista é apenas uma das assinaturas do coletivo anterior (Grupo Lésbico-Feminista) que o GALF adotou no seu primeiro ano e meio (ver mais sobre este tema das assinaturas aqui).

Nos demais 7 anos de sua existência, o GALF só teve uma denominação que foi Grupo Ação Lésbica Feminista, fato que pode ser constatado pela simples leitura dos Chanas e dos 11 números da segunda publicação que o GALF inicia em 1987, o boletim Um Outro OLhar. Assim sendo, quem afirma que o Chana foi produzido pelo Grupo de Ação Lésbico-Feminista ou fez uma pesquisa precária do boletim ou está tentando reescrever a História. Da mesma forma, saliento que fui cofundadora de apenas dois coletivos nos anos 80:

1)o  subgrupo lésbico-feminista do Somos em maio de 1979, que se tornou autônomo em maio do ano seguinte como Grupo Lésbico-Feminista (LF)  e teve uma outra outra assinatura prevalente, Grupo de Ação Lésbico-Feminista, no primeiro semestre de  1981 e

2) o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) em outubro de 1981, estatutariamente com a denominação de Grupo Ação de Lberação Feminista; assinando, no primeiro 1 ano e meio, Grupo de Ação Lésbico-Feminista e, de maio de 83 até março de 1990,  Grupo Ação Lésbica-Feminista, sua  assinatura preponderante e identidade essencial.  


Sumário

GALF: 4 Anos de Atuação  - p.1
Depoimento 1 - p. 8
Depoimento 2 - p. 10
Fazendo Poesia - p. 11
Informes - p. 12
Cartas - p. 14
Eu aqui a fim de te conhecer -  p. 15 


GALF: 4 Anos de Atuação (p.1 a 7)

O primeiro artigo desta edição do Chanacomchana, de minha autoria, GALF: 4 Anos de Atuação  - p.1, trata de partes do histórico do coletivo do Grupo Lésbico-Feminista e do coletivo do Grupo Ação Lésbica-Feminista, já que o GALF se vê, em seus primeiros anos, como continuidade do grupo lésbico-feminista por razões um tanto surreais. No texto que redigi sobre o GALF, me aprofundei sobre o assunto inclusive porque tem sido motivo para gente que jamais integrou o GALF passar a se dizer até cofundadora do mesmo. Reproduzo trecho do texto sobre o GALF onde falo sobre essa questão:
A incorporação da trajetória do Lésbico-Feminista ao histórico do GALF, em seus primeiros anos, se deveu a uma somatória de fatores, entre simplórios e surreais, que criou uma ilusão de continuidade em nossas cabeças: a sede que Rosely encontrara, no centro de São Paulo (Praça da República), onde também nos conhecemos, ter sido pensada para o lésbico-feminista (que morreu na praia); eu e Rosely termos vindo, a partir de momentos distintos, desse coletivo; o tempo que separava o fim do LF do início do GALF ter sido ínfimo (em torno de 4 meses) e, sobretudo, nossa decisão de continuar com um grupo específico de lésbicas em vez de submergir nossa identidade em alguma identidade feminista genérica (lero muito em voga na época). Fora também algum sentimentalismo barato pelo fim do coletivo anterior.

De fato, eu fiquei afastada do coletivo do Grupo Lésbico-Feminista, por questões de saúde, de meados de dezembro de 1980 ao final de maio de 1981. Ao retornar a esse coletivo, em 23 de maio de 1981, ainda encontrei antigas integrantes do grupo e presenciei uma ou duas reuniões de ativismo de fato. Fora isso, apenas reuniões sociais em bares e restaurantes. Até o final de junho, esse coletivo se diluiria por completo, no exato momento em que Rosely Roth encontrara uma sede para o mesmo, o que dá bem a ideia do descompromisso do LF com a militância. Formado mais em torno de relações de socialização e pegação do que em torno de um projeto de ativismo (este era bem descosturado), o grupo não tinha mesmo como continuar. Esse fenômeno, aliás, era comum entre os grupos do período. Perdido o tesão pelos coletivos, eles simplesmente se dissipavam sem maiores considerações.

Ficamos, então, eu que acabara de retornar à militância e a Rosely, que entrara no LF no final de fevereiro de 81, com uma sede, mas sem um grupo. Nos 4 meses seguintes, ainda tentamos em vão rearticular  ex-integrantes do LF ao menos em torno da segunda edição do tabloide Chanacomchana. Finda essa etapa infrutífera, decidimos então seguir em frente com novas mulheres que colaboravam com a gente em termos de pequenas tarefas internas e de cotizações para bancar a sede e, com elas, fundamos o GALF (Grupo Ação de Liberação Feminista, o nome estatutário do GALF), em outubro de 1981. No entanto, em termos de ativismo propriamente dito, ficamos só eu e Rosely atuando, já que as outras não se assumiam nem no interior dos movimentos. Em meados de 1982, a situação começa a melhorar quando o grupo gay Outra Coisa veio dividir a sede conosco e outras mulheres mais abertas a algum nível de participação pública também apareceram. No final desse ano, comecei também a produzir o Chanacomchana, publicando o primeiro número em dezembro de 1982.

No texto que fiz neste CCC 3, intitulado GALF: 4 anos de Atuação, pelas razões acima citadas, eu encampei o histórico do coletivo lésbico-feminista (maio de 79 a junho de 1981) ao histórico do então recém-criado GALF. Neste resgate e edição comentada, aproveito para fazer a separação das atividades dos dois coletivos.

Na primeira página, faço um resgate da então muito "mal-dita" palavra lésbica e apresento a  lesbianidade não só como afirmação de uma sexualidade específica mas também como recusa política ao papel tradicional da mulher, submisso e dependente, e uma proposta de desobediência e autonomia criativas para as mulheres em geral. Através dela, o GALF buscava rasgar o manto da invisibilidade que nos impedia de existir política, social e culturalmente. Tem-se aqui uma das grandes influências do GALF: o lesbianismo político.

CCC 3, p. 1

A partir da página 2, eu passo a resgatar a trajetória do coletivo lésbico-feminista que, então, havia acoplado à do GALF, até o penúltimo parágrafo da pág. 3 e o começo da página 4.  Nele, abordo a breve mais agitada trajetória do LF (grupo lésbico-feminista) em dois anos de existência: a participação no II Congresso da Mulher Paulista (março de 1980), provocando grande polêmica, a participação no I Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados (abril de 80); a separação do Somos, em 17/05/1980, quando passa de subgrupo a Grupo Lésbico-Feminista, a participação no encontro feminista de Valinhos (SP), em junho de 80, o racha do grupo em outubro de 80 (suas causas), o III Congresso da Mulher Paulista (março de 1981), de onde o grupo quase foi expulso por integrantes do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e onde  lançou o tabloide Chanacomchana 0 e um texto sobre as prisões arbitrárias de lésbicas, na chamada operação sapatão, de fins de 1980) pelo delegado Wilson Richetti e o Encontro Paulista de Grupos Homossexuais Organizados, em abril de 1981

Depois eu cito a inaguração da sede que, como já relatei, era para ter sido do LF, em 4 de julho de 81, que morreu na praia: ou seja o grupo se diluiu no exato momento em que se conquistava o que seria seu espaço próprio. Sobramos eu e Rosely do coletivo do LF as quais se somaram algumas lésbicas não-militantes durante o segundo semestre de 81. Apelidei esse período, entre julho e outubro de 1981, de período do limbo, porque em tese ainda éramos o grupo lésbico-feminista mas na realidade o coletivo acabara e nós ficáramos apenas como uma dupla sem saber o que fazer com a situação. Como registrei nesse histórico do CCC, Rosely ainda participou em julho de 81 do encontro da Sociedade Brasileira Contra o Progresso da Ciência (SBPC), quando o Grupo Gay da Bahia lançou seu abaixo-assinado contra o parágrafo 302.0 , do INAMPS, que rotulava a homossexualidade como desvio e transtorno sexual.

Nos meses seguintes até outubro, ainda tentamos, como dito anteriormente, mobilizar  ex-lfanas e lésbicas de outros grupos a nova edição do Chanacomchana tabloide sem sucesso. Em meados de outubro, optamos por continuar com um coletivo lésbico-feminista sem mais tentar articular com ativistas antigas. E fundamos o GALF formalmente em 17/10/1981, no estatuto Grupo Ação de Liberação Feminista, para termos condições de abrir conta em bancos, poder receber vales postais e doações. Fora isso passamos a buscar parcerias para a divisão da sede, já que nós sozinhas mais algumas colaboradoras não tínhamos condições de manter o aluguel por muito mais tempo. 

No texto deste CCC3, eu falo dessas dificuldades referentes aos primeiros meses do GALF:

CCC 3, p. 4

Depois cito a retomada do crescimento do grupo com o aumento da troca de correspondência com grupos do exterior que nos garantiam bom aporte de material gratuito, o início da formação da biblioteca do GALF e as reuniões de reflexão que começamos a fazer sobre questões lésbicas e feminismo aos sábados em nossa sede. Nas atividades externas, destaco a participação num debate em abril sobre violência contra a mulher onde aparecemos de máscaras, simbolizando a forma como as lésbicas tinham que viver em seu cotidiano. Distribuímos nesse debate o panfleto "Sobre Violência" onde exortávamos o movimento feminista a apoiar o combate contra a lesbofobia, afirmando que se calar sobre as múltiplas formas de opressão que sofriam as lésbicas era ser cúmplice da violência. A performance e o texto provocaram muita polêmica.

Em maio de 1982, realizamos em nossa sede, em parceria com os grupos Somos e Outra Coisa de Ação Homossexualista, uma semana intitulada "Viva a Homossexualidade", em homenagem aos 4 anos do Movimento Homossexual, com a exibição de dois filmes sobre gays e lésbicas, dois debates sobre Feminismo e Lesbianismo e Política e Desejo, e uma festa no teatro Ruth Escobar. Nos debates, tiveram destaques a questão da identidade homossexual, que, da forma como abordada à época, se tornou fator de desmobilização do movimento, e a questão do poder e da reprodução da política tradicional no seio de um movimento que, naquele momento, ainda se pretendia criador de novas formas de fazer política. Na mesma linha das discussões sobre poder e autonomia, cito o relatório do II Encontro Nacional de Feministas, ocorrido em Campinas, em julho de 1982, onde se registrava a incapacidade das feministas de questionar a reprodução das relações de poder e autoritarismo, embora o feminismo se propusesse a inovar o fazer político. 

Também registrei o encontro que tivemos na sede do GALF, em agosto de 1982, com o psicanalista e teórico francês, Félix Guattari, autor do famoso A Revolução Molecular, que propôs alguma forma de interação entre as lutas moleculares (a dos grupos) com as molares (das instituições, partidos) e elogiou o trabalho de compilação de leis discriminatórias contra homossexuais de um grupo francês, tipo de atividade tida pelos "revolucionários" da época como reformista e sem valor.

Registrei também as demandas que aquele incipiente movimento homossexual fez a políticos na campanha eleitoral daquele ano, a primeira a reestabelecer o voto direto para governadores, como a não utilização do código 302.0 do INAMPS que rotulava a homossexualidade como transtorno mental, o fim da repressão policial e o direito à custódia dos filhos. E um debate, sobre esses temas, na sede do GALF/Outra Coisa, com integrantes de vários partidos, em novembro de 1982, às vésperas da eleição.

Ainda sobre nossas atividades do ano de 1982, cito o evento Festival Mulheres nas Artes, de setembro, onde o GALF priorizou as palestras das feministas estrangeiras, o retorno do título Chanacomchana, em dezembro, agora como boletim, onde registramos nossa participação no citado festival e o panfleto Carta por Sandra Mara, caminhoneira poetisa que havia se sucidado. 

Já adentrando nas atividades de 1983, registro nossa participação na organização do 8 de Março daquele ano e na liberação do jornalista Anthonio Crysóstomo, um dos editores do ex-Lampião da Esquina, que havia sido preso sob a alegação de ter molestado a filha adotiva de 4 anos. Teço comentários sobre as disputas político-partidárias e a lesbofobia do Movimento Feminista, na organização dos eventos do 8 de Março e, mais uma vez, as questões de poder nunca resolvidas. Teço também comentários sobre a fundação de uma suposta frente, chamada de  SOS Geral (atenderia mulheres, gays e lésbicas, negros, indígenas), que naufragou antes mesmo de ser encaminhada pelas mesmas razões de disputa de poder já citadas. 

Registro ainda o lançamento do Chanacomchana 2 durante os eventos do 8 de março, o encontro do GALF com a escritora feminista Dacia Maraini, no Insitituo Italiano (SP) e atividades internas do grupo no início de 1983, como festas para arrecadar dinheiro e o anúncio do que viria a ser em maio o Viva a Homossexualidade, com debates, exibição de cartazes e filmes, e festa no Ruth Escobar.

Eu comecei a fazer registro das atividades dos grupos dos quais fui cofundadora já no Chanacomchana tabloide e continuei a fazê-lo em vários números do Chanacomchana e posteriormente no Um Outro Olhar e em outros documentos. Eles servem como um fio de Ariadne para entrar nos labirintos do passado e sair deles ilesa. 

Depoimento I - Rosely Roth (p. 8)

Este número do CCC traz depoimentos de duas das integrantes do GALF no primeiro semestre de 1983. O primeiro é da Rosely Roth, da página 8 a 9. Nele, ela relata sua entrada no LF em fevereiro de 1981 que ela chama de GALF porque, como já expliquei, o GALF encampou, em seus primeiros anos, a trajetória do coletivo anterior de onde eu e Rosely provínhamos, embora a partir de momentos diferentes. De fato, Rosely entrou no LF no período em que eu estava ausente (meados de dez. de 80 até o final de maio de 1981), e eu estive no LF desde sua fundação, ainda como subgrupo do Somos, até o final de 1980, retornando no penúltimo mês do coletivo.

Rosely descreve então as atividades de que participou naqueles últimos meses de vida do coletivo do LF ao qual aderiu com muita vontade de pôr a mão na massa, segundo disse: a participação no III Congresso da Mulher Paulista e a organização do I Encontro Paulista de Grupos Homossexuais Organizados (também participação). Vale salientar que no seu também empenho em encontrar uma sede para o grupo que não chegou a ocupá-la, como já citado.

No mais, fala de suas dificuldades pessoais para se aceitar como homossexual, com a palavra lésbica que lhe soava pesada a princípio e de como o GALF a ajudou a superar esses obstáculos. Fala também de suas próprias contradições, no processo de combater a socialização patriarcal para a disputa e a competição, e do próprio feminismo onde a teoria e a prática raramente coincidiam.

Rosely termina seu depoimento destacando a mim como pessoa que marcou sua trajetória dentro do movimento feminista e homossexual, iniciando-a no feminismo, e a Naná Mendonça por sua amizade e apoio financeiro ao GALF. Cita  ainda outras integrantes do GALF da ocasião que dedicavam, em diferentes níveis, tempo e trabalhavam por nossas lutas e o grupo gay Outra Coisa por sua parceria e solidariedade.

Importante salientar a fala da Rosely sobre o papel dos movimentos sociais como uma possível organização alternativa aos partidos que não visasse a tomada de poder de Estado e sim o fim deste e a autogestão política e conômica da sociedade. Este discurso aponta outra influência do GALF, o anarquismo e sua releitura contracultural principalmente quando ela fala da não separação entre o privado e político.

Depoimento II- Célia Miliauskas (p. 10)

O segundo depoimento registrado nessa edição do CCC foi de Célia Miliauskas (p. 10) que, como ela mesma diz, acabou parecendo publicidade do Grupo Ação Lésbica Feminista. Nele, Célia, aos 19 anos então, relata que havia aderido ao grupo em junho ou julho de 1982 a partir de um debate no Teatro Ruth Escobar, na região do Bexiga (SP) onde Rosely falou a respeito dos objetivos do grupo.

Como se identificou com os objetivos do grupo, vendo nele também a possibilidade de poder falar sobre sua lesbianidade, estava convidando outras lésbicas a se unir a ela. Reproduzo trecho do depoimento publicitário:
CCC 3, p. 10

Importante observar que tanto o meu histórico sobre o GALF quanto os depoimentos de Rosely e Célia, todos obviamente artigos de época, descrevem e refletem as influências ideológicas do grupo, seus objetivos e atividades, neles não havendo sequer uma menção ao regime militar sob o qual ainda vivíamos. Isso porque não só o GALF como a maioria dos grupos LG do período eram exclusivamente focados na questão homossexual. Os usos do CCC para ilustrar teses de supostas perseguições aos homossexuais daquele período não só são mentirosas como delituosas. 

Poesias (p. 11)

Três poesias, uma minha e duas outras de Naná Mendonça e Vange Leonel. Curiosamente, as poesias das duas tematizam, em diferentes estilo,s os amores que eram para ter sido e não se consumaram. 

"É meu âmago que pede e se eu me enganei - platônico amor - sonhando quem você teria que ter sido, brinco de te matar, de te dar 3 tiros e de partir para outra."  Vange Leonel

"Caiu uma chuva esparsa na aridez do meu solo estéril/e a areia absorveu toda a água e o sol a evaporou/ e ficou apenas a lembrança de uns instantes amenos/da aragem que por uns momentos amenizou o mormaço escaldante./ Assim foi tua presença em minha vida: um vislumbre, uma quimera, uma ilusão efêmera." Naná Mendoça

Minha poesia "Para minha namorada" é uma espécie de libelo lésbico erótico-político que inclusive faz alusão a uma feminista da época do tipo que pregava a submersão da identidade lésbica na feminista: 

"E eu quero mais do que a previsão dos tempos/nos quero chuva se nos disserem sol,/quero ser a bela isca mentindo o anzol, que rasgará as bocas das tubarões morenos". Míriam Martinho

Informes (p. 12 a 14)

"Informes" era a seção de notícias curtas sobre as atividades e conquistas dos movimentos homossexual e feminista de então. As notícias eram baseadas nas cartas e publicações que recebíamos do exterior, me demandando um especial trabalho de edição e tradução. Posteriormente, renomeei essa seção como "Em Movimento", título que permanecerá inclusive nas publicações que editei posteriormente como o boletim e a revista Um Outro Olhar. 

Neste número, os flashes daquele período iluminaram as seguintes notícias:

1) ILIS - O Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS), a principal organização internacional por e para lésbicas dos anos 80 e 90, decidia abrir sua associação, antes fundamentalmente lésbico-feminista, para lésbicas que também atuavam em grupos mistos de gays e lésbicas e para lésbicas radicais.

2) Mulheres Lésbicas nos Países Socialistas - No relato sobre Mulheres Lésbicas nos Países Socialistas, observa-se que, em Cuba, embora os campos de reeducação tivessem sido fechados por pressão internacional, a reeducação de gays e lésbicas passara a ser feita por clínicas psiquiátricas e que o governo mantinha um dossiê sobre os homossexuais, obrigando gays e lésbicas a casarem entre si para despistar a repressão. Na Alemanha Oriental, embora não fosse ilegal ser homossexual, uma política de estado centrada na família nuclear, dificultando a locação de imóveis para solteiros, e a exigência de permissão governamental para encontros ou mesmo vistos de saída do país impediam os locais de socialização para gays e lésbicas. Embora homossexualidade não desse cadeia na tirania socialista, dava reeducação compulsória em clínicas psiquiatras.

3) Fundação para o Livro Escolar - A feminista Maria Amélia Azevedo Goldberg, autora do livro "Educação Sexual: uma proposta, um desafio" assumira a Fundação para o Livro Escolar e pediu nossa colaboração no sentido de lutar por um padrão de ensino comprometido com os ideiais de qualidade e democratização. 

4) Contra o Parágrafo 302.0.  Registro da fala da então deputada estadual pelo PMDB, Ruth Escobar, no dia 10/05/1983, na Assembleia Legislativa de SP, contra o parágrafo 302.0 da Classificação Internacional de Doenças que classificava a homossexualidade como desvio e transtorno sexual. Também estava prevista uma moção a ser assinada por todos os parlamentares e enviadas para o presidente da República. O GALF e outros grupos homossexuais de SP subdisiaram a deputada na redação do texto dessa moção.

5) Homossexuais, as maiores vítimas do preconceito - Registro de uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisas do Comportamento, em SP (capital e estado) que indicava serem os homossexuais as maiores vítimas de preconceitos, seguidos de judeus, velhos e negros.

6) Chrysóstomo finalmente solto - Registro da absolvição e soltura do ex-editor do jornal Lampião da Esquina que ficara preso durante um 1 ano e meio acusado de abusar sexualmente da filha adotiva. Considerando que ele de fato fora preso por ser homossexual, já que não houvera prova dos citados abusos, os grupos homossexuais de SP, a OAB e políticos enviaram abaixo-assinados em apoio ao jornalista que, após a liberação, decidiu processar o Estado.

7) Conversa dos grupos homossexuais com o Secretário de Segurança Pública - Registro da conversa dos grupos homossexuais de SP com o Secretário de Segurança Pública de SP, Manoel Pedro Pimentel que declarara a revista Veja (02/03/1983) estar aberto ao diálogo. O GALF e os demais grupos de SP demandaram o fim da violência policial contra gays e lésbicas e uma revisão das prisões com base no critério muito subjetivo de "atentado ao pudor". O secretário se comprometeu a não reprimir manifestações pacíficas de homossexuais, mesmo as públicas, critério que não se aplicaria a travestis que expunham suas partes pudendas em público. Esse registro é importante porque explica em parte o fato da polícia não ter interferido no protesto do Ferro's Bar para o GALF conseguir voltar a vender o boletim ChanacomChana. As narrativas fradulentas de que o regime militar perseguia gays e lésbicas até as vésperas do retorno à democracia tem neste registro histórico uma boa contestação.

8) Conselho Estadual da Condição Feminina - Era criado, em 04/03/1983, o Conselho Estadual da Condição Feminina com o objetivo de eliminar a discriminação da mulher brasileira em vários âmbitos. Órgão de estado se colocava aberto a todas as mulheres de SP independente da filiação partidária para contribuir para o desenvolvimento das atividades da organização. Um exemplo do avanço das reivindicações das mulheres junto à sociedade de seu tempo.

9) Em Plenário - Registro de uma moção da vereadora Irede Cardoso (PT) contra a crítica de deputados estaduais da Assembleia Legislativa do Maranhão contra o programa Clodovil da TV Bandeirantes por supostamente incentivar o homossexualismo e o lesbianismo. A moção foi assinada por todos os parlamentares da época com exceção de um representante do PDS (partido do regime militar). Estava previsto também que Clodovil receberia o título de cidadão paulistano. O GALF (Grupo Ação Lésbica Feminista) e o Outra Coisa enviaram um telegrama parabenizando Irede Cardoso pela iniciativa. 

10) Grupo Outra Coisa: Ontem, Hoje e Sempre: Publicação da carta de apresentação dos parceiros de sede e atividades do GALF, o grupo Outra Coisa, relatando sua origem que remontava ao Grupo Somos (de fato integrantes do Outra Coisa haviam sido fundadores do Somos), deixado, em 17 de maio de 1980, por considerarem que o grupo ficara irreversivelmente associado à Convergência Socialista. Nesse relato, eles descrevem que editaram ainda em 1980 o Caderno de Textos do Movimento Homossexual Autônomo, sobre a independência dos grupos homossexuais em relação a partidos políticos, entre outros temas. Que em seus 3 anos de existência tinha levado o debate sobre a homossexualidade aos meios de comunicação, universidades, partidos políticos, entidades profissionais, etc. E que quando passaram a dividir sede com o GALF em 1982, iniciaram um ciclo de promoção de encontros, debates, mostras de arte, projeções de filmes. Que tinham um arquivo de documentos sobre o movimento homossexual no Brasil e no exterior e sobre a homossexualidade na imprensa. E, por fim, que estavam abrindo o grupo paa novos integrantes. 

Cartas (p. 14 a 15)

Na seção de Cartas, que posteriormente denominei Cartas na Mesa, cartas de leitoras e leitores de São Paulo, Recife, Bahia, Rio com destaques para as cartas do ativista Huides, do GGB, e do Antonio Carlos Mascarenhas que, posteriormente, fundaria o grupo Triângulo Rosa (RJ) e tentaria inserir um dispositivo contra a a discriminação por orientação sexual na nova constituição de 1988. Entre as cartas dsa mulheres, geralmente elogiosas do CCC 2, uma carta da Luiza Granado, assinada como Maria Luiza, que, quando do lançamento desta edição 3 do CCC, já havia se integrado ao GALF no qual permaneceria até seu final e migraria também para a Rede de Informação Um Outro Olhar da década de 90.

Olha eu aqui a fim de te conhecer (futuro troca cartas) - p. 15

Embrião do futuro Troca-cartas, o app arcaico de encontros dos anos 80 com 4 endereços para correspondência, a maioria de São Paulo. Esta seção do CCC passará a crescer constantemente nos anos seguintes e também no boletim Um Outro Olhar. 

CCC 3 © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho

Condições de compartilhamento deste texto: Você deve dar o crédito apropriado a autora Míriam Martinho, prover link para este texto e para as fotos que o ilustram, se for utilizá-los. Você não pode usar o material para fins comerciais. Você não pode remixar, transformar ou criar a partir deste material.


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