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Chana com Chana e ditadura militar: uma relação inexistente

domingo, 20 de outubro de 2024 0 comentários


Em 28 de agosto último, fiz um desagravo à memória de Rosely Roth pelos 34 anos de sua morte. Esse desagravo surgiu porque sua imagem vem sendo usada como token de narrativas ideológicas sobre uma suposta perseguição dos militares a gays e lésbicas que teria existido até 1984 (sic). Daqui a pouco vão inventar que houve gente perseguida pelos militares até 1989. Apontava que esse tokenismo se compunha de fraudes grosseiras que não batiam com a história do país, do movimento homossexual nos seus primórdios nem com a própria trajetória dela. Nem cronologica nem ideologicamente Rosely poderia ter sido porta-voz da luta contra algo que nem mais existia.

Desta feita, falo também da minha primeira produção, pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), o zine Chana com Chana, igualmente vitimada por essas fraudes grosseiras, e explico como ela foi parar nessas narrativas. Já havia abordado esse tema em outros artigos, de outras perspectivas, dos quais aqui repito informações (deixo links para eles no quadro ao fim do texto), mas avanço outros dados que traçam a origem dessa história. O fato é que sequer existe menção ao regime militar nas páginas de qualquer edição do Chana, mas ele também tem sido usado para ilustrar supostas resistências à ditadura militar em plena época dos comícios das Diretas Já. 

Uma das razões porque resgatei e resenhei todas as edições do Chanacomchana foi para ter certeza de que não havia qualquer menção ao regime militar em suas edições. De repente, nas cartas dos leitores. Mas, como eu lembrava, nem aí. As pessoas, militantes ou não, não estavam preocupadas com o regime em decomposição e sim com seus problemas enquanto homossexuais. Fica, então, para os fraudulentos, o ônus de provar como uma publicação contemporânea da campanha das Diretas Já, que nunca sequer mencionou os militares e que tinha como linha editorial exclusivamente a questão homossexual, poderia ter sido resistência contra a ditadura militar. O único grupo homossexual que abordava à macropolítica da época era a Fração Gay da Convergência Socialista. Não por coincidência é um de seus protagonistas um dos protagonistas da fraude atual, como citarei mais adiante.

Sempre tive enorme gastura, um mal-estar quase físico com o hiperdimensionamento do regime militar feito por remanescentes da (extrema) esquerda do período e seus discípulos atuais. Em outras palavras, esse pessoal pinta o diabo muito mais feio do que foi, travestindo um regime autoritário de totalitário, característica que não teve em momento algum, nem mesmo durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici (69-74), a um tempo o mais repressivo e o mais popular dos governos militares. Esse aparente paradoxo se explica porque, à parte a baixa consciência democrática brasileira, se de um lado havia os anos de chumbo, abafados pela censura, do outro, vigorava à época o auge do milagre econômico. Fora que a repressão não atingia a maioria da população e a prosperidade econômica temporária alimentava o clima ufanista do momento. (Eu mesma só experimentei a repressão autoritária, em 1977, quando fui presa na tristemente histórica invasão da PUC-SP pelo famigerado coronel Erasmo Dias.No artigo As duas décadas dos anos 70, do livro Anos 70: Trajetórias, a psicanalista Maria Rita Kehl descreveu bem aquele momento: “Os anos 70, que iniciaram em 1969, foram terríveis. Todo o mundo parecia apoiar a ditadura”.

Ressalto que meu conhecimento do período advém de experiência vivida, não de leituras enviesadas de militantes travestidos de acadêmicos. Quando os militares chegaram ao poder eu tinha 10 anos e, quando saíram, 30. Passei o início da minha puberdade e da minha juventude sob o regime, particularmente meus 20 anos em seu período francamente ditatorial, o do AI-5 (13/12/1968- 13/10/1978). Sei bem como era o zeitgeist, o espírito da época dos anos 60, 70, já adentrando os anos 80, que foi o da esquerda libertária da Contracultura, não o da esquerda tradicional (marxista-leninista, maoísta, trotskista, etc). Esta, além de fora de moda, pela emergência da nova esquerda dos movimentos sociais, ainda contava com a perseguição dos militares. Por isso sei também que o binômio censura-tortura, a que se procura reduzir quase 21 anos da nossa História, não bate com os fatos. Pior, distorce a história do período e impede uma análise mais ampla, de diferentes ângulos, que nos permita contextualizá-la dentro do conjunto da História do Brasil, cheia de tentativas de golpes e ditaduras, e nos possibilite inclusive entender por que nunca conseguimos uma democracia plena no país até hoje. Aliás, vivemos novamente um clima autoritário.

Como recentemente também apareceram os que subestimam o regime militar e até negam seu caráter autoritário, cumpre salientar que nenhuma pessoa democrata – coisa que a maioria dos hiperdimensionadores não é – vai negar que os militares tenham estabelecido um regime de exceção à regra democrática, em particular de 68 a 78, que tenha havido realmente censura e abusos contra os direitos humanos no período com prisões arbitrárias e mortes sob tortura. Problema é que o hiperdimensionamento de tudo isso não condiz com o fato de os militares terem tido apoio popular e de várias instituições da sociedade para chegar ao poder e nele se manter por tanto tempo. Com um pouco de raciocínio se depreende que eles sequer tinham por que instalar um regime totalitário no país, pois a maioria do povo os apoiava. De fato, foi só com o fim do milagre econômico, que não era sustentável, a partir de 74, e a crise econômica decorrente, que os militares passaram a perder o prestígio junto à população.

O hiperdimensionamento do autoritarismo do regime militar foi construído a partir da edição da experiência real dos que sofreram algum episódio de prisão, tortura, cassação de mandato, exílio, censura, projetada sobre a realidade de toda a população. E o envolvimento do Chanacomchana, um zine do período da transição democrática, acabou por exemplificar - como eu nunca poderia ter imaginado - o quanto de mentira cabe nessa história

Vale notar, inclusive, que muitas publicações de cunho contracultural, que em geral nada falavam sobre o regime e não por causa da censura, foram publicadas durante o período do AI-5 e nem por isso se pode identificá-las como resistências ao regime. A não ser forçando muito a barra, como é de costume hoje. A palavra "resistência" virou um clichê cada vez mais esvaziado de sentido pelo mal uso.

Como o Chanacomchana foi parar nessa narrativa ideológica fraudulenta –  I

Para rastrear como o Chanacomchana acabou envolvido nessa narrativa ideológica de perseguição a homossexuais pelos militares, é preciso retornar à época da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) instituída durante o governo Dilma. Em 2014, nesse âmbito, petistas apresentaram a tese de que a homofobia teria sido uma prática institucionalizada pelo regime, ou seja, uma política de estado, embora não com objetivo de exterminar gays. Tese estranha e questionável sobre vários aspectos, inclusive por ter levado 30 anos para aparecer, após o fim do regime militar, e pela conclusão suspeita de que a CNV deveria indenizar os homossexuais “perseguidos” pelo regime militar.

Assim como outros ativistas pioneiros do MHB, discordei dessa tese desde que tomei conhecimento dela. Nunca ninguém tinha ouvido falar de tal perseguição estatal a homossexuais mesmo no início do movimento, quando ainda estávamos sob o regime militar, embora já no período da abertura. Homofobia existia por todo o lado nos anos 60, 70 e mesmo 80. Alguém saber da homossexualidade de um empregado no ambiente de trabalho, em qualquer área pública ou privada, acarretava a perda do emprego em 99% das situações. A maioria dos gays e das lésbicas (essas em particular) não se colocava abertamente como homossexual nem na família, nem na escola, nem em qualquer outro ambiente que não fosse homossexual. E isso nada tinha a ver com a ditadura, tanto que a vida dupla prevaleceu entre gays e lésbicas por toda a década de 80, já adentrando na de 90. Só nos anos 90 é que homossexuais, sobretudo as lésbicas, começam a efetivamente sair do armário em maior número. Os anos 80 foram só para os fortes.

Personagens cujo histórico questiona as próprias teses

Além de ninguém ter ouvido falar de repressão estatal de gays e lésbicas no período militar, dando a impressão desse trabalho ter sido feito de encomenda para a Comissão Nacional da Verdade, algumas das pessoas envolvidas nessa tese como o brasilianista James Green e, no desenrolar dessa fábula, a personagem Marisa Fernandes, notória por se colocar como protagonista do que não viveu nem fez, tornaram, por si sós, tudo mais discutível. Green parece que se firmou como brasilianista, mas, para a história do Movimento Homossexual Brasileiro, entrou mesmo como o gringo da Convergência Socialista que levou ao racha do Somos em 17 de Maio de 1980.

Nessa ocasião, os fundadores do Somos deixaram o grupo por considerá-lo irremediavelmente comprometido por infiltração da Convergência Socialista (CS), LE, p. 8 que visava transformar o Somos e outros grupos organizados do Brasil em canal para a entrada de homossexuais na Convergência Socialista e no Partido dos Trabalhadores, transformando-os em “caixa de ressonância” de suas propostas político-partidárias. E isso não se trata de mera opinião dos fundadores do Somos, mas sim de informações tiradas de documento interno da CS, de acordo com informativo (05/83) do grupo Outra Coisa de Ação Homossexualista escrito por Antonio Carlos Tosta

Naquela época, contudo, a CS foi amplamente rechaçada pelo incipiente movimento homossexual que não queria se ver atrelado a correntes político-partidárias mal acabara de nascer. Em dezembro de 1980, no Rio, em reunião para organização do que seria o II EGHO (Encontro de Grupos Homossexuais Organizados), os grupos presentes nem sequer aceitaram discutir a Coordenação Nacional proposta pela Fração Gay da Convergência Socialista. A própria CS, em seu livrinho Homossexualismo: da Opressão à libertação, p. 9, (Hiro Okita) afirmou:
No mesmo ano de 1980, os debates dentro do próprio movimento homossexual começaram a tomar outros rumos. Preocupava ao movimento uma suposta postura oportunista das esquerdas brasileiras em relação à discussão homossexual. Essa preocupação leva todos os grupos do movimento homossexual a colocarem-se "contra qualquer tipo de poder" (menos o da ditadura militar!) e a senha para esses grupos passou a ser "autonomia".
Green, segundo o próprio, deixou o movimento já a partir de 1981, na esteira de seu esvaziamento. A Fração Gay da CS idem, apesar de ter se transplantado para o Somos. O Somos, cooptado pelos convergentes, por sua vez, sempre às voltas com gurus, terminou, no segundo semestre de 1983, ironicamente com uma levada contracultural, por certo trazida pela influência do escritor e antropólogo argentino Nestor Perlongher. O MHB ficou muito reduzido e desprestigiado na década de 80, e não havia quase nada para cooptar e aparelhar. Só vou rever essas figuras do início do movimento, Green incluído, a partir sobretudo do VII Encontro de Lésbicas e Homossexuais que organizei pela Rede de Informação Um Outro Olhar em setembro de 1993. Na década de 80, eles sumiram, mas agora querem reescrever a história que não viveram. Principalmente Green parece querer retomar o golpe, que a CS não conseguiu dar no MHB dos anos 80, em modo retroativo.

Sobre Marisa Fernandes, já me referi a sua mitomania várias vezes. Qualquer pessoa que  pesquise a sério seu currículo-fantasia, poderá constatar as inconsistências de suas falas. Ela já se disse fundadora do GALF sem nunca ter sido, editora do Chana onde nunca sequer publicou um artigo, participante da manifestação do Ferro’s quando sequer estava em São Paulo. Depois desmentiu tudo isso em entrevista para uma de suas comparsas (acho que às vezes esquecem de combinar as mentiras). Ver Memória Lesbiana: 40 anos do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) entre fato e ficção e Os inacreditáveis sequestros da história do GALF, do Chana, do Dia do Orgulho e da imagem de Rosely Roth

Neste texto, quero abordar a nova personagem de lutadora contra a ditadura militar e por ela perseguida encarnada por Fernandes como um exemplo da tese furada em pauta em que meteram o Chana. Fernandes é como uma espécie de ISO 9000 às avessas: onde ela aparece a qualidade da história desaparece. Tive o enorme infortúnio de conviver com essa figura lastimável exatamente no período do AI-5, por isso sei que ela não foi nenhuma lutadora contra a ditadura militar, muito menos perseguida por ela. Era uma típica jovem contracultural da época, às voltas com sexo, drogas e rock’n’ roll. Transava com uns e outras, tomava todas e inclusive foi uma das poucas pessoas de meu convívio a tentar a vida comunitária em casinhas à beira de riachos e ao pé de montanhas (mesmo ainda na década de 80). Então, Fernandes eu conheci e sei que essa sua nova personagem é só mais uma de suas interpretações com vistas provavelmente a receber alguma indenização do Estado por uma perseguição que não sofreu. Mas, e as outras pessoas que constam como perseguidas políticas, por exemplo, no site Memorial da Resistência, e que não conheci? Será que foram perseguidas pelos militares como a Marisa Fernandes? As pessoas deveriam lembrar daquele velho ditado de que “uma maçã podre num cesto de maçãs frescas estraga todas as outras”. Depois reclamam da falta de credibilidade.

Como o Chanacomchana foi parar nessa narrativa ideológica fraudulenta –  II

Apesar dos pontos levantados acima sobre a questionabilidade dessa tese, eu mesma tinha colocado, na minha lista de leituras, os textos decorrentes dela, sob a rubrica "ditadura e homossexualidade", que foram aparecendo. De repente, poderia encontrar algo que não fosse fake. Enquanto isso, à guisa de piada, de vez em quando, alguém me mandava notícias e vídeos da nova personagem de Fernandes, a lutadora contra a ditadura, recebendo prêmios por essa suposta luta.

Na verdade, ao que tudo indica para dar sustentação a uma tese que não se sustenta sozinha, os protagonistas da mesma e seus associados, desde o início, já começaram a reescritura da história do país, do movimento homossexual do chamado ciclo libertário (1978-1984) e inclusive da década de 80. O famoso Lampião da Esquina se encaixou bem na narrativa da perseguição militar a homossexuais porque, iniciado ainda sob a vigência do AI-5, foi vitimado por inquérito policial, baseado na Lei de Imprensa da época e na velha lenga-lenga de ataque à moral e aos bons costumes. O processo sem eira nem beira durou 12 meses (agosto de 1978 a 79). Então, os gays já estavam representados na narrativa da perseguição aos homossexuais pelos militares.

Mas faltavam as lésbicas. Problema é que as comadres de James Green e Renan Quinalha (o outro protagonista da tese citada) não produziram publicação alguma para figurar como vítima dos militares. Já a partir de meados de 1981, com o fim do coletivo do lésbico-feminista, que produziu a versão tabloide do Chana, elas sumiram como a maioria dos militantes dos primeiros dois anos.

Um apanhado do histórico do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro)  

O MHB teve uma trajetória peculiar, que não sei se possui paralelo com a de outros países, e que resumo aqui. Começa a todo o vapor em 1979 e quase desaparece nos anos 80, criando uma espécie de hiato entre o ativismo dos anos 80 e das décadas seguintes. Ele tem como marcos fundadores o surgimento do tabloide Lampião da Esquina no Rio e do grupo Somos em São Paulo, ambos em 1978.

O grupo Somos nasce como um grupo de amigos gays que se reunia para falar das dores e delícias de ser homossexual, na época mais das dores. No ano seguinte, 1979, quando o grupo começou a desenvolver atividades públicas, como participar de debates, passou a se tornar mais conhecido e a crescer rapidamente, o mesmo acontecendo com outros grupos pelo Brasil que foram pipocando aqui e ali. O fato de o Lampião da Esquina ter sido divulgador das atividades do Somos e dos grupos em geral, nos primeiros dois anos, 79-80, é a provável causa desse crescimento abrupto, pois amplificava a causa homossexual no país.

No final de 1980, porém, os grupos começaram a se desentender com o pessoal do Lampião da Esquina que, segundo eles, não estava mais divulgando as organizações como devido. Depois se inicia uma novela, nos primeiros meses de 1981, sobre a participação do jornal na organização do II Encontro de Grupos Homossexuais Organizados (II EGHO), já que a comissão organizadora carioca se diluíra, e que termina em março com a rejeição desse protagonismo,  o que levou os editores a não mais divulgar os grupos e suas atividades. (Os números de 31 a 35 do Lampião registram a história na seção "ativismo"). O encontro acabou não sendo organizado no Rio e se optou pela realização de encontros apenas regionais. O próprio Lampião da Esquina termina em meados de 1981, e toda a efusão dos primeiros dois anos do ativismo LG começa a refluir. As lésbicas do coletivo lésbico-feminista (maio 78- maio 81) também se desarticulam e várias migram para o armário feminista. Até o início de 1984, vão desaparecer também o Somos e o Outro Coisa, sobrevivendo somente o GALF desse chamado ciclo libertário.

Então, repetindo, as comadres de Quinalha e Green desapareceram e só reapareceram 12 anos depois com o renascimento do movimento que ajudei a rebatizar de gay e lésbica no VII Encontro de Lésbicas e Homossexuais (set. 1993) já citado. Então, o único grupo de lésbicas que se manteve foi o GALF e as únicas publicações regulares dos anos 80 foram o ChanacomChana, seguida do boletim Um Outro Olhar.

Como o Chana começou a ser produzido nos últimos 2 anos do regime militar, contemporâneo da campanha das Diretas Já, acabou na mira dos produtores da narrativa  “homossexuais perseguidos pelos militares” que resolveram roubar a publicação para ilustrar suas fábulas. 

Ao fazer isso, contudo, apenas comprovaram o quanto sua tese é falsa, pois o Chana não aborda o regime militar em momento algum, nem em notinhas. E isso se explica porque o movimento da época, como comprovado pela referência da própria CS que citei, não queria a questão homossexual atrelada a então chamada luta maior, como almejavam os trotskistas. Tal postura fica cristalina no texto de Rosely, Autonomia (CCC 4), e no da Vanda Frias sobre a manifestação do Ferro’s, Democracia também para as lésbicas: Uma luta no Ferro’s Bar (CCC4). onde ela registra a orientação política do GALF. Ver CCC 4 aqui.

Então, seja porque cronologicamente sequer estávamos mais numa ditadura e sim no período da redemocratização, seja porque nem eu nem ninguém do GALF fomos importunadas pelos militares, seja porque o ChanacomChana nunca sofreu qualquer problema com a censura da época, seja porque a linha editorial da publicação era exclusivamente focada nos direitos homossexuais e das mulheres, qualquer ligação do zine com resistências à ditadura militar se constitui em fraude grotesca.

Chega a ser particularmente ridículo, aliás, num momento em que o Brasil promovia um dos maiores movimentos de massa de sua História, a campanha das Diretas Já, com milhares de pessoas nas ruas, sem repressão, vir alguém falar que lésbicas e gays estavam sendo perseguidos pelos militares.

No período da transição democrática, o que havia de receio das pessoas quanto aos militares era de um possível revertério no processo de abertura, já que algumas correntes radicais do regime não a queriam. Mas como diz o ditado de Victor Hugo (a ele atribuído ao menos), “nada é tão poderoso como uma ideia cujo tempo chegou”. Maior exemplo disso foi a tentativa de integrantes do exército de colocar uma bomba no Rio Centro, durante um show pelo Dia do Trabalho, em 31 de abril de 1981, e que explodiu no colo de um deles (foto abaixo). Carma instantâneo.

Bomba detonou no colo do sargento  Guilherme Rosário 
Foto de Anibal Philot / Agência O Globo

Acho que principalmente minha geração, que cresceu sob o regime militar, pegou esse cacoete de chamar os 21 anos de sua vigência genericamente de “ditadura militar”, embora o regime tenha sido bem heterogêneo, o que facilita a vida dos fraudadores. Tendo isso em vista, eu mesma venho me policiando no sentido de ser mais precisa. Considerando o que descrevi acima, é fácil de entender o porquê.

Montagem com  imagens de IA - ©Míriam Martinho

Chanacomchana é o passado falando com sua voz própria

Concluindo, dou um exemplo do tipo de embuste em voga usando o Chana, no caso uma de minhas tirinhas, para ilustrar a suposta perseguição dos militares contra as lésbicas. Minha tirinha “Quem é sapatão pro camburão”, que ilustra meu texto A Negação da Homossexualidade (CCC 2, p. 2), do qual é parte indissociável, critica o discurso dos "descolados" da época contra a identidade homossexual porque esta seria um rótulo restritivo da sexualidade humana, mas foi tirado de seu contexto para representar, nas teses picaretas da vida, uma suposta perseguição das sapatonas durante a ditadura civil-militar brasileira.

Neste artigo, eu, na realidade, questiono a discussão muito em voga de 82 em diante, tanto que a abordo outra vez no CCC 5, de que afirmar uma identidade homossexual implicaria "cair num esquema de normatização, modelização, padronização das categorias sexuais". Argumentava que essa discussão, da forma como posta então, levaria à invisibilidade da homossexualidade e à desmobilização política, como de fato ocorreu. Como se reivindicar direitos políticos para seres humanos marginalizados por sua orientação sexual, sem estabelecer um sujeito político, reconhecido pela sociedade, para essas reivindicações? Simplesmente sair-se negando as identidades de hétero, homo, colocando-se como "apenas gente", como na tirinha, mudava a realidade objetiva do tratamento diferenciado dado a héteros e homos?

A referência às batidas dadas pelo sensacionalista delegado José Wilson Richetti da Delegacia Seccional do Centro de SP, em 1980, nos bares lésbicos (conhecida como Operação Sapatão), aparece na tirinha apenas para dar ênfase às situações bem diferenciadas que lésbicas e héteros podiam enfrentar no cotidiano.

As ações de Richetti, em 1980, porém, se deram em função da marginalidade em que viviam gays e lésbicas ainda nesse período, não em função de perseguição do Estado militar. No mesmo ano, Richetti também resolveu fazer uma operação limpeza no centro de São Paulo que igualmente vitimou negros, prostitutas e travestis. A truculência da polícia ainda hoje se faz sentir junto às populações mais periféricas e não estamos mais no regime militar (né, mesmo?).

Crítica ao discurso da não identidade homossexual, muito em voga nos primeiros anos da década de 80, que afirmava serem identidades apenas rótulos, como se bastasse alguém dizer que não era homossexual para a opressão terminar

Em maio de 83, no CCC 3, seção Informes, inclusive registrei o encontro dos grupos de gays e lésbicas com o Secretário de Segurança de SP, quando se reivindicou o fim da abordagem policial contra homossexuais com base no muito subjetivo conceito de “atentado ao pudor”, tendo obtido do mesmo a promessa de que trabalharia para impedir esse abuso contra gays e lésbicas.

Por último, repetindo o que já disse em outros artigos sobre o Chanacomchana, ele é o passado falando com sua voz própria, não o passado confessando sob tortura o que uns e outras querem que ele diga. Basta lê-lo de fato, em vez de ficar fazendo "copia e cola" de teses vigaristas, que se encontrará tudo que ele tem a dizer sobre as vivências lésbicas dos anos 80, sobre a trajetória do GALF, do MHB, do incipiente movimento de lésbicas que se iniciava internacionalmente. O que não encontrará com certeza é qualquer menção ao regime militar em seus estertores. Para facilitar, resenhei todas as edições do Chana, como segue abaixo, mas vale a leitura de seus números para conferir o que digo e não sair comprando gato por lebre.

Nota: Perguntei a uma IA, Sender GPT 4, sobre as consequências de se reescrever a história, e ela respondeu o seguinte:

Reescrever a história pode apresentar vários riscos, incluindo:

  1. Desinformação: A reescrita pode distorcer fatos e eventos, levando a um entendimento incorreto do passado.
  2. Perda de Contexto: Alterações na narrativa histórica podem fazer com que sejam ignorados o contexto e as complexidades dos eventos.
  3. Espalhamento de Narrativas Parciais: Muitas vezes, a reescrita é feita a partir de uma perspectiva específica, o que pode levar a uma glorificação ou demonização de certos grupos ou figuras.
  4. Consequências Políticas: A reescrita da história pode ser usada para justificar ações políticas atuais ou promover ideologias, afetando a memória coletiva e a identidade cultural.
  5. Divisão Social: Narrativas conflitantes sobre o passado podem fomentar divisões entre diferentes grupos sociais, étnicos ou políticos.
  6. Deslegitimação de Experiências: Reescrever a história pode minimizar ou deslegitimar as experiências e sofrimento de certos grupos, perpetuando injustiças.
  7. Erosão da Confiança: Se a história frequentemente é reescrita, pode haver uma erosão da confiança nas instituições e figuras responsáveis pela preservação da verdade histórica.

Esses riscos destacam a importância de uma análise crítica e fundamentada das narrativas históricas.



Dez. 82

CCC 1

https://bit.ly/3ABOWUD

Fev. 83

CCC 2

https://bit.ly/3McuMmI

Maio 83

CCC 3

https://bit.ly/4dOweaP

Set. 83

CCC 4

https://bit.ly/4fUzVxy

Maio 84

CCC 5

https://bit.ly/3WZI0Iw

Nov. 84

CCC 6

https://bit.ly/3DrtjEY

Abr. 85

CCC 7

https://bit.ly/3YhnDqF

Ago. 85

CCC 8

https://bit.ly/3t31X5T

Dez.-fev.1985/6

CCC 9

https://bit.ly/3R3UvA4

Jun.-Set. 1986

CCC10

https://bit.ly/497zEmK

Out.-Jan. 1986/7

CCC 11

https://bit.ly/3vlStEz

Fev.-Maio 1987

CCC 12

https://bit.ly/3XeVVwl




ChanacomChana 12: resgate e edição comentada

quinta-feira, 30 de maio de 2024 0 comentários

CCC 12fev.-maio. 1987  © Coleção ChanacomchanaMíriam Martinho


Em dezembro de 1982, era lançado o primeiro número do boletim Chanacomchana seguido de outros 11 números (ver resgate do CCC 1 aqui, CCC2 aqui, CCC 3 aqui, CCC 4 aqui, CCC 5 aqui, CCC6 aqui, CCC 7 aqui, CCC 8 aqui, CCC 9 aqui, CCC 10 aqui, CCC 11 aqui). Neste artigo, abordo o ChanacomChana 12, não sem antes falar do contexto histórico e político de onde o periódico emerge, fundamental para entender sua produção e conteúdo (ver mais informações em Memória Lesbiana: 41 anos de ChanacomChana  aqui).

O Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).

Na prática, os grupos daquele incipiente movimento se preocupavam com a não reprodução da política tradicional, suas hierarquias, disputas de poder, discursos da boca para fora, e tentavam (com pouco sucesso) não reproduzir suas mazelas. Nesse sentido também, pregavam a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, uma das bandeiras de maior bom senso daquela época. O GALF era tributário dessas ideias (vide o texto Autonomia), via esquerda libertária, das ideias do feminismo de segunda onda, com seu questionamento dos papéis sexuais, e das correntes do separatismo lésbico do também incipiente movimento lésbico internacional.

A Revolução DIY
Todo esse amálgama de ideias e inspirações aparecem nas páginas do Chanacomchana do seu período inicial e nele permanecem no período posterior, de 1985 em diante, apesar do afã revolucionário contracultural do MHB ir sendo paulatinamente substituído pelo reformismo pragmático de grupos como o GGB e o Triângulo Rosa.

Também do ponto de vista gráfico, o CCC vai seguir a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo) matriz, entre outras produções, dos fanzines produzidos artesanalmente, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Nas vendas, o corpo a corpo junto ao público-alvo ou, posteriormente, via correios através do sistema de associação.

Nem o GALF nem o ChanacomChana refletem qualquer luta contra a ditadura militar mesmo porque seu contexto histórico é o do governo da abertura do general Figueiredo, da redemocratização, que se iniciara com a revogação do AI-5 em 13/10/78, ainda sob o governo Geisel. De fato, o governo Figueiredo foi uma democratura, uma convivência de elementos ainda autoritários do regime em decomposição com aumento crescente de características democráticas caminhando a passos largos para o restabelecimento do poder civil. Embora a censura, só revogada com a Constituição de 1988, ainda existisse no período, ela não vitimou o GALF ou o ChanacomChana em momento algum. Tal fato pode ser constatado facilmente pela simples leitura dos Chanas onde não se encontram sequer informes referentes ao regime militar, muito menos registro de qualquer arbitrariedade que tenhamos sofrido dos militares. O GALF e suas publicações foram, de fato, insurgências contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória praticamente onipresente do período.

Chanacomchana nº 12 – Edição comentada

 Sumário

  Editorial
  Feminismo e Lesbianismo - p.1 
  Poesia - p. 9
  Dicas de leitura - p. 10
  Não Leia! Linguagem e Repressão - p. 12
  Balanço das Eleições - p. 16
  Em Movimento - p. 23
  Sexualidade e Saúde - p. 25
  Troca-Cartas - p. 30
    

Editorial (Míriam Martinho)

Neste  número 12 do ChanacomChana (o último), eu começo o boletim com o sumário do mesmo e uma apresentação de seus objetivos, um processo que comecei com o número 10 e repetirei  também no boletim e revista Um Outro Olhar (nesta com editorais mais elaborados).

Na apresentação de seus objetivos, informo que o boletim procurava focar diferentes aspectos das vivências lésbicas bem como temas referentes à política dos movimentos sociais autônomos. E também quebrar o muro de preconceitos que envolvia e isolava as mulheres lésbicas, criando uma rede de contatos, informações e apoio tanto no Brasil quanto no exterior (já prevendo a rede Um Outro Olhar).

Feminismo e Lesbianismo  - p. 1 (Míriam Martinho)

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Este texto que escrevi em 1987 me deu uma certa tristeza ao rever porque, se naquela época ainda havia um feminismo que defendia os direitos das mulheres, embora penasse para politizar a lesbianidade, hoje nem isso. Picado pela mosca azul da irracionalidade pós-moderna, o "feminismo" mainstream passou a tratar mulher como uma categoria e não como  pessoa do sexo feminino, o sujeito político do feminismo desde que se passou a assumir que mulheres deveriam ter direitos. Na categoria mulher dessas "viajandonas" cabe qualquer coisa, inclusive homens, menos os direitos e os espaços duramente conquistados pelas mulheres no passado. Nesse momento tão distópico vivido pelo mundo hoje, este é um de seus piores pesadelos.

Mas, em 1987, apesar de já estar cansada dos silêncios do feminismo da época sobre a questão lésbica, eu ainda tentava mostrar para as sapatas porque o feminismo também nos interessava, já que, como mulheres, sujeitas a uma série de restrições impostas ao nosso sexo. 

Na introdução do texto, descrevo a situação do feminismo da época que raramente abordava a questão lésbica e, quando o fazia, era a partir do binômio "gay e lésbica", e não da perspectiva da lésbica como mulher. Dizia que uma lésbica que abrisse uma publicação feminista dificilmente se identificava com o que lia, pois não havia nada que falasse diretamente do seu cotidiano, acabando por ver reforçada a ideia de que o feminismo não lhe dizia respeito. E as que conseguiam se identificar com as questões gerais do feminismo, como a igualdade salarial entre mulheres e homens, atuando por essas questões, precisavam manter sua vida pessoal, sexual, no terreno do privado, numa flagrante contradição com o slogan feminista de que o privado também era político.

Concluo essa introdução, apontando para o fato de que, embora nos então últimos 2 anos, a questão lésbica tivesse começado a aparecer em encontros feministas, o movimento feminista era para as lésbicas mais um gueto, onde as feministas homossexuais viviam a ilusão de que suas simples presenças determinavam o grau de abertura feminista em relação às vivências lésbicas, embora estas estivessem sempre em segundo plano, na hora de discutir qualquer coisa, ou até mesmo vistas como embaraçosas. E que a politização da questão lésbica, por meio de debate mais aprofundado ainda estava por vir. 

De fato, nunca veio. Aqui, no Brasil, após 22 anos de hostilidades ou omissão, as feministas homossexuais resolveram pegar carona na emergência das paradas do orgulho e na visibilidade que as lésbicas ganharam na mídia, mas não porque tivessem parado para discutir suas próprias vivências em seu próprio movimento.

Feminismo e lesbianismo: uma relação bem íntima

Neste subtópico, início dizendo que o feminismo e o lesbianismo tinham uma relação bem íntima porque a condição fundamental para se estar lésbica era ser mulher (não existe homem lésbica). Continua não existindo, mas, como disse anteriormente, hoje "viajandonas" saem dizendo que há mulheres com pênis bem como sacis-pererês, vampiros e lobisomens. Na década de 80, porém, semelhante "viagem" não rolava e ainda preponderava a ideia de que lésbicas não eram mulheres porque o ser mulher se restringia às mulheres heterossexuais. Eu argumentava, porém que, sendo as lésbicas mulheres, e o feminismo o movimento que lutava pelos direitos das mulheres, seus objetivos mais gerais também eram do nosso interesse.

Passei então a elencar 5 exemplos de objetivos gerais do feminismo que também eram de nosso interesse como a questão da educação. Ponderei que o feminismo lutava para dar às mulheres mais acesso à educação, combatia a educação diferenciada que educava meninas e meninos a partir de estereótipos que cerceavam as potencialidades femininas e as segregava em profissões femininas e de baixa renda. Considerando que as lésbicas, via de regra, dependiam exclusivamente de seus próprios esforços para sobreviver, uma luta por melhores condições de estudo para as mulheres, o fim da segregação em profissões femininas mal remuneradas, era também uma questão lésbica.

Depois citei a questão salarial, da luta feminista por salário igual por trabalho igual, apontando que o feminismo lutava pela equiparação salarial entre mulheres e homens, uma questão que também nos interessava, por óbvio. Que as mulheres brasileiras ganhavam à época em média 40 a 70% menos do que os homens pelo mesmo tipo de trabalho. À guisa de comparação, deixo link de hoje sobre esse problema que permanece mas em escala bem menor. Diferença salarial entre homens e mulheres chega a 25,2% no Brasil, diz estudo 

Segui falando sobre a questão da violência, da luta feminista contra a violência masculina sobre as mulheres, em forma de estupros, espancamentos, assassinatos que também eram de interesse das lésbicas pois esta também as atingia. Lembrava que lésbicas também sofriam agressões por parte de pais, irmãos, tios, chefes e quaisquer homens da rua. Que casos de lésbicas estupradas e ou agredidas física e psicologicamente, dentro e fora de casa, não eram tão incomuns. Lembrava ainda que o movimento feminista estava criando delegacias da mulher em vários estados brasileiros para atender os casos de violência específica.

Também citei a luta feminista por creches, para que as mulheres pudessem ter onde deixar os filhos quando fossem trabalhar, de fundamental importância para as mães lésbicas que já sabíamos em número significativo apesar de invisíveis. E ainda citei, na questão da saúde, os projetos de centros de saúde feministas onde, além de se ter uma consulta ginecológica numa perspectiva de saúde integral da mulher, já se perguntava de antemão com quem a paciente transava, evitando constrangimentos e uma avaliação equivocada de seu quadro de saúde e consequente tratamento equivocado.

Terminava dizendo que poderia citar outros temas para provar a relação íntima entre feminismo e lesbianismo e que a melhoria das condições de vida de lésbicas e héteros beneficiavam a todas, embora, à primeira vista, pudesse parecer que não.

Feminismo e lesbianismo: a nossa especificidade

Neste subtópico, abordo a questão de se seria válido lutarmos só pelas bandeiras mais gerais do feminismo que, embora também nos interessassem, não davam conta de nossas especificidades. E aponto que ninguém tinha a patente do feminismo, sendo, portanto, melhor falar em feminismos no plural. Um plural onde as lésbicas buscaram criar o seu feminismo partindo da análise da condição da mulher em geral para situar a condição lésbica em particular. Lembrando inclusive que grupos lésbicos haviam começado a usar a palavra lésbica não apenas como indicativo de mulher homossexual mas também como mulher homossexual feminista. A palavra lésbica, para muitas, embutia então uma perspectiva feminista. Essa definição, aliás, é a que vai nortear a Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar.

Apontava que, mesmo na América Latina, onde a movimentação lésbica estava dando seus primeiros passos, já havia a certeza de ser contraditório e contraproducente lutar somente pelas bandeiras gerais do feminismo em detrimento de nossas questões específicas. Que apoiar a luta feminista era importante porque nos ampliava direitos e espaços, como sexo feminino, mas que nossas questões diárias tinham que ser igualmente encaminhadas pelo feminismo e pela sociedade em geral.

Concluía apontando a criação de grupos lésbicos como necessária não só como forma de pressão para garantir nossos direitos humanos mais elementares como também soluções para os problemas imediatos que nos afligiam. E como forma também de construir nosso próprio feminismo e nossas inter-relações com base no que eram considerados princípios feministas: solidariedade, equilíbrio de poderes, divisão igualitária de deveres e prazeres. E ainda como maneira de podermos nos afirmar como seres humanos, a partir de nossas capacidades individuais, sem discriminações por sermos lésbicas.

Lesbianismo e Homossexualidade: mas nós não temos mais a ver com os homens homossexuais?

Neste último subtítulo, busquei refutar a ideia de que as lésbicas teriam mais a ver com os homens homossexuais do que com as mulheres em geral. Refutei demonstrando que as lésbicas, embora tendo em comum com os gays o preconceito e a discriminação contra a homossexualidade, tinham seu lugar social demarcado em primeiro lugar por seu sexo. Como homens em uma sociedade patriarcal, os gays dispunham de uma série de privilégios que as mulheres, de quaisquer orientações sexuais, não tinham. Melhor educação, melhores salários em profissões as mais diversas, mais autonomia pessoal e segurança do que as mulheres em geral. E de que a própria homossexualidade de mulheres ou homens tinha abordagens diferentes a depender da época e da cultura.

Albert Nobbs: duas mulheres que se faziam passar
por homens para burlar o sexismo

De forma geral, houve mais interditos legais contra a homossexualidade masculina exatamente porque os homens tinham uma autonomia  que as mulheres não tinham (ainda é assim em boa parte do mundo). No caso destas, as restrições ao sexo feminino eram suficientes para reprimir a lesbianidade. Não por menos, o travestismo foi utilizado por lésbicas no século XIX, início do século XX, como forma de ganhar alguma autonomia. Lésbicas e outras mulheres adotavam uma persona masculina para ter direito de ir e vir, poder estudar, trabalhar e inclusive casar com mulheres. Em alguns casos de casórios, só se ficava sabendo que o João era de fato uma Maria na hora da morte. Dois exemplos cinematográficos desse travestismo estratégico: Albert Nobbs, protagonizado por Glenn Close na pele de uma mulher que se fazia passar por homem, trabalhando como mordomo, e sonhava em ter uma tabacaria. E Elisa e Marcela, a saga de duas enamoradas que se casaram com uma delas assumindo uma persona masculina. Yentl, de Barbara Streisand, também aborda esse travestismo estratégico, para burlar as limitações impostas às mulheres, embora a personagem seja hétero.



Concluo dizendo que reconhecer essas diferenças não significava não trabalhar com gays, já que tínhamos em comum com eles a repressão à homossexualidade. Significava apenas saber direitinho quando, como e para quem abrir a porta de nossa solidariedade. Na prática, direitos básicos, como o da casamento igualitário e mesmo algum dispositivo para combater a discriminação, foram conquistados na aliança com o movimento homossexual, depois LGBT. Hoje, ambos os movimentos se descaracterizaram a ponto de não mais defender nem direitos da mulher nem de homossexuais.

Poesia  - p. 9

Poesia era um espaço que eu definia como "para as lésbicas poderem falar de como era bonito, sensual, gostoso e ótimo amar outra mulher."

Nesse sentido, sempre busquei trazer poesias de teor romântico e erótico de autoras conhecidas e desconhecidas que apreciavam escrever poesias, mais ou menos elaboradas, atividade pela qual lésbicas sempre tiveram predileção. (Míriam Martinho)

O Corpo Lésbico (Monique Wittig)
Monique Wittig foi uma escritora e ativista feminista francesa que faleceu em 2003 e deixou várias produções literárias e teóricas tematizando a questão lésbica. O Corpo Lésbico é composto de peças líricas, poesia em prosa, que a escritora definiu como um livro escrito por uma mulher para outras mulheres. Reproduzi um drops desse trabalho nesta edição do Chana. Em termos teóricos, vale ler dela em especial O Pensamento Hétero.

E falando em poesia em prosa, Cláudia descreve, em dois poemas sem título, no primeiro, o receio de perder a amada com quem se sente mulher mais do que nunca e de seu cuidado para que o amor não se rompa.

No segundo, provavelmente falando da mesma mulher exigente do primeiro poema, ela descreve a amada como uma provável ativista de alguma causa:

Em Seus Seios, Mônica faz o poema mais simpático da seção, onde o título já é um verso que acompanha o desenho feito com palavras do quadro de sensações de tocar o seio da amada.


Dicas de Leitura p. 10

Neste número, as dicas de leitura tiveram duas páginas dando conta do crescimento da biblioteca do GALF com maior abrangência de temas e categorias. Nessa imagem abaixo, temas especificamente homossexuais.



Não Leia! Linguagem e Repressão - p. 12 - Célia Miliauskas


Em Linguagem e Repressão, a autora vai refletir sobre as limitações que as mulheres tinham (têm ainda?) de falar sobre sexualidade, fosse lésbica ou hétero, incluindo a dificuldade que ela e as amigas encontravam em usar a palavra lésbica, em português, como autoidentificação, preferindo usá-la em outros idiomas como um eufemismo. Tal fato se dava mesmo conhecendo o histórico da palavra lésbica, derivada da Ilha de Lesbos, onde a poetisa Safo amava as mulheres e celebrava esse amor em versos. A autora se pergunta então se, mesmo participando de um grupo lésbico-feminista, ela tinha vergonha de sua sexualidade, encarnada na palavra lésbica, evitando encará-la realmente.

Reflete, tanto com base na entrevista que o GALF fizera com o grupo Sexualidade e Saúde quanto nas cartas recebidas pelo GALF de lésbicas de todo o Brasil, que as mulheres tinham vergonha do próprio corpo, de falar sobre ele e sua sexualidade, e, quando falavam era com constrangimento como se estivessem confessando um delito. E conclui, tomando como gancho o uso da palavra "entendida" muito comum entre lésbicas na década de 80 e acrescentando a letra da música Fala (João Ricardo e Luli - ver abaixo):


Balanço das Eleições - p. 16 (Rosely Roth)

Em Balanço das Eleições, Rosely listou os textos que havia escrito a respeito da política institucional brasileira em relação aos direitos de gays e lésbicas, como As constituições brasileiras (9), Homossexualidade e Leis (10), Entrevista com candidatas (11). E disse que, neste número 12, iria refletir sobre os resultados da eleição de novembro de 1986.

Das pessoas que foram entrevistadas pelo GALF, nenhuma se elegeu (vide CCC 11). Em particular, Rosely lamentou a não eleição de Irede Cardoso (PT) de cuja candidatura inclusive participou  escrevendo um texto com a vereadora sobre a discriminação aos homossexuais, amplamente distribuído entre a população homossexual, e participando de debate na Câmara Municipal.  

Rosely também abordou o inusitado de uma candidatura gay vitoriosa no Rio de Janeiro do escritor,  jornalista Herbert Daniel: 

Como razões para a baixa representatividade das candidaturas mais progressistas, Rosely listou a falta de recursos, pouco tempo de televisão, e a ainda pequena estrutura das organizações de gays e lésbicas e de mulheres para fazer valer suas reivindicações em nível institucional. Para a baixa representatividade no congresso constituinte, apontou o que já havia dito em textos anteriores:

Resultado das eleições nacionais para o congresso constituinte e para as assembleias legislativas 

Na parte final de seu texto, Rosely vai trazer dados detalhados dos eleitos para o congresso constituinte e as assembleias legislativas, com número de votos, porcentagens, que fogem do objetivo deste resgate, mas valem a leitura como documento histórico. De maneira geral, ela apresenta a supremacia do então PMDB e PFL (77% do congresso constituinte) que também se estendeu para os cargos estaduais. Interessante observar que alguns nomes eleitos para o senado e a Câmara ainda estão presentes na história recente do país como Fernando Henrique Cardoso, Lula, Jandira Feghali, Luiza Erundina, Fábio Feldman, Eduardo Suplicy, Fernando Gabeira. Sobre este, aliás, Rosely comentou, enquanto também lamentava as poucas candidaturas vitoriosas de mulheres, sobre a forma diferenciada como o escritor organizou sua campanha como a manifestação "Abraço a Lagoa" e "Fala Mulher" que reuniram milhares de pessoas:
Por último, Rosely vaticina que dificilmente um item criminalizando a discriminação por orientação sexual passaria no Congresso Constituinte, dada a maioria conservadora que se formara com a vitória do PMDB e do PFL, como de fato ocorreu. 

Em Movimento - p. 23

Em Movimento eram notas que eu fazia com base em informações advindas de parlamentares, grupos nacionais e internacionais, notícias da imprensa (mídia tradicional e específica) sempre girando em torno da questão homossexual (e especificamente lésbica) e das mulheres.

GALF se associa à ILGA

Através do projeto Gêmeos, onde um grupo homossexual europeu bancava a taxa de associação anual de um grupo latino-americano à ILGA, o GALF se associou a ILGA. O grupo beneficiado deveria retribuir com troca de informações e materiais. Em janeiro de 87, recebemos a informação de que o GALF havia sido geminado ao grupo sueco RFSI-Malmö. Outros grupos latino-americanos beneficiados foram a Comunidade Homossexual Argentina, o grupo Polén, do México, o Grupo Escorpio do Uruguai e o MHOL da Costa Rica. Seus gêmeos europeus, da Suécia e Noruega. 

VIII Encontro Nacional Feminista

Informe sobre o lançamento do relatório desse encontro, do qual o GALF participou em agosto de 86 e que registrei no CCC 11, previsto para março de 1987 e o endereço para onde escrever e solicitar um exemplar.

Acompanha nota convidando as mulheres, ao visitar o Rio, para conhecer o Ibase - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas que tinha um centro de informações sobre temas relacionados às mulheres. IBASE ainda existe e, em seu site, é possível saber mais sobre sua trajetória e projetos atuais.

Emenda la Rouche derrotada

Informe sobre a derrota da emenda La Rouche, do político de extrema-direita Lyndon La-Rouche, que previa colocar em quarentena pessoas vítimas da AIDS na Califórnia (EUA). A emenda acabou derrotada por uma coalizão de grupos de gays e lésbicas, a Associação Médica da Califórnia por direitos humanos e até a Conferência Católica local. Registrei também que os grupos de gays e lésbicas locais já haviam conseguido derrotar outros 30 projetos de lei discriminatórias contra homossexuais no estado.

Grupo Atobá esclarece sobre AIDS

Informe sobre AIDS de um dos poucos grupos que surgiu na segunda metade dos anos oitenta no Rio de Janeiro, o grupo gay Atobá, fundado em 28 de junho de 1986. De fato, o grupo informa que vinha promovendo debates sobre a questão da AIDS à convite do Ministério da Saúde, apontando para uma parceria que seria a tônica dos grupos de gays e lésbicas nos anos 90, principalmente a partir do governo de FHC, cujo Ministro da Saúde, José Serra, vai trabalhar bastante com ONG contra a epidemia.

Na proposta do Atobá, muito do que vai ser desenvolvido nos anos 90 no combate a AIDS: cartazes, panfletos, cartilhas, com informações sobre a epidemia pela ótica de que todas as relações sexuais eram normais, portanto, infundada a discriminação aos homossexuais. Também pesquisas sobre a realidade dos gays, e pedido de apoio às entidades que trabalhavam com gays, hemofílicos e usuários de drogas. Seu endereço era no bairro de Magalhães Bastos, zona oeste do Rio.

Imagem original do site do Coletivo
Feminista Sexualidade e Saúde

Sexualidade e Saúde - p. 25

Entrevista com duas integrantes do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Maria José de Araújo e Melody, um contemporâneo do GALF que existe até hoje e num local bem próximo do endereço anterior. Em 1986, o coletivo era um pioneiro do gênero no Brasil e atraiu muito a atenção das integrantes do GALF, principalmente a minha que sempre achei a proposta de saúde integral das mulheres muito interessante. Tanto que o trabalho da Rede de Informação Um Outro Olhar, a partir de 1995, vai ter a produção de material sobre saúde lésbica, dentro da perspectiva da saúde integral da mulher, como um de seus eixos centrais. Elas por sua vez foram influenciadas pelo trabalho do Dispensaire des Femmes (1978-1987), em Genebra (Clínica de Mulheres), onde uma das entrevistadas, Maria José de Araújo, ficou por 7 meses. Rina Nissim, fundadora desse dispensário, também foi integrante do grupo Vanille-Fraise que organizou a 8a Conferência do Serviço de Informação Lésbica Internacional. em 1986.

A entrevista extensa e detalhada, da qual vou extrair dados gerais, revela, sobretudo, nossa curiosidade sobre como funcionava o grupo, os serviços oferecidos, horários de atendimento, formas de financiamento, conquistas e dificuldades. Na época elas tinham três atividades principais, uma de formação de mulheres para o trabalho no ambulatório, grupos de reflexão e o atendimento ginecológico propriamente dito. Cobravam o valor da consulta de acordo com a renda familiar da cliente e recebiam apoio financeiro de duas organizações internacionais.

Num à parte, a propósito do histórico da organização, elas tiveram, assim como o GALF,  uma espécie de prólogo, chamado Sexualidade e Política, em 1981, que rachou por questões político-partidárias. Quando Maria José voltou de sua estadia no Dispensaire des Femmes em Genebra, em 1983, ela se reuniu com seu ex-coletivo, e elas decidiram refundar a organização com o nome Sexualidade e Saúde, um nome estratégico para conseguir financiamento. A diferença com o prólogo do GALF, que foi o coletivo do grupo lésbico-feminista, é que várias das integrantes do Sexualidade e Política de fato migraram para o o novo Sexualidade e Saúde enquanto, no caso do GALF, apenas duas, eu em particular, fizeram ponte do LF para o GALF. A estratégia de mudança do nome foi correta já que dificilmente, por exemplo, duas organizações cristãs iriam financiá-las com a denominação anterior.

Retomando as atividades do grupo em 1986, a formação para o atendimento consistia em um ano de ensino teórico básico em ginecologia e a prática de como fazer autoexame, toque manual, exame de secreção vaginal e de urina, Papanicolau, exame dos seios, tratamento de todas as infecções vaginais. Segundo as entrevistadas, as mulheres saiam com melhor formação de que a de um agente de saúde estatal.

As consultas eram de uma hora e foram definidas da seguinte forma pelas entrevistadas:

Ela vê a vagina

A terceira atividade principal eram os grupos de reflexão com temas como "sexualidade, menopausa, adolescência, contracepção e alimentação. A questão da sexualidade fazia parte de todos os grupos de reflexão, como educação sexual, mas numa relação horizontal entre as integrantes do coletivo e as mulheres que vinham participar das reuniões, trocando experiências, contando suas histórias.


Elas também desenvolviam trabalhos externos levando sua expertise de autoexame e formação de agentes de saúde feminina, grupos de reflexão para encontros e conferências de mulheres e feministas, e, em nível estatal, para postos de saúde. Disseram que eram muito solicitadas, em nível de Estado, para palestras e oficinas, embora ainda houvesse pouco retorno governamental a seu trabalho. Por fim, que também tinham reuniões com uma psicóloga, para resolver os perrengues internos, através do psicodrama. E reuniões de autogestão administrativa e de organização de seminários em busca de uma certa homogeneização nas abordagens.

O sono, de Gustave Courbet

Obviamente também perguntamos sobre a presença de lésbicas tanto como integrantes do coletivo quanto como usuárias dos serviços da organização. No que diz respeito a lésbicas no coletivo, afirmaram que sabiam efetivamente de bissexuais. Quanto às usuárias, afirmaram que sim mulheres lésbicas vinham aparecendo nas consultas com certeza porque inclusive, na consulta, na anamnese, já havia uma pergunta sobre com quem a mulher se relacionava.

Perguntadas pelo que mais as lésbicas procuravam as consultas, afirmaram que era, em geral, exame de rotina, exame de toque, Papanicolau, saber se tinham alguma infecção. Neste particular, elas disseram que as doenças sexualmente transmissíveis entre lésbicas eram cândida, clamídia, gardnerella, gonorreia e tricomonas, podendo ser transmitidas pelo dedo, chanacomchana, sexo oral. No tratamento, era necessário que a companheira da consulente também fosse medicada. Elas citam também medidas de higiene que as mulheres deveriam tomar durante o tratamento e sempre. Apesar de conhecer esses  aspectos básicos no atendimento de lésbicas, as entrevistadas afirmaram ter dificuldades com esse público:

E a entrevista termina com as entrevistadas convidando o GALF para uma colaboração com o Sexualidade e Saúde para aprimorar o atendimento às lésbicas. O GALF não tinha uma perspectiva de trabalho com saúde. Com a sucessora do GALF, a Rede de Informação Um Outro Olhar nós vamos enfatizar esse tema e inclusive ter interações com o Sexualidade e Saúde.


Esta entrevista foi feita há 38 anos, e, em sua conclusão, deixei o endereço do Coletivo Sexualidade e Saúde. Repito o endereço atual, com o link do site pra quem quiser conferir a quantas elas andam, fazer comparações com esta conversa dos anos 80 ou mesmo se consultar.

Rua Bartolomeu Zunega, 44
Pinheiros – São Paulo/SP | CEP: 05426-020 +55 11 3812-8681

Troca-cartas (p. 30)
Para um bom papo, aquela transa, um grande amor

Neste troca-cartas, dei continuidade aos anúncios mais personalizados, que viraram regra, com indicações de passatempos e o tipo de contato que as anunciantes queriam, se para compromisso, amizade, transa. 

A maioria dos classificados desta edição foi de mulheres de São Paulo, tanto capital e região metropolitana quanto do estado (14). Seguidos de anúncios dos estados da BA (3), MG (2), RS (2), PR (1), RJ (2), DF (1), PE (1).



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