Memória Lesbiana: 42 anos do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) entre fato e ficção

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Míriam Martinho e Rosely Roth barradas no Ferro's Bar em 19/08/1983


Há 40 anos, oficialmente no dia 17 de outubro de 1981, eu fundava, com Rosely Roth e colaboradoras, o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), estatutariamente sob o codinome de Grupo Ação de Liberação Feminista. O registro do grupo como feminista, preservando a sigla “GALF”, visava evitar problemas com os cartórios (que costumavam dificultar o registro de grupos de gays e lésbicas na época) e pragmaticamente atender nossas necessidades de abrir conta em banco, ter uma caixa postal, receber dinheiro via vale postal e outras formalidades. Visava também proteger  as lésbicas que nos escreviam (a maioria no armário), caso tivessem que escrever o nome do grupo por extenso. O grupo ficaria incomunicável, entre a maioria das sapatas da época, se usasse a palavra lésbica para esses trâmites institucionais. Outros grupos do período encaravam o registro no cartório até como parte da luta homossexual, mas nós avaliávamos que, na relação custo-benefício, não valia o custo. Além disso, para uma organização que vendia um boletim com o nome “Chanacomchana”, assumir-se no cartório era o de menos.


Neste resgate, retomo partes do texto 19 de agosto: há 38 anos o GALF invadia o Ferro’s Bar, onde já abordara a trajetória do GALF, mas trazendo novos dados e esclarecimentos sobre a hoje histórica e muito mistificada sigla. Neste texto, busco em particular desconstruir um pouco essas mistificações. Para tal, entre outras coisas, divido a trajetória do GALF em dois períodos: do início em outubro de 81 até meados de 1985 e de meados de 1985 até seu final em 1989 (oficialmente em março de 1990).


O período inicial do GALF (10/81 a 08/ 85) corresponde à fase em que a organização adota o histórico do coletivo que o precedeu, o Grupo Lésbico-Feminista(05/1979-06/1981), divide sedes com o grupo gay Outra Coisa de Ação Homossexualista e inicia a produção do boletim ChanacomChana a partir de dezembro de 1982, além de promover a hoje célebre invasão do Ferro’s Bar. Também é o período em que o grupo tentou sem sucesso fazer com que o Movimento Feminista incorporasse a questão lésbica à sua agenda oficial.


O segundo período, de meados de 1985 a 03/1990, corresponde ao fim da identificação do GALF com seu predecessor LF (pela constatação de que de fato não houvera uma continuidade real entre os dois coletivos); à perda das sedes públicas (as reuniões do grupo passaram a ocorrer em meu apartamento); à maior divulgação do grupo, em particular pelas aparições de Rosely Roth na mídia impressa e televisiva, à aproximação com o incipiente movimento lésbico internacional, à participação em encontros lésbicos internacionais e ao progressivo distanciamento do movimento feminista que culminaria com o fim da própria organização.


GALF primeira fase (10/81 a 08/85): problemas de identidade

Nos seus primeiros 3 anos e meio aproximadamente (de outubro de 1981 a meados de 1985), o GALF vai adotar a trajetória do Grupo Lésbico Feminista (LF), coletivo que o precedeu, fato observável nos históricos que eu mesma redigi nos boletins ChanacomChana até sua oitava edição (agosto de 1985). Como hoje existe muita fabulação sobre o GALF, com gente se dizendo integrante do mesmo sem nunca ter sido, vale aprofundar esse tema, esclarecendo a parte que possivelmente nos toca nessas mistificações.


A incorporação da trajetória do Lésbico-Feminista ao histórico do GALF, em seus primeiros anos, se deveu a uma somatória de fatores, entre simplórios e surreais, que criou uma ilusão de continuidade em nossas cabeças: a sede que Rosely encontrara, no centro de São Paulo (Praça da República), onde também nos conhecemos, ter sido pensada para o lésbico-feminista (que morreu na praia); eu e Rosely termos vindo, a partir de momentos distintos, desse coletivo; o tempo que separava o fim do LF do início do GALF ter sido ínfimo (em torno de 4 meses) e, sobretudo, nossa decisão de continuar com um grupo específico de lésbicas em vez de submergir nossa identidade em alguma identidade feminista genérica (lero muito em voga na época). Fora também algum sentimentalismo barato pelo fim do coletivo anterior.

Vendo em perspectiva, deveríamos ter deixado o Lésbico-feminista morrer em paz em vez de ter-lhe dado uma sobrevida artificial de três anos e meio. Deveríamos ter fundado um outro grupo lésbico-feminista, mas com nome bem distinto do anterior, já que eu e Rosely estávamos também iniciando uma interação (não estivemos juntas no LF). De qualquer forma, o GALF só vai ter três assinaturas e uma única identidade: a do cartório, 
Grupo Ação de Liberação Feminista, Grupo de Ação Lésbico-Feminista (como aparece nos dois primeiros números do Chana, 82-83) e Grupo Ação Lésbica-Feminista de maio de 1983 em diante (como pode ser constatado nos editoriais e pequenos expedientes dos boletins Chanacomchana e Um Outro Olhar.

 

(CCC 3, p.1-2)

Só a partir de meados de 85, nos cai de vez a ficha de que a suposta continuidade entre os dois coletivos não só nunca existiu de fato como, ao contrário, na verdade, o que houve foi ruptura entre ambos, ruptura e abandono. A maioria das lésbicas que participou do lésbico-feminista ou deixou a militância ou se meteu no armário do heterocêntrico movimento feminista do período, algumas inclusive agindo paradoxalmente como agentes de invisibilização lésbica. Em consequência, já nos ChanascomChana de 9 a 12, cessam os históricos do GALF, onde aparecia incorporada a trajetória do LF (nos números 11 e 12 do Chana desaparece inclusive o logo LF), processo que continua nos boletins Um Outro Olhar, do número 1 ao número 10, também publicados pelo GALF.

No final de 1986, num histórico do ChanacomChana para associadas do GALF, eu já fazia um ajuste de contas com os fatos e separava o GALF do LF (ver mais no tópico sobre a segunda fase do GALF) . E, no último histórico do GALF que publiquei no boletim Um Outro Olhar 9, de novembro de 1989, de fato um balanço da primeira década de mobilização lésbica no Brasil, 1979-1989: 10 anos de movimentação lésbica no Brasil (p.8-17), repito essa conscientização aí já para lá de consolidada. Nesse balanço, o histórico do Grupo Lésbico-Feminista é apresentado como realmente se deu, de maio de 1979 até meados de 81 (oficialmente até outubro de 1981), e o do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), a partir de outubro de 81 até seu término extraoficial no final de 1989. Essa separação não foi, claro, uma negação dos históricos que escrevi nos primeiros números do ChanacomChana, que incluíam as atividades do LF como parte das do GALF, mas sim um ajuste de contas com os acontecimentos e uma depuração da identidade dos dois coletivos que de comum só tiveram mesmo duas ativistas e o termo lésbico-feminista. Não raro nossos desejos não combinam com os fatos.


Vale salientar outros aspectos distintivos entre os dois coletivos como o contexto em que se desenvolveram e sua composição. O Grupo Lésbico-Feminista, surge, a princípio, como um subgrupo do grupo Somos, em maio de 1979, e sofre grande influência deste em seu perfil. Vai ser, em seu breve tempo de existência, um grupo fundamentalmente de socialização e pegação com um núcleo de militância. Nesse sentido, chegou a ter umas 30 mulheres circulantes, mas com no máximo 10 delas tendo algum ativismo real. Vai emergir no momento de ascensão do primeiro ciclo do movimento homossexual no Brasil, de 79 a 80,  ainda sob os eflúvios contraculturais, e desaparecer com o início do refluxo desse movimento em meados de 81. As polêmicas que enfrentou foram relativas a seu posicionamento no racha do Somos (Lampião, n. 25, p. 8), ao tema da autonomia do movimento homossexual frente às tentativas de cooptação da esquerda ortodoxa (Convergência Socialista) e ao impacto de sua entrada no heterossexista movimento feminista do período. Era um coletivo mal alinhavado, muito anárquico, que não conseguiu adquirir consistência para sobreviver mais do que dois anos. Apesar de haver mantido uma única identidade natural, Grupo Lésbico-Feminista (LF), caracterizou-se por ter mais assinaturas do que tempo de vida, incluindo uma que excluía o termo lésbico (sic). Foi logo absorvido pelo movimento feminista.

A propósito da questão da assinatura sem o termo "lésbico", no texto Ai, que São Paulo gostoso..., de Leila Míccolis, publicado no Lampião da Esquina 22 (03/1980), p.3, sobre a segunda reunião organizadora do I Encontro Brasileiro de Homossexuais  (03/02/1980 em SP), lê-se o seguinte:

Com exceção do BEIJO LIVRE (Brasília) e do GAAG (Rio), todos os demais grupos se fizeram representar: ATUAÇÃO FEMINISTA/SP (Déa e Conceição) AUÊ/ RIO (Leila e Marcelo). EROS/SP (Luis Antônio e Luzia). LIBERTOS/GUARULHOS (Magal e José). SOMOS/RIO (João Carneiro e Yone), SOMOS/SP (Emanuel e Jimmy). SOMOS/SOROCABA (Hilário e Fran).  

No mesmo artigo, Míccolis também explica quem era o tal Atuação Feminista-SP, ninguém mais do que o camaleônico Grupo Lésbico-Feminista em mais uma de suas inúmeras assinaturas. 

No domingo, o tempo de uma hora estipulado para o almoço teve de ser um pouco ampliado, pela demora de atendimento nos barzinhos da 14-Bis. Eu e algumas pessoas do Auê ficamos com a turma da Atuação Feminista. ex-Lésbico Feminista (tiraram o "lésbico" por repercutir de forma muito violenta entre as pessoas).  

O GALF, por outro lado, já começou como um grupo autônomo, tendo seu registro em cartório como ponto de partida. Vai se desenvolver no período de esvaziamento do movimento homossexual que se inicia em meados de 81 e se mantém por toda a década de 80. Sempre foi um grupo pequeno, com uma média de 5, 6 integrantes durante sua longa trajetória, e com um perfil fundamentalmente de estudo e militância. Nada do clima “relações abertas, sexo, drogas e rock’n´roll” característico do LF, ainda que também tenha formado namoradas em seu tempo de existência. Perto do LF, o GALF era careta, felizmente. Conseguiu obter a consistência necessária para sobreviver cerca de longos 8 anos e meio, sobretudo em função da produção e venda dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar. Como desafios, enfrentou o questionamento da identidade lésbica-homossexual que levava inevitavelmente à desmobilização política, o heterossexismo do movimento feminista que hostilizava a politização das questões lésbicas, a perda das sedes públicas, no início de 1985, e o esvaziamento do movimento homossexual. Foi um coletivo de resistência e vanguarda (num contexto particularmente adverso) que o movimento feminista nunca conseguiu deglutir. E, como já dito, teve apenas uma identidade fundamental: Grupo Ação Lésbica Feminista. 


Destaques da linha do tempo da primeira fase do GALF (10/81-08/1985):

Com o Movimento Homossexual do período
, sobretudo na parceria com o grupo gay Outra Coisa, o GALF desenvolveu várias atividades, com destaque para:

jun. de 82 (com o Outra Coisa): “Viva a Homossexualidade” (debates sobre feminismo e lesbianismo e política e desejo; exibição dos filmes “O homem que deu cria” e “Trotta” na sede dos dois grupos. E debate sobre “homossexualismo e partidos políticos” no Teatro Ruth Escobar).

ago. de 82: encontro com o psicanalista e filósofo Félix Guattari na sede do GALF-Outra Coisa.

out. de 82: debate sobre feminismo e homossexualismo com representantes de todos os partidos políticos na sede do GALF-Outra Coisa.


dez. de 1982: Encontro do GALF e do Outra Coisa e outras entidades civis com o governador recém-eleito Franco Montoro (o primeiro a ser diretamente eleito ainda sob o regime militar). Foram reivindicadas, entre outras coisas, que o Secretário da Segurança Pública pusesse fim às prisões arbitrárias de homossexuais feitas pela polícia civil e militar e ao Secretário de Saúde que apoiasse a exclusão do parágrafo 302.0 do Código de Saúde do Inamps que rotulava o homossexualismo como “desvio e transtorno sexual”.

05 de abril de 1983: Encontro com o Secretário de Segurança de São Paulo, Manoel Pedro Pimentel, onde reivindicou um tratamento menos preconceituoso das forças de segurança em relação a gays e lésbicas, repetindo a reivindicação já feita ao governador.

23 a 29/05/1983: Debate sobre Autonomia e os Grupos Alternativos com representantes de grupos homossexuais, de feministas e negros. Mostra de arte gay e lésbica; exibição dos vídeos “A Dama do Pacaembu” e “A Mulher de Barba”, de Rita Moreira, e do filme alemão “Henrique”. Festa no Teatro Ruth Escobar


Integrantes do GALF que participaram da manifestação do Ferro's Bar (exceto Liete e Maria Rita)

19/08/1983: Manifestação do Ferro’s Bar – após serem proibidas de vender o boletim ChanacomChana, no Ferro’s Bar, tradicional ponto de encontros das lésbicas paulistanas e de todo o país, em 23/07/1983 e de distribuir panfleto, em 13/08/1983, convocando para a manifestação, as integrantes do GALF, com seu parceiro Outra Coisa, e outros grupos gays e feministas “invadiram” o Ferro’s Bar e obtiveram dos donos do bar o direito a vender o boletim sem problemas. As integrantes do GALF que participaram da manifestação foram Célia Miliauskas, Elisete Neres, Luiza Granado, Míriam Martinho, Rosely Roth e Vanda Frias. Entre os gays identificáveis pelas fotos, Ricardo Calil Cury e Antônio Carlos Tosta (do Outra Coisa) e Nestor Perlongher, na época do Somos (entre os gays, há outros atores a identificar nas fotos). As feministas presentes no evento Bete Feijó, Maria Teresa Aarão (Teca), Sonia Álvarez, Míriam Botassi e Regina Estela.

Elisete Neres foi uma das integrantes do GALF que participou
da manifestação do Ferro's Bar e acaba de partir. R.I.P.

Agosto de 1983

– perda da sede da Rua Aurora, por excesso de atividades no espaço (sic.). O GALF e o Outra Coisa vão ocupar, durante o segundo semestre de 1983, a sede que fora do Grupo Somos que se extinguira, na Rua da Abolição, Bela Vista, e, de janeiro a março de 1984, um apartamento na rua Teodoro Baima, na República, perto do início da Consolação. Após a desestruturação do Outra Coisa, no final de março de 1984, o GALF tenta dividir um espaço com o Centro de Informação Mulher (CIM), de abril a dezembro de 1984, quando arbitrariamente este grupo despeja o GALF do local em 21/12/1984 (exemplo de sororidade feminista).

Com o Movimento Feminista do período, o GALF participou de várias atividades, tais como:


março de 1982 – participação no 8 de março, Dia Internacional da Mulher, com venda de camisetas, distribuição do tabloide ChanacomChana 0 e um texto sobre a data. Também interferimos para que se colocasse uma cena sobre a violência contra lésbicas no teatrinho que o grupo SOS-Mulher apresentou no evento.

início de maio de 1982 – participação no intitulado “happening” do Ibirapuera, onde o grupo montou uma barraquinha para vender camisetas, livros e frutas anunciadas com plaquinhas que diziam “coma uma frutinha para transar com sua vizinha” ou “o enrustimento mata“.

julho de 1982 - participação no IV Encontro Nacional Feminista, Campinas, São Paulo

Setembro de 82 – Participação do Festival das Mulheres nas Artes onde fez contatos e entrevistas com feministas internacionais como Antoinette Fouque (França), Dacia Maraini (Itália) e Kate Millet (EUA). Também passou uma moção de repúdio contra a proibição da música Franchitude de Francha, pela Censura, e garantiu que fosse apresentada hours concours.



março de 1983 – participação na organização do 8 de março e da festa política referente à data no Museu de Arte de São Paulo.

março de 83 – encontro com a feminista Dacia Maraini que voltara ao Brasil entre março e abril para dar um curso de roteiro na Faculdade Armando Álvares Penteado (Mulherio, ano III, n. 13, maio/junho de 1983). Em históricos do GALF consta que esse encontro teria se dado na sede do GALF, mas de fato ele  ocorreu no Instituto Italiano (conforme fotos do mesmo).

abril de 1983 – Intervenção num debate sobre Sexualidade e Violência, do grupo SOS Mulher, ocorrido no Sindicato dos Jornalistas, onde entramos de máscaras, para simbolizar a situação da mulher homossexual, e distribuímos o texto intitulado Sobre Violência, onde conclamávamos o movimento feminista a também defender as lésbicas.


Setembro de 1984 - GALF consegue passar trechos de texto sobre saúde lésbica, que também propunha a exclusão do código 302.0, num documento feminista apresentado durante I Congresso Brasileiro de Proteção Materno-Infantil no Senado Federal.

Novembro de 1984 – Participação no I Encontro Nacional de Saúde da Mulher, dos dias 15 a 18 de novembro, em Itapecerica da Serra.

Maio de 1985 – Participação de Rosely Roth no primeiro programa da Hebe Camargo sobre “homossexualismo feminino” no dia 25 de maio de 1985.

Destaque do GALF não relacionado diretamente ao movimento homossexual ou feminista (vale salientar que a participação do GALF em encontros, congressos, simpósios, etc., foi intensa. Aqui registrei só alguns eventos).


29 de junho de 1985 - Vivências Lésbicas – atividade com apresentação do filme Liana e do programa Hebe Camargo, com participação de Rosely Roth, seguido de debate com participação da vereadora Irede Cardoso, do psiquiatra Ronaldo Pamplona da Costa e da integrante do GALF Rosely Roth.

ChanascomChanas: produzi e editei neste período 8 edições do ChanacomChana, a saber:

Dez. 82 - publicação do CCC 1
Fev. 83 - publicação do CCC 2
Maio 83 – publicação do CCC 3
Set. 83 – publicação do CCC 4
Maio 84 – publicação do CCC 5
Nov. 84 – publicação do CCC 6
Abr. 85 – publicação do CCC 7
Ago. 85 – publicação do CCC 8

GALF segunda fase (08/85 até 1989): Separando o Joio do Trigo, tornando-se nacional e internacional

A partir de agosto de 1985, como já dito anteriormente, caiu de vez a ficha do GALF de que a suposta continuidade entre ele e o coletivo do grupo lésbico feminista, cujo histórico adotara a princípio, não só nunca havia existido de fato como, ao contrário, na verdade, o que houvera fora ruptura entre ambos, ruptura e abandono. Um evento do qual o GALF participou, o III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, ocorrido em Bertioga, região litorânea de São Paulo, dos dias 31 de julho a 4 de agosto, funcionou como o estalo que faltava sobre essa realidade. Neste evento, o GALF vai se encontrar com outro GALF (o Grupo de Autoconsciencia de Lesbianas Feministas), do Peru, com quem já se correspondia, e organizar uma reunião lésbica ao ar livre perto de um bar da colônia de férias que acolhia o encontro. Nessa reunião, lésbicas latino-americanas, do Canadá, EUA e Europa relataram que, para seus respectivos Movimentos Feministas, a questão lésbica ainda era um tabu, sendo ou simplesmente omitida ou abordada raramente e de forma superficial. Dessa reunião, participaram ex-integrantes do LF (Grupo Lésbico-Feminista (05/1979-06/1981), como Marisa Fernandes e Vilma Monteiro, que até deram seus pitacos, mas não demonstraram qualquer interesse em voltar a ter uma militância lésbica. Pareciam estar ali a passeio numa reunião social.

"Não sofra calada", Míriam Martinho, 08/07/1982 - Crítica ao grupo feminista SOS-Mulher

Retomando, das lésbicas que participaram do LF, uma boa parte migrou para o grupo SOS-Mulher que, enquanto existiu, de outubro de 80 até agosto de 1983, tornou-se arqui-inimigo do GALF pois, apesar da presença marcante de lésbicas na organização, pregava que as sapatas deveriam submergir a identidade lésbica na identidade feminista e trabalhar para melhorar a vida das mulheres heterossexuais, esquecendo da própria. A falta de consciência  era tal que até a violência contra as mulheres míopes era abordada pelo grupo, menos a violência contra as lésbicas. Uma das plantonistas da entidade, Teresa Vilalba, veio até a sede do GALF pedir nossa ajuda para bolar uma cena contra a violência contra as lésbicas, no teatrinho do SOS, porque no próprio não conseguia achar alguém que a ajudasse. Nossas respostas a esse grupo se deram na forma de tirinhas irônicas (desenhos), intervenções, debates, sempre gerando enormes pitis de parte das alienadas. E, claro, o mais maluco da história é que boa parte das alienadas vinha exatamente do primeiro coletivo de lésbicas brasileiro, o Lésbico-Feminista. Reproduzo um trecho da tese da antropóloga Heloísa Pontes que exemplifica bem do que estou falando:

Do palco aos bastidores – O SOS-Mulher (SP) e as PráticasFeministas Contemporâneas”, p.143


Outras que haviam deixado o lésbico-feminista e sumido do mapa, como as citadas Marisa Fernandes e Vilma Monteiro, embora não fossem hostis à organização lésbica, como as do finado SOS-Mulher, também aderiram ao “clube das comadres feministas homossexuais do armário político” e faziam de conta que a questão lésbica não era mais com elas.

Como poderia então o GALF que pregava postura exatamente oposta à dessas mulheres ter algo a ver com elas? Algo de errado não estava mesmo certo, e vimos que era hora de acertar os ponteiros do relógio. Num histórico sobre o Chanacomchana, provavelmente do final de 86 (pois Rosely começara a aparecer em programas de TV, no final de 1984), enviado às associadas do GALF, eu dizia:


[...] Nos últimos dois anos, em consequência da divulgação do trabalho do GALF, através da televisão e de alguns jornais, o ChanacomChana vem se tornando mais conhecido das lésbicas brasileiras, tendo se expandido para outros estados além de São Paulo. Por meio de sua publicação, temos podido conhecer mais da nossa própria realidade, enquanto lésbicas, e podido reorientar nossas abordagens para melhor adequá-las a nossas vivências.

 

No início desse histórico do Chana, eu afirmava, fazendo a já bem atrasada retificação:


ChanacomChana foi publicado, pela primeira vez, em janeiro de 1981, como um pequeno jornal, pelo coletivo que compunha o Grupo Lésbico-Feminista (1979-1981). Nesse mesmo ano, também foram feitas outras tentativas de editar um novo número do jornal, então com a participação de mulheres de outros grupos, mas a divergência de ideias quanto à linha de publicação a ser seguida levou ao abandono do projeto. Ainda em 1981, o próprio Grupo Lésbico-Feminista desmobilizou-se, sendo que a maioria de suas integrantes deixou de atuar politicamente. Das que continuaram militando, algumas partiram para atividades em outros grupos feministas enquanto outras, entre as quais me incluo, decidiram dar continuidade a um trabalho especificamente lésbico.

Demos o nome de Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) a essa nova fase de atuação onde passamos a enfatizar mais a leitura de textos e a desenvolver ações voltadas também para lésbicas não-feministas.

 

Destaques da linha do tempo da segunda fase do GALF (08/85 até 1989):

segundo semestre de 1985  

Aproveitando a abrangência que o grupo adquiriu, graças a sua divulgação pela mídia da época, o GALF iniciou seu sistema de associação, forma de arrecadar fundos junto às lésbicas oferecendo informativos com serviços de correspondência pessoal, guia de bares e boates, históricos do CCC e do GALF, endereços de outros grupos de gays e lésbicas, indicações de livros (cópias do mesmos inclusive) e programação de eventos públicos da organização. Nesse momento, o CCC ainda era vendido separadamente da associação, o que mudará em 1988.

Também tivemos a visita de duas integrantes do grupo suíço Vanille Fraise (baunilha-morango), Toni e Viviane, que representava o ILIS (Serviço de Informação Lésbica Internacional) nesse período e iria organizar a 8ª Conferência do Serviço de Informação Lésbica Internacional em março de 1986. Elas vieram nos conhecer e, posteriormente, financiaram a minha passagem aérea  para a Conferência em Genebra. Toni era espanhola, mas também falava português, o que facilitou bastante a conversa.

Manifesto pelo Asilo Político de Lésbicas
de todos os países - ILIS

março de 1986 - Participação na 8ª Conferência do Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS), em Genebra, na Suíça. Fui acompanhada de uma colega e colaboradora do GALF, Denise Bretas, que se autofinanciou. Sem dúvida, o encontro mais interessante e emocionante de que participei. Lésbicas de várias partes do mundo, fora as europeias naturalmente, trocando experiências de como era ser lésbica nos países os mais diversos. Desta conferência fundamental, decorreram vários encontros regionais na América Latina e Ásia, realizados nos anos seguintes. Na passeata, pela superlimpa e tranquila cidade de Genebra, exclusivamente lésbicas. 

Abril de 1986 – Segunda participação de Rosely Roth no programa da Hebe Camargo para debater “homossexualismo feminino” em 29/04/1986. 

7-8 de agosto de 1986 – Participação no 8º Encontro Nacional Feminista com uma oficina sobre lesbianismo que foi a mais concorrida do encontro. 92 mulheres apareceram ao evento, apesar da oficina “misteriosamente” não constar da programação do encontro no dia previsto para sua realização. As lésbicas presentes à reunião solicitaram reuniões só de lésbicas para próximas oficinas, o que nos pareceu importante com vistas à criação de uma futura rede lésbica nacional, o que poderia levar a encontros estaduais e nacionais na perspectiva da criação de um movimento lésbico autônomo.


4 julho de 1987 - Com a perda das sedes públicas, as reuniões passaram a se dar em meu apartamento, mas apenas com as sapatas mais próximas, o que obviamente restringiu bastante a atuação do grupo. Para sanar esse problema, a partir de julho de 1987, o GALF volta a fazer reuniões, agora com suas associadas, em um bar de lésbicas, o Enfin’s Bar, gentilmente cedido por suas proprietárias. No relatório da integrante do GALF, Maria Luiza, sobre o I Encontro de Associadas do GALF, mais de 30 mulheres compareceram, incluindo duas do Rio, duas do Espírito Santo e uma de Belém do Pará, dando um caráter nacional à reunião.

4 a 6 de setembro – Participação no 9 º Encontro Nacional Feminista em Garanhuns, Pernambuco, graças à colaboração de Ubiratan da Costa e Silva, do Grupo Lambda – Movimento pela Livre Orientação Sexual

19 de setembro – II Encontro de Associadas do GALFTambém realizado no bar Enfin’s contou com maior número de associadas em sua organização e durou das 9 às 17:00, com o tema “Sexualidade” e a exibição do vídeo “Corações Solitários”.

19 a 26 de setembro – Reunião de Luiza, Míriam e Rosely do GALF com as holandesas Ingrid Zwartjes e Sylvia Borren do ILIS (o secretariado do ILIS estava então com o grupo holandês Interpot – Política Lésbica Internacional) para discutir estratégias de aprimoramento do trabalho do GALF e projetos de financiamento para o grupo. Através desse contato, o GALF teve financiamento de duas passagens aéreas para participar do I Encontro de Lésbicas Feministas Latino-americanas e do Caribe, e, pela coordenadoria do próprio evento, de mais uma, de modo que fomos em três para o citado encontro.

14 a 17 de outubro – participação no I Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-americano e do Caribe. Ver apanhado do evento aqui (UOO 2, p.4). Infelizmente, esse encontro que prometia muito para nós do GALF, porque tínhamos conseguido financiamento para três integrantes do grupo, marca o início dos problemas psiquiátricos de Rosely Roth. Ela já havia começado a se comportar de maneira bem estranha logo após as oficinas que fizemos com as integrantes holandesas do ILIS, em setembro. No México, durante o encontro feminista latino-americano e do Caribe, que ocorreu depois do encontro lésbico, ela teve o primeiro surto propriamente dito, vendo e ouvindo coisas que não existiam, tendo sido atendida por uma psiquiatra que se encontrava no evento.

setembro a dezembro de 1987 – Publicação do primeiro número do boletim Um Outro Olhar, com o qual substituímos o Chanacomchana. 

fevereiro a março de 1988 – O precário estado de saúde de Rosely a tirou da militância, e colocou o restante do grupo, que havia voltado a crescer nos últimos anos (de meados de 85 a 87), em marcha ré. Mesmo assim, em 1988, retomamos o sistema de associação do GALF e informamos às associadas que estávamos fazendo a fusão desse sistema com a publicação do boletim Um Outro Olhar, já que as duas atividades em separado tinham se mostrado inviáveis.

1988-1989 – Foram anos em que o GALF se ausentou de atividades externas, dedicando-se à publicação do boletim Um Outro Olhar, que mais uma vez provou ser o eixo de sustentação do grupo, organizando sua biblioteca, ampliando o número de associadas e gestando a Rede de Informação Um Outro Olhar, sua substituta a partir de abril de 1990. A Rede foi uma decorrência da real experiência do GALF tanto do ponto de vista prático quanto ideológico, vindo a ser mais lesbocentrada do que o GALF. Nos boletins Um Outro Olhar, que foram publicados com maior periodicidade nesses dois anos de 1988-89, já se observa esse maior lesbocentramento, com uma boa participação de lésbicas de todo o Brasil. Me autocitando, no artigo 19 de agosto: há 38 anos o GALF invadia o Ferro’s Bar:

O GALF terminou em função do esgotamento de seu ciclo de ativismo junto ao Movimento Feminista. Ficou claro para suas integrantes o quanto era contraproducente levar as lésbicas para o feminismo e, ao mesmo tempo incentivá-las a sair do armário, quando o próprio Movimento Feminista impunha a despolitização das vivências lésbicas empurrando-as para o terreno do privado, da chamada “opção sexual”. Nada incomum, no período de existência do GALF e até na década de noventa, encontrar grupos feministas formados majoritariamente por lésbicas, mas exclusivamente referentes às chamadas questões de gênero, ou seja, questões voltadas para a resolução dos problemas das mulheres heterossexuais em seus relacionamentos com homens. Não havia mais porque manter um grupo lésbico-feminista nesse contexto. 


Novembro de 1989 - No boletim Um Outro Olhar de número 9, como já mencionado no início, fiz um balanço da primeira década da organização lésbica no Brasil, intitulado 1979-1989- Dez Anos de Organização Lésbica no Brasil, onde resgato sobretudo as atividades do GALF, por ter sido o único grupo lésbico a se manter atuante por toda a década de 80. Registro também a passagem de outros grupos e publicações lésbicas da década que, apesar de vida efêmera, não deixaram de ser uma tentativa válida de organização sapatã. Termino o artigo dizendo o seguinte:

Este   artigo,  onde procurei fazer um apanhado da mobilização lésbica na última década, encerra também o capítulo do GALF, com quem tanto aprendemos e sonhamos, e que será substituído pela REDE DE INFORMAÇÃO LÉSBICA UM OUTRO OLHAR a  partir do início de 1990.

Com ela, esperamos poder aprimorar os acertos do GALF e eliminar seus erros, tornando-nos uma organização mais abrangente e participativa. Esperamos, acima de tudo, poder compartilhar a próxima década, que se anuncia como uma década de volta a valores mais cooperativos e humanos, com, pelo menos, algum outro grupo lésbico brasileiro”.

Sigo listando os grupos que DE FATO atuaram pela questão lésbica na década de 80, fora o lésbico-feminista e o GALF

              “OUTROS GRUPOS E PUBLICAÇÕES

Temos registro dos seguintes grupos e publicações lésbicas, durante a década de 80:

. Terra-Maria, Opção Lésbica (SP);
. Grupo Libertário Homossexual (BA); publicava o boletim Amazonas;
. Iamaricumás publicava o boletim de mesmo nome (RJ);
.Terceira Dimensão (RS);
. Grupo Gaúcho de Lésbicas Feministas (RS);
. Boletim Xerereca (RJ).”

O artigo foi muito bem recebido pelas associadas do GALF, bem como pelo GGB, e sua listagem de organizações e publicações se tornou referência para quem viria a escrever sobre esses grupos e a imprensa lésbica brasileira muitas décadas depois.

Para variar, apenas não gostou do artigo um grupo de feministas homossexuais da época, irritado pelas críticas bem fundamentadas à lesbofobia do movimento feminista, que resolveu me retaliar por tê-lo escrito. Através de cartinha circular afirmaram paradoxalmente que eu teria apagado, desse balanço da década, integrantes do clube das comadres feministas homossexuais, logo elas que viviam no armário e nunca levantaram uma palha pelas lésbicas sequer no movimento feminista em que atuavam. Pior, pregavam, como visto nesse resgate da história do GALF, que as lésbicas dissolvessem a identidade lésbica dentro da feminista porque a afirmação explícita da homossexualidade limitava a potencialidade dos indivíduos e outros papos-furados.

Inclusive listaram, na cartinha surreal, nomes do "clube das comadres feministas homossexuais no armário" como gente que teria feito (sic) a história da organização lésbica, gente que, em sua grande maioria, nunca sequer eu ouvira falar e uns três nomes de integrantes do extinto grupo lésbico-feminista que, como relatei, igualmente se meteram no closet feminista e ainda ficavam nos atacando por não seguirmos seu exemplo alienado. Tiveram inclusive o desplante de colocar o nome da Rosely, que tanto fez em seu breve tempo de vida, ao lado de gente que nunca fizera nada ou quase nada pelas lésbicas. Parece que as bonitas achavam que o fato de treparem com mulheres e militarem no movimento feminista as transformava automaticamente em ativistas lésbicas, mesmo se opondo à politização da lesbianidade. 

Cito esse episódio porque, primeiro, ele foi o embrião das tentativas de usurpação e reescritura da história da organização lésbica brasileira que vai aumentar, de 1993 em diante, se desenvolver nas décadas seguintes e continuar até hoje, sempre com o mesmo cinismo, oportunismo e leviandade da tal cartinha das comadres in closet ávidas por receber aplausos pelo que não viveram e não fizeram. Segundo, porque também esse episódio de grosseira leviandade será reciclado posteriormente em desdobramentos cada vez mais sórdidos que também resgatarei em momento oportuno dada a sua importância pra mim e para a História e a organização lésbicas brasileiras. 

De passagem, porém, observo que esse pessoal repete um certo padrão de comportamento que vale salientar. Primeiro, tentam destruir o que não lhes agrada ou não lhes convém na base do vale tudo para obter seu intento, incluindo difamar e caluniar as pessoas. Se não conseguem, passam para a tentativa de usurpação do que antes combatiam. Um bom exemplo disso é o dia do orgulho lésbico, 19 de Agosto, que combateram durante décadas, porque viam como uma ameaça ao dia da visibilidade, e agora que ele reemergiu, tentam usurpar, colocando-se até como protagonistas do que antes combatiam. 

ChanascomChanas e Um Outro Olhar: produzi, editei e publiquei, na segunda fase do GALF até  março de 1990, 4 edições do ChanacomChana e 10 do Um Outro Olhar, a saber:

Dez.-fev.1985/6 -publicação do CCC 9
Jun.-Set. 1986 - publicação do CCC10
Out.-Jan. 1986/7 -publicação do CCC 11
Fev.-Maio 1987- publicação do CCC 12
Set.-Dez. 1987 - publicação do UOO 1
Fev.-Mar. 1988 -publicação do UOO 2
Abr.-Maio 1988 - publicação do UOO 3
Jun.-Jul. 1988 - publicação do UOO 4
Ago.- Out. 1988 - publicação do UOO 5
Fev.-Mar. 1989 - publicação do UOO 6
Jun.-Jul. 1989 - publicação do UOO 7
Ago.-Out. 1989 - publicação do UOO 8
Nov.- Jan. 1989/1990 - publicação do UOO 9
Fev.-Abr- 1990 - publicação do UOO 10

Crítica ao discurso da não identidade homossexual, muito em voga nos primeiros anos da década de 80, que afirmava serem identidades apenas rótulos, como se bastasse alguém dizer que não era homossexual para a opressão terminar

Ser ou estar homossexual não era a questão

Uma das questões polêmicas que o GALF enfrentou, nos seus primeiros anos, foi o questionamento da identidade gay e lésbica trazido por ex-colunistas do Lampião da Esquina, como o antropólogo Peter Fry, o cineasta Jean-Claude Bernardet, o artista plástico Darcy Penteado, e outros acadêmicos como Edward MacRae (em menor grau) e a feminista Maria Luiza Heilborn. Resgatei alguns textos desses autores aqui para ilustrar sobre o que falo.


A questão da identidade (das identidades) é complexa e geralmente polêmica. A sociedade patriarcal conservadora, racista e heterossexista nos divide a partir de externalidades como sexo, etnia, orientação sexual e nos compartimentaliza nessas categorias estanques. Para romper com as opressões várias sofridas pelos discriminados por essas coletivizações forçadas, estes acabam tendo que se valer da identidade que lhes foi imposta a fim de criar um sujeito político inteligível pela sociedade em geral. Trata-se de uma faca de dois gumes porque se útil de um lado, na conquista de direitos civis, pode realmente ferir seus portadores a depender do manejo da arma.


O grande líder negro, Martin Luther King, tinha um discurso universalista e transcendente resumido na frase “Eu tenho um sonho de que meus quatro filhinhos, um dia, viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele e sim pelo conteúdo de seu caráter.”, ou seja, que viessem a ser julgados como indivíduos independentemente do coletivo negro em que foram compartimentalizados. Entretanto, para proferir seu célebre discurso “Eu tenho um sonho”, onde se encontra essa frase, King não ficou apenas na Igreja dando sermões aos fiéis, mas foi à luta pelos direitos civis dos negroes, termo hoje considerado pejorativo. Foi com base nessa identidade que King conquistou direitos civis básicos para os negros americanos. Teria conseguido algo se se abstivesse de lutar por considerar a divisão entre brancos e negros falsa – já que somos todos seres humanos – e, portanto, afirmar uma identidade negra seria limitadora da potencialidade dos indivíduos? Parece piada, não?

 Pois, é, mas aqui, no Brasil, nos idos de 82, os autores que citei acima passaram a dizer coisas como:


[...] Através da ideologia do “assumir-se’, indivíduos com forte gosto para relações sexuais com membros do mesmo sexo são pressionados a encarar tais desejos como sintomas de uma condição que devem “assumir” publicamente. As relações homossexuais existem, “ergo” os “homossexuais” existem. Ao pressionar as pessoas a seguirem determinadas carreiras sexuais, corre-se o risco de desempenhar o papel de eliminar a anomalia e a ambiguidade na vida da sociedade e do indivíduo. (Peter Fry)


[...] Na verdade, não existe nem heterossexualidade nem homossexualidade. Existe, sim, a sexualidade, com grandes nuances, grandes variações, com um grande leque onde há inúmeras opções. Mas já que estamos conversando sobre uma coisa que afirmo que não existe, temos que determinar, de uma vez por todas, o enterro dessas classificações. Somos seres sexuais. Ninguém é heterossexual e ninguém é homossexual. (Darcy Penteado)


[...] A afirmativa de que a declaração explícita da orientação homoerótica não é considerada necessária, e sobretudo, é entendida como limitadora das potencialidades dos indivíduos desperta suspeitas com frequência atribuídas ao medo do estigma, à covardia diante das convenções sociais, a uma estratégia calculista de anonimato, ou ainda à falta de solidariedade para com seus "iguais". (Maria Luiza HEILBORN)


[....] Desde meados de 1979, têm existido no Brasil, com níveis de atividade variável, grupos dedicados a mudar a forma preconceituosa com que são encarados os homossexuais e combater a sua marginalização. Mas da mesma forma que os outros movimentos reivindicatórios, como o feminista e o negro, que privilegiam a questão de identidade mais do que a de classe, o movimento homossexual tem sofrido uma série de questionamentos acerca de sua validade. Uma das dúvidas frequentemente levantadas concerne o resultado possivelmente opressivo que pode ter a atitude de seus ativistas de aceitarem e até exibirem com orgulho o rótulo “homossexual”
. (Edward MacRae)

 

Recomendo a leitura do PDF onde resgatei parte dos textos de onde extraí as citações acima. Acho que os questionamentos sobre identidade feitos lá nos anos 80 seriam bem proveitosos nos dias de hoje quando os movimentos sociais passaram a usar as identidades não como meio, mas como fim, dando um caráter essencialista  às mesmas, muito no sentido dos perigos identitários vislumbrados pelos autores que citei. Basta ver o circo de letrinhas que virou o antigo movimento LGBT, com uma infinidade de identidades inclusive conflitivas e ironicamente até antihomossexuais.

 

Mas, nos anos 80, quando gays e lésbicas estavam começando a dar seus primeiros passinhos para fora da marginalidade, essa discussão era simplesmente bizantina, embora tenha se tornado bem influente, junto com a chegada da epidemia da AIDS, na desmobilização política do movimento homossexual do período. Para o heterocêntrico movimento feminista então, às voltas com a homofobia das organizações de esquerda, de onde a maioria das feministas provinha, esse discurso caiu como uma luva no sentido de deixar as bonitas à vontade a fim de reivindicar a volta das lésbicas para o armário. Agora elas tinham uma justificativa “intelectual” para dizer que a lesbianidade era apenas uma preferência sexual, a ser vivida no privado, uma particularidade a mais das vidas das sapatas que não precisava ser politizada, que bastava se lutar contra a subalternidade da mulher (no singular) que tudo se resolveria. Serto.


Eu respondi a essa conversa bizantina de outrora com textos, charges e tirinhas, tais como A Negação da Homossexualidade (CCC 2, p. 2) e  Ser ou Estar, Eis a Questão? (CCC 5, p. 3). Em texto enviado aos grupos homossexuais da época, quando da discussão da crise do MHB, eu também alertava para o fato de que essa discussão, que valia sim para reflexão, estava levando, contudo, as pessoas a questionarem a necessidade da existência do próprio MHB. Da forma como foi colocada, essa era a consequência lógica aliás. Pessoalmente, sempre vi as identidades como meramente funcionais, mas imprescindíveis. No decorrer dos anos 80, contudo, acabou prevalecendo, no MHB, a visão essencialista das identidades homossexuais, inclusive porque os críticos dessa perspectiva se ausentaram do debate.


De qualquer forma, mesmo hoje, quando os questionamentos sobre a esquerda identitária se fazem  cada vez mais presentes e necessários, ainda resta a pergunta de como garantir direitos civis para grupos discriminados sem denominá-los de alguma forma. Não seria o fato de ter se perdido a perspectiva universalista de Luther King que entornou o caldo?


Fábulas sem nenhuma moral


Como apontei no início desse resgate, busquei em particular desconstruir um pouco das mistificações em torno do GALF e agora me detenho em algumas mais diretamente. Acima, resumi um pouco da história do GALF e a linha do tempo da organização com destaques de sua atuação ao longo de cerca de 8 anos e meio. Este é o GALF real, não aquele impressionantemente mistificado que rola por aí. As mistificações a respeito do grupo chegam a ser folclóricas, como, por exemplo, a história de que ele teria surgido em 1977 contada pela feminista Amelinha Teles em entrevista para o site Sul 21, de nov. 2013,  por ocasião do lançamento de um seu livro “Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980)”.


O Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF) foi criado em 1977, em São Paulo, e elas atuavam muito com a gente nas manifestações. Esse foi o alicerce do feminismo, que cresceu e passou a todo o território brasileiro.


Em 1977, nem o Somos existia quanto mais o GALF. Além de errar na data de surgimento da organização lésbica no país, Amelinha ainda aponta uma integração inexistente entre ativistas lésbicas e feministas que, apesar dos estranhamentos, teria se feito valer desde a década de setenta. A verdade é que o movimento feminista cooptou e absorveu as lésbicas do Grupo Lésbico-feminista (LF), repetindo, ao mesmo tempo em que despolitizava a questão lésbica. As feministas homossexuais criaram uma espécie de clube de comadres homossexuais dentro do armário lilás do movimento feminista. Nada além. Em termos políticos, o movimento só oficializou seu apoio à causa homossexual em geral e à lésbica em particular durante a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, em Brasília, dos dias 6 a 7 de junho de 2002. E no que diz respeito às lésbicas, só porque eu estava lá para garantir um destaque, inserido no preâmbulo da Plataforma Feminista da citada conferência, sobre a inestimável colaboração das mulheres homossexuais em apoio à causa das mulheres em geral, pelo direito ao próprio corpo, pela livre orientação sexual, etc.

Dando um salto temporal, em 2019, num artigo sobre visibilidade lésbica, li o seguinte:

 

Em 1980, importantes pioneiras do movimento, como Rosely Roth e Míriam Martinho, decidiram criar o Grupo de Ação Lésbica Feminista (Galf), que atuou fortemente contra as prisões e torturas durante a Ditadura Militar. Além disso, as lésbicas do Galf criaram a revista "ChanacomChana", em 1983, e sofreram duras críticas do regime. As ativistas do Galf costumeiramente se reuniam no Ferro's Bar, no centro de São Paulo, para protestar e se organizar politicamente.


Essa autora então viajou na maionese mesmo, misturando alhos com bugalhos fartamente. O GALF nunca teve nada a ver com luta contra prisões e torturas durante a Ditadura Militar e nunca sofreu críticas do regime. O boletim ChanacomChana surge em dez. de 1982 e, não, a gente não costumava se reunir no Ferro’s.

Correlata a essa fábula, rola a história do ChanacomChana como símbolo de resistência à ditadura militar. Cabe, então, esclarecer: nem o Movimento Homossexual, nem o Grupo Lésbico-Feminista nem o GALF surgiram como resistência à ditadura militar. Existia um único grupo, a Fração Gay da Convergência Socialista (SP), que queria envolver aquele incipiente Movimento Homossexual do período na chamada luta maior contra a ditadura. Sua proposta, contudo, não encontrou eco entre os grupos de gays e lésbicas da época, zelosos da autonomia do  recém-formado movimento. O Movimento Homossexual nasce como uma insurgência contra outra ditadura, esta sim praticamente totalitária na época, a ditadura da heterossexualidade obrigatória. Contra essa sim o ChanacomChana pode ser considerado um símbolo, símbolo contra uma ditadura presente na esquerda (com exceção da contracultural), na direita, no movimento feminista, na sociedade em geral.

O GALF e o Chanacomchana não foram uma resistência contra a ditadura militar e sim uma insurgência contra a praticamente hegemônica ditadura da heterossexualidade compulsória.
Não custa contextualizar historicamente as coisas. O Movimento Homossexual Brasileiro nasce no período da chamada abertura do regime militar, quando saímos de uma ditadura plena para uma democratura. Quer dizer, no governo Figueiredo, ao lado de características de um regime ainda de exceção, já progredia a volta de princípios do estado democrático de direito. Retorna o pluripartidarismo, a possibilidade de eleger políticos por via direta, a possibilidade de se manifestar sem apanhar e ir parar na cadeia. E aquele incipiente movimento homossexual do período já se articulava o suficiente para ir conversar com o governador Franco Montoro e posteriormente com o Secretário de Segurança Pública (vide as atividades em destaque do GALF)  a fim de reivindicar o fim das prisões arbitrárias de gays e lésbicas com a desculpa do “atentado ao pudor”. Essa conjuntura e essas ações é que provavelmente explicam o fato da PM ter sido convocada para nos tirar do Ferro’s Bar e não ter feito nada, o que causa surpresa em jovens lésbicas acostumadas a ouvir que nós vivíamos num apocalipse zumbi de gays e lésbicas até mesmo às vésperas do retorno à democracia.  

Aproveito para citar, a quem interessar possa, minhas únicas ações - como pessoa física, indivídua - durante o período do regime militar que foram:

31/10/1975 - Participei da Missa Ecumênica de 7 dias, na Catedral da Sé, em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog que foi assassinado pelos agentes de repressão da ditadura.

1977 - Participei de várias manifestações de rua em protesto contra a ditadura organizadas pela UNE que tentava se rearticular (lembrando que a UNE fora proscrita pelo regime desde 1965)

22/07/1977 - Fui presa na tristemente histórica invasão da PUC-SP, quando novamente participava de manifestação em frente ao teatro da universidade (TUCA), pelo famigerado coronel Erasmo Dias. Fui levada para o Batalhão Tobias de Aguiar, na Av. Tiradentes, bairro da Luz (centro de São Paulo) onde passei a noite e fui fotografada, fichada, sendo liberada pela manhã.

16/04/1984 - Participei do gigantesco comício pelas Diretas Já, no Anhangabaú, centro de SP, que reivindicava o voto direto e o retorno à democracia plena.

Coquetel de supostos triângulos amorosos com questões políticas

E, falando em viajar na maionese, não poderia deixar de citar uma tese, ainda da década de 80, de fato sobre o grupo lésbico-feminista, mas que, na velha história de quem conta um conto aumenta um ponto, acabou virando uma história sobre o GALF. Como essa tese meio mirabolante é campeã de reprodução nas teses do pessoal do “copia e cola”, vale a pena analisá-la mais atentamente inclusive porque ela traz, além de grossa fabulação, a questão da identidade homossexual de que falei anteriormente e que ocupou boa parte das discussões da década de 80, principalmente nos primeiros anos.

Trata-se de uma tese sobre o SOS Mulher, o grupo para qual migrou boa parte do coletivo que compunha o Grupo Lésbico-Feminista (LF) e que pregava a despolitização da questão lésbica reduzindo-a à opção sexual. A autora da tese, intitulada Do palco aos bastidores – O SOS-Mulher (SP) e as PráticasFeministas Contemporâneas”, Heloísa André Pontes, faz o maior samba da pesquisadora doida, misturando personagens e eventos desconexos no tempo e no espaço e supostos triângulos amorosos com questões políticas. Tive acesso a essa tese na própria década de 80 e a apelidei de tese-fofoca porque é disso que se trata ao menos no que diz respeito às lésbicas.


O tal SOS-Mulher surgiu, em outubro de 1980, de uma comissão de luta de combate à violência contra a mulher, formada a partir de uma frente feminista da qual o Grupo Lésbico-Feminista fez parte. No conto de Pontes, o Grupo Lésbico Feminista teria rachado porque Teca – “uma das fundadoras do LF e sua principal líder” – tendia para “a necessidade política de se dissolver a identidade lésbica no interior de uma identidade feminista mais geral” e outra parte do grupo não concordava com isso. 


Segundo Pontes, tal processo de segmentação teria sido acompanhado pela eclosão de conflitos pessoais, pois Z (Teca) estaria rompendo uma ligação amorosa de dois anos com L (Míriam), militante lésbica. Por minha vez, eu estaria namorando M (Rosely) que também era integrante do grupo. Vou reproduzir o texto-piada-fofoca na íntegra:

 

Este triângulo amoroso foi vivido de uma maneira extremamente conturbada tanto pelas suas protagonistas como pelas demais militantes lésbicas. Algumas, revoltadas com o comportamento e com a forma de condução do novo romance, aliaram-se a Z (Teca); outras a M(Rosely). Em ambos os casos, as alianças e dissidências apareceram revestidas por concepções políticas distintas, relativas a maneiras divergentes de qualificar as preferências sexuais.

 

As que romperam com Z (Teca), aglutinaram-se em torno de M (Rosely) e se desvincularam do SOS. Para elas, o lesbianismo não se constituía apenas em uma opção sexual, sendo tratado, antes de tudo, como um problema de identidade social e política. Em torno dessa preferência sexual construíam uma prática centrada na necessidade tanto de atribuir ao lesbianismo uma dimensão político-cultural como de ampliar a luta homossexual em São Paulo. Entendiam que o lesbianismo devia ser “assumido” como uma identidade por todas as mulheres que o praticavam. Não punham, portanto, em “questão os fundamentos da taxinomia que divide o mundo em ‘heterossexuais’, ‘homossexuais’ e marginalmente, ‘bissexuais’.

 

Ao contrário, as que se aliaram a Z (Teca), retiraram-se do LF e passaram a recusar a identidade lésbica enquanto uma identidade política. Essa recusa, em certa medida, era legitimada pelos artigos do antropólogo Peter Fry, escritos para o jornal Lampião da Esquina, lidos por várias delas. Ao romperem com o LF, privilegiaram a identidade feminista, pois entendiam que o fato de praticarem o lesbianismo como preferência sexual era uma particularidade a mais de suas vidas e não a marca definidora de suas identidades. Antes de tudo, se reconheciam como mulheres e, como tal, pressupunham a vivência de uma condição estrutural de subalternidade baseada em gênero.

 

Lamento informar ao pessoal do “copia e cola” (Crtl C + Crtl V), mas essa história é totalmente inventada. Pontes deve ter escutado um monte daqui e de acolá no tal SOS e misturou as fofocas que ouvia com a tal questão da identidade que nunca foi tema de discussão no LF mas sim do SOS (vide o trecho que reproduzi dela falando de como o SOS diluía a questão lésbica). E o pior é que os e as que têm copiado esse conto ainda o atribuem a um suposto GALF que teria surgido quando o LF deixou o Somos, outra fabulação cabeluda em voga atualmente e criada pela turminha dos eternos literatos frustrados travestidos de historiadores e antropólogos. Nesse particular, porém, Pontes não inventa: ela fala do grupo lésbico feminista (LF) e não do GALF, correspondendo aos fatos portanto.


E vamos a eles. Como eu disse, Pontes misturou personagens e eventos desconexos no tempo e no espaço para criar essa fábula. Houve de fato um racha do lésbico-feminista em outubro de 1980, mas esse racha precede a existência do SOS-Mulher que acabara de nascer. E esse racha do LF nada teve que ver com supostos triângulos e questões de identidade. O lésbico-feminista entrou em crise, após o encontro de Valinhos, em função de problemas pessoais entre as integrantes do grupo (no caso da Vilma Monteiro) e por interesse em outro tipo de projeto (no caso da Teca - ver entrevista abaixo). Nesse racha de outubro, saíram Teca, para ajudar a fundar o tal SOS-Mulher, e Vilma para fundar o Terra Maria, Opção Lésbica. Não houve nessas desistências nenhuma questão político-ideológica de permeio apimentada por triângulos amorosos.


Entrevista de Teca ao Mulherio (n. 9, set./out 1982)

Apesar de Teca ter saído do LF e eu ter ficado, continuamos namoradas até meados de 82. Eu nunca convivi com Teca e Rosely no lésbico-feminista (elas também não conviveram no LF), muito menos no SOS-Mulher do qual jamais participei. Aliás, como já disse, eu só passei a conviver com Rosely em julho de 1981 quando a conheci na inauguração da sede que deveria ter sido do Lésbico-Feminista e acabou sendo do GALF. Quando fundamos o GALF, éramos apenas amigas e ainda levaria mais de um ano até começarmos a namorar. E o Lésbico-feminista, mesmo após o racha, conseguiu se reabilitar no início de 1981 e seguir até meados desse ano quando então simplesmente se dispersou. O fogo que aquecia o LF era de palha e logo se apagou. E a única pessoa que desistiu do SOS para ficar só na militância lésbica (aí no caso no GALF) foi a própria Rosely e por considerar muito desgastante militar nas duas entidades. Em suma, Pontes deu asas à imaginação nessa história, voando bem acima da realidade.
 
Marisa Fernandes, uma pinóquia profissional. Montagem de Míriam Martinho
sobre foto de 
Roberto Navarro/ALESP 

Mitomania profissional

Neste tópico sobre as fabulações envolvendo o GALF, não poderia deixar de citar a ex-integrante do Grupo Lésbico-Feminista (LF), Marisa Fernandes, que, aliás, foi quem fechou a porta e apagou as luzes desse coletivo em meados de 1981. E a cito pelo papel de produtora de fábulas mil sobre o LF/GALF. Antes resgato sua trajetória na década de 80.

Neste período, tivemos raros contatos, apenas de cunho social, exatamente porque nossas vidas seguiram caminhos distintos: ela deixou o ativismo lésbico e eu continuei atuando no GALF. Como a maioria das integrantes do extinto LF, Fernandes nunca demonstrou qualquer interesse pelo GALF ou qualquer outra militância lésbica após sua saída do LF. Nunca demonstrou interesse sequer por escrever algum texto ou depoimento para o ChanacomChana ou o Um Outro Olhar nos anos 80, o que pode ser constatado pela simples leitura dessas publicações onde não se vê nenhum escrito por alguma Marisa (lembrando que as pessoas usavam seus reais prenomes nos textos).  

Fora a participação na reunião informal que os GALF peruano e brasileiro fizeram durante o Encontro Feminista em Bertioga, como já relatei, a única outra aparição de Fernandes a ver com militância foi durante a estadia das integrantes holandesas do ILIS, em meu apartamento, em setembro de 1987. Não lembro como soube da presença das holandesas, só sei que apareceu para espiar a cara das ditas, saiu sem comprar o Chanacomchana, dizendo que uma das gringas fazia meu tipo e que não havia como se organizar lésbicas no Brasil.

A próxima vez que a vi foi em 1988, num encontro pessoal mais prolongado, quando rapidamente me vi envolvida em mais um de seus históricos barracos (nisso sim ela é histórica). Na ocasião, dei-lhe um chega prá lá, o que parece ter ferido sua masculinidade tóxica, pois, desde então, mantém uma vendeta patológica contra mim. Até parece que a gente não tem o direito de escolher com quem quer conviver, né mesmo? Nesse entrevero, saiu dizendo que eu era vagabunda por atuar na militância lésbica e manter publicações a respeito.

Posteriormente, já em 1990, recebi carta da feminista Maria Otacília Bocchini me dizendo que formara um coletivo de feministas lésbicas, com a Marisa Fernandes, para levar a questão lésbica estritamente no movimento feminista, indicando que Fernandes já tinha mudado de ideia sobre militância lésbica ser sinônimo de vagabundagem. Como não mais frequentava o MF, só fui ver o referido coletivo de feministas lésbicas em meados de 1993, quando fiquei sabendo, pra minha surpresa, que feministas estavam tentando organizar o III Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-americano e do Caribe com reuniões na sede do Centro Informação Mulher (CIM), próximo à igreja da Consolação. Na ocasião, já como integrante da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar, fui espiar, com Luiza Granado, do que se tratava tal milagre e lá encontramos Fernandes e outras integrantes do CFL, mais Míriam Botassi do CIM e sua companheira. Como também estávamos organizando o VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais, aproveitamos a deixa para solicitar a utilização da sede do CIM para a comissão organizadora desse evento. Assim ficamos em tese em duas comissões organizadoras, mas, de fato, só na do encontro de gays e lésbicas. Este encontro estava sob tiroteio pesado porque nós, da Rede e o grupo Deusa Terra, mais uma militante independente, com apoio dos gays da comissão organizadora, queríamos mudar o nome do encontro, incluindo a palavra lésbica para nos sentirmos representadas, e grupos como o GGB e o Triângulo Rosa não queriam. Consultamos os grupos de todo o país, conseguimos aval para mudar o nome, realizamos um bem-sucedido encontro e inauguramos o movimento de gays e lésbicas no Brasil. O CFL de Fernandes, mudando sua diretriz de não trabalhar com gays, porque eram sexistas, machistas, misóginos, etc., aderiu ao encontro de última hora.

A partir desse encontro, Fernandes já inicia sua trajetória de mitômana em tempo integral, no movimento de gays e lésbicas, dizendo-se militante histórica que atuara por toda a década de 80, sem dizer onde. Não foi a única a inventar uma militância lésbica inexistente na década de 80, mas, sem dúvida, a que mais tem fabulado a respeito com o objetivo de se autopromover pelo que não viveu e não fez.

Por minha vez, deixei a militância grupal em 2009, com síndrome de burnout, mantendo apenas páginas na Internet, onde comecei a resgatar a história da organização lésbica no Brasil. Eis que, devido aos 40 anos do Movimento LGBT em 2018, fui contatada por um bocado de gente para entrevistas, as quais atendi bem pouco por estar às voltas com outras questões pessoais, de saúde em particular. Nesse ano, porém, fui avisada de que Marisa Fernandes estava se dizendo editora do Chanacomchana e integrante do GALF (1981-1990).  Comecei a pesquisar sobre o assunto e descobri que já fazia alguns anos que a mitômana estava nessa velhacaria. Andei fazendo retificações dessa informação falsa onde pude e ouvindo algumas desculpas esfarrapadas de que não tinha sido Fernandes que havia dito que era editora do Chana, que havia sido erro de não sei quem. E por aí vai.

Encurtando a conversa que já vai longa, recentemente, porém, ela teve um lapso de honestidade e revelou umas meia-verdades numa entrevista para a tese  Trajetória Da Imprensa Lésbica No Brasil (1981-1995), de Paula Silveira Barbosa (2019).

 Segue um trecho:

Paula: Agora, o LF, que depois se tornou GALF, teve várias fases, mas você disse que só participou no início. Depois que sai aquela edição especial do Chana, em 81, acontece um hiato. Ele só volta em dezembro de 82, já em formato de boletim. O que aconteceu nesse meio tempo? Foi a partir daí que você se afastou?

Marisa: É, é. (Risos). Acompanhei até o grupo conseguir uma sede própria na rua Aurora. Depois, eu precisei me afastar, por questões de saúde. Minha questão de saúde era uma desintoxicação mesmo. Eu tava abusando de substâncias psicoativas e álcool. Enfim, tudo o que tinha. Para segurar tanta energia, tanto trabalho, porque eu era bastante ativa. Então, eu estava muito intoxicada e resolvi sair de São Paulo, para fazer essa desintoxicação.

Parei com o ativismo em coletivos, em grupos. Mas quando eu retornei para São Paulo, eu nunca deixei de ir, por exemplo, às reuniões organizativas do 8 de março, mas eu era autônoma.

P: E quando você volta?

M: Ah, que pergunta difícil! Não tenho muita memória. Mas, eu me desliguei de coletivos. Por quê? Porque a gente fazia as reuniões bebendo, fumando e cheirando. Quando a gente saía, sempre tinha alguém que falava: “vamos tomar uma?”. Ou você se desliga um pouco desse social que te leva a tanta dependência ou você faz o seu caminho muito mais difícil. Então, foi uma questão de saúde mesmo, uma escolha que eu tive que fazer. Saí do ativismo coletivo, mas me mantive de forma autônoma. (p.209)

 

P: É, mas em 90, vem o CFL. E você é uma das fundadoras.
M: Aí já era outra coisa. [...] Bom, aí nós colocamos o nome do nosso grupo de Coletivo de Feministas Lésbicas de São Paulo. Quando a gente foi registrar o grupo, uns quatro anos depois, foi muito engraçado. Por exemplo, o oficial lá do cartório de registro se recusou porque era a contra a moral e os bons costumes.

P: Em 90?!

M: É. Em 1994, em São Bernardo do Campo. (p.210) 


Bem, não foi o LF que entrou na sede da Aurora (inaugurada em julho de 1981). Somente eu e Rosely que havíamos sido do LF entramos naquela sede e ficamos na situação insólita de ter espaço e não ter grupo, no limbo, na esperança de que alguma ex-LFana se animasse pelo menos a produzir outro Chana, o que não aconteceu, como já relatei. O GALF surge exatamente quando o registramos no cartório em outubro de 81, com outras lésbicas que nada tinham a ver com o LF. Mas o importante aqui é que Fernandes reconhece que não participou do GALF real, né mesmo? Porque ela agora inventou um GALF que teria surgido após a saída do LF do Somos. É mole? Quanto a ela ter ido se desintoxicar é outra piada. Bem pelo contrário, continuou se intoxicando por toda a década de 80, como constatei no entrevero que tivemos em 1988.


Não obstante ter dito, na entrevista acima, que deixara o LF (que ela chama de GALF) quando  este conseguira sede própria,  em outro  texto "Ser Lésbica na ditadura: vida e militância sob estado de exceção", do livro Mulheres de Luta: feminismo e esquerdas no Brasil (1964-1985), Cristina Scheibe Wolff, Jair Zandoná, Soraia Carolina de Mello (Organizadores.), também de 2019,  lá está ela se colocando como integrante do GALF de novo, que agora, na nova fabulação, teria surgido em 1980. Segue o trecho onde a mitômana é apresentada:


As mulheres entrevistadas foram Carmen Lucia Luiz, enfermeira, ex-conselheira nacional de Saúde2; Marisa Fernandes, historiadora, uma das primeiras ativistas lésbicas do Brasil, cofundadora e integrante do LF (Lésbico-Feminista-1979) e da Galf (Grupo de Ação Lésbica Feminista – 1980- 1989), coorganizadora do livro História do Movimento LGBT no Brasil, lançado em 2018; Carmen Silvia Rial e Miriam Pillar Grossi, ambas antropólogas, professoras e pesquisadoras da Universidade Federal de Santa Catarina. Elas nos concederam testemunhos acerca do que observaram e do que viveram como mulheres lésbicas num contexto ditatorial... (p. 188)


Quanto ao ChanacomChana, na entrevista que ela deu para a tese Imprensa Lésbica, afirmou:


P: Então, nem desse primeiro número você participou? Porque tem uma Marisa no expediente do jornal. Eu achei que era você.

M: Não. Tinha três Marisas no grupo. Eu não me lembro de fazer essa entrevista. Não me faz pergunta minuciosa assim. Aquela época era muito doida, muita correria. Não lembro de tudo (risos).

Neste ponto, ela reconhece que nem do ChanacomChana tabloide participou, embora não entenda onde a entrevistadora tenha visto um nome Marisa no expediente da publicação. Consta uma Marisa na entrevista com a Angela Roro, mas de fato o Grupo Lésbico-Feminista teve 4 Marisas. Não dá pra saber de que Marisa se trata. Então, se ela própria diz que não integrou nem essa publicação feita pelo grupo LF do qual de fato foi integrante, como poderia se dizer editora do boletim ChanacomChana, se afirmou antes que deixara o grupo quando ele entrou na sede da Aurora em meados de 1981? O Chanacomchana só passa a ser produzido cerca de um ano depois da entrada do GALF na referida sede em dezembro de 1982.

Cito outro exemplo  da mitomania dessa fulana nefasta. No texto de uma compa & parça de Fernandes, Carolina Maia, com o título prolixo e pernóstico de Uma Paciência Selvagem Trouxe-Me Até Aqui: Escrita Em Processo Sobre Processos de Construção de Lesbianidades Através de Escrita, Circulação de Textos e Leitura, Fernandes aparece assim citada (já vi esse parágrafo sendo reproduzido por aí) a propósito da participação de Rosely no programa da Hebe Camargo:
Marisa Fernandes...outra integrante do GALF à época (sic), comentando o impacto: “Milhões de lésbicas estavam vendo e recebemos milhares de cartas que diziam ‘não vou mais me matar, porque sei que não estou sozinha’, cartas emocionadíssimas. Todas foram respondidas”.

Rosely participou de dois programas da Hebe Camargo em 1985 e 1986. Fernandes deixou a militância lésbica, como afirmou na entrevista que reproduzi acima, em julho de 1981, antes da oficialização do GALF (outubro/81). Como poderia então ter sido outra integrante do GALF, em 1985 ou 1986, e dizer que o grupo recebera milhões de cartas de lésbicas impactadas pela presença de Rosely no programa da famosa apresentadora, cartas que teriam sido todas respondidas? Complicado, né? 😏

Integrantes do Somos-SP, GALF e SOS Mulher na sede do GALF-Outra Coisa no evento Viva a Homossexualidade (jun/83). Acervo Rede de Informação Um Outro Olhar.

Vale ainda citar o roubo que Fernandes fez da foto (acima) de um artigo meu intitulado "A questão político-partidária e o MHB ou MLGBT" que publiquei originalmente em minha outra página, Contra o Coro dos Contentes, em 2009, e republiquei por aqui em 2013. Trata-se de roubo porque ela utilizou a imagem sem a indicação de onde fora retirada, como manda a lei (necessário colocar  onde a imagem foi publicada originalmente, de preferência com link). E essa imagem já foi reproduzida mil vezes pela Internet relacionada a coisas que nada tem a ver com sua referência original. Ela ilustra meu texto sobre a grande polêmica a respeito da questão da identidade homossexual que citei acima, debatida pelas pessoas nessa foto do evento Viva a Homossexualidade. Esse evento nada teve a ver com a organização da invasão ao Ferro's Bar ou à imprensa lésbica que sequer existia. As constantes usurpações de meu trabalho por Fernandes são criminosas e multiplicam as distorções do histórico do GALF que ela desconhece porque nele nunca esteve. 

Aliás, Fernandes já cruzou o rubicão da legalidade faz tempo.

Atribui-se falsa identidade, fazendo-se passar por fundadora do que não foi e editora de publicação alheia (falsa identidade, artigo 307);

Ao se atribuir a organização ou edição do Chanacomchana, como já fez várias vezes, Fernandes também comete plágio (no plágio sempre haverá a lesão a direitos da personalidade do autor, especificamente o direito à paternidade, bem como haverá a apresentação de conteúdo de obra alheia como se fosse própria. Assim, pode-se dizer que o plágio não ocorre apenas em virtude da reprodução de uma obra, “mas porque os créditos não foram atribuídos ao responsável original e ainda são conferidos ao plagiador". Notas sobre o plágio e a contrafação. Leonardo Estevam de Assis Zanini). 

Também pratica difamação e calúnia, inclusive em tese acadêmica, ao afirmar, que eu teria sido responsável pelos transtornos psiquiátricos de Rosely Roth e posterior suicídio por ter me separado dela (sic). Fiquei sabendo dessa canalhice por intermédio da historiadora Rita Colaço que me enviou cópia da tal tese, dizendo-se profundamente indignada com a sordidez do escrito e me sugerindo denunciar a autora da tese em sua universidade a fim dela inclusive perder o título de doutora e, claro, me aconselhando a processar a nefasta Fernandes. Eu e Rosely continuamos próximas até seu último momento nesta vida.

E bem que ainda pode figurar nos ilícitos de invasão de privacidade e stalking.

Como último exemplo da mentirobrás permanente da pinóquia Fernandes (tenho um dossiê de exemplos), quando o dia do Orgulho Lésbico foi lançado em 2003, o pessoal do dia da visibilidade ficou histérico, porque conviver com diferenças não é de sua natureza, e lançou uma campanha violenta contra essa data histórica. Nessa época, grupos e militantes usavam as listas de discussão, e Fernandes saiu dizendo em e-mail que a data era mórbida porque homenageava uma pessoa que havia se matado. Tentaram de todas as formas eliminar o 19 de agosto do mapa. Mas algo não deu certo, o dia reemergiu, e agora Fernandes diz que admira a Rosely, que o 19 de agosto é um reconhecimento merecido da luta da moça. Coitada da Rosely, deve se revirar no túmulo tanto quanto meu estômago revira diante de tanta hipocrisia. 😖

Agora, qualquer pessoa que faça uma pesquisa séria sobre as falas de Fernandes, ao longo do tempo, poderá atestar as inúmeras mentiras e contradições presentes no que diz. Basta não ser acadêmico-militante, tentando encaixar os fatos em narrativas ideológicas distantes da realidade, parafraseando o antropólogo Antonio Risério, que se consegue esse objetivo sem muito esforço. 

Arte @oribs / @designativista (em FB mídia ninja)

Mitômanos não são nada incomuns na sociedade brasileira, em geral de moral bem baixa. Tivemos inclusive presidentes e ministros, tanto de esquerda quanto de direita, mentindo até em currículo acadêmico. A cientista Joana D'Arc Félix de Souza que se dizia formada por Harvard foi pega na mentira porque a famosa universidade negou que a tenha tido como aluna. Mas essas figuras de maior destaque têm a grande imprensa a investigar a veracidade do que dizem. Em movimentos sociais, é fácil para mitômanas como Marisa Fernandes proliferarem porque não contam com a mesma vigilância e tem inclusive apoio de outras e outros como ela. Como Fernandes é pau pra toda obra escusa, fraudulenta e não raro caso de polícia, quem tem afinidades com ela costuma apoiá-la à revelia de qualquer sombra de decência e de justiça.

Por exemplo, alguns anos atrás, me enviaram fotos de um prêmio que Fernandes recebera por sua suposta luta contra a ditadura militar. Acontece que Fernandes não teve qualquer luta contra a ditadura militar, a não ser que se considere participar de algumas manifestações de rua contra o governo militar, como luta contra a ditadura. Luta contra a ditadura militar teve o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns que, ao longo dos anos, desenvolveu inúmeras atividades de oposição aos governos militares, em especial no tocante às violações contra os direitos humanos. Fernandes era uma típica representante da geração contracultural predominante na década de 70 no Brasil, chamada de desbundada, cujos slogans eram "paz e amor, sexo, drogas e rock'on'roll". Embora consciente da problemática macropolítica do país, essa geração estava mais preocupada em pôr o pé na estrada, viajar para a Bahia, viver em comunidade em alguma casa no campo, expandir a mente através das drogas e fazer a revolução sexual. Psicanálise também estava muito em moda na época. Como convivi com Fernandes nesse período, posso afirmar que ela seguia a rotina comum aos jovens de então: tinha um emprego formal na prefeitura de Santo André, transava com uns e outras e tomava todas as drogas possíveis e imagináveis. Não me parece que isso tenha a ver com luta contra a ditadura. Deve ser também por isso que a figura tem essa bronca patológica contra mim: eu a conheço de velhos carnavais e sei bem quem de fato é.

Enfim, cumpro então um pouco o papel de agência de checagem, pois inclusive tenho sido vítima dessa velhaca por muito tempo, e porque, mesmo quando falar a verdade tem um alto custo, é nossa obrigação moral dizê-la. Cumpri mais uma vez minha obrigação.­­­­­­­

Por que existem tantas fabulações sobre a organização lésbica brasileira? A contribuição acadêmica

As razões para a existência de tantas fabulações me parecem derivar de uma mistura de vários “ismos”, nenhum deles interessante: sexismo, heterossexismo (lesbofobia), corporativismo, partidarismo, comadrismo e compadrismo, até nepotismo sapatão e a decadência das chamadas ciências humanas que, cada vez mais, produz acadêmicos-militantes em vez de pesquisadores minimamente responsáveis.

Abordei anteriormente a tese de Heloísa Pontes sobre o LF, fonte matrix do "copia e cola" de outros pesquisadores que, por sua vez, também na base do quem conta um conto aumenta um ponto, traduziram o LF de Pontes para GALF.

O livro Na Trilha do Arco-íris do Movimento Homossexual ao Lgbt, de Regina Facchini e Júlio Simões é exemplo desse "copia e cola" combinado com sexismo e heterossexismo, fora um pouco dos outros “ismos” que citei. Quem lê o livro acaba tendo a impressão de que o movimento pelos direitos homossexuais no Brasil foi feito 99,9% por gays. As lésbicas só são citadas de passagem, personificadas apenas quando do exterior, e sua participação secundarizada. Gays são citados com nome, sobrenome e preferências pessoais. Nem parece que foram lésbicas que organizaram a manifestação homossexual mais expressiva da década de 80 e que tenha sido uma lésbica a se destacar na mídia do período mais do que muitos gays. Nem parece que esta lésbica que lhes escreve foi a produtora do hoje tão cobiçado boletim ChanacomChana, pioneira publicação do período sobre lésbicas e direitos homossexuais. Nem parece que tenha sido uma lésbica, novamente esta que lhes escreve, apoiada por outras lésbicas da Rede de Informação Um Outro Olhar, do Grupo Deusa Terra, além de independentes, que simplesmente refundou o antigo movimento homossexual e o redefiniu para movimento de gays e lésbicas durante o VII Encontro de Lésbicas e Homossexuais em 1993. Nem parece que tenham sido lésbicas que organizaram sozinhas outro encontro, o XIX Encontro de Gays, Lésbicas e Travestis, no início de 1997, que resultou na primeira passeata de rua em São Paulo desde 1980 e que serviu de embrião para a primeira pa­­r­­ada GLT do país. Isso sem falar de realizações de outras lésbicas de outros grupos, igualmente secundarizadas.

No texto de Regina Facchini e Júlio Simões, só se dá um maior destaque às lésbicas para falar não de seus feitos mas sim de picuinhas afetivas que seguiriam um suposto “padrão organizativo” dos grupos lésbicos, inclusive de parte do GALF. Já adianto que, ao contrário desse pessoal, não costumo falar daquilo que eu mesma não pude constatar de uma forma ou de outra. Não sei dos bastidores de outros grupos lésbicos e do resultado que rupturas amorosas tiveram para o fim dessas entidades. De qualquer forma, não deixa de ser estranho que, em vez de falar do que essas entidades fizeram, tenham escolhido falar do que supostamente ou não as levou ao fim. No caso dos grupos dos quais fui cofundadora, posso afirmar taxativamente que o citado  padrão organizativo não ocorreu. Mas como é do GALF que se fala um monte de abóboras, então, vamos contestá-las mais uma vez.

Cito as páginas 114, 115, 116 do livro de Facchini e Simões, onde rola o famoso "copia e cola" da tese de Pontes, que apelidei de tese-fofoca, sobre um suposto GALF do qual nem Pontes fala.  Após o trecho citado, copio inclusive trechos da tese da antropóloga para ilustrar o que digo. Deve ter sido Facchini quem escreveu o seguinte:

O GALF passou por várias crises, que envolviam tanto as dificuldades materiais para tocar projetos quanto o rompimento de relações amorosas entre suas integrantes. Rupturas pessoais e divergências políticas influenciavam-se mutuamente nesses episódios. Analisando a relação entre lésbicas e feministas dentro do SOS-Mulher de São Paulo, a antropóloga Heloísa Pontes descreveu a dissidência ocorrida no GALF por ocasião do fim do relacionamento de duas integrantes, que passaram a seguir caminhos distintos, atraindo cada qual um conjunto de aliadas. Essa separação marcou diferentes posicionamentos seguidos pelo grupo no começo dos anos 1980. Uma ala se retirou do GALF, privilegiando a atuação junto ao movimento feminista, argumentando que sua prática lésbica seria uma particularidade a mais e não a marca definidora de suas identidades pessoais. Outro ala optou por manter o GALF e se retirar do SOS-Mulher, sob a justificativa de que as lésbicas deveriam assumir sua identidade social e política, para não submergir na luta feminista".

A respeito dessas e de outras dissidências semelhantes, a pesquisadora Gláucia de Almeida observou que uma característica marcante de muitos grupos lésbicos brasileiros, especialmente até meados dos anos 1990, era a origem a partir de um casal fundador" que agregava outros casais ou amigas para o empreendimento político. Desse modo, divergências políticas associavam-se estreitamente a rupturas amorosas, que trouxeram consequências para a capacidade organizativa do movimento, visto que os grupos tendiam a desaparecer junto com a separação e suas protagonistas. Como ela comenta:

Uma vez que a relação afetiva/sexual se esgotava (o que ocorria algumas vezes com rupturas violentas), o grupo se dissolvia ou se fragilizava pela permanência de apenas uma das integrantes do casal, que nem sempre estava preparada ou encontrava condições para manter o grupo "ativo".[...] Uma das integrantes do casal fundador de um grupo extinto contou que, com a saída de sua ex-companheira e a sua, outras pessoas assumiram a liderança provisoriamente, mas não conseguiram manter o grupo ativo. Ela, a partir daí, perdeu o controle sobre o grupo e sobre o que foi feito do precioso acervo documental de que o grupo dispunha, inclusive um rico conjunto de cartas (algumas centenas) enviadas por lésbicas de todo o Brasil.

O GALF não fugiu a esse padrão organizativo, mas conseguiu evitar seu desaparecimento. Foi único dos grupos paulistas da primeira onda que continuou ativo ao longo dos anos 1980 e chegou aos anos 1990 como Rede de Informação Um Outro Olhar, nome que passou a usar a partir do momento em que adotou o formato institucional de organização não-governamental-outra das novidades das décadas seguintes, como veremos seguir.

Mas, então, vejamos primeiro sobre quem Pontes realmente fala:

Inicialmente, o SOS surgiu (conforme relatei ao historiar a sua formação) sob a forma de uma comissão de luta contra a violência, formada a partir de uma "frente" feminista. Esta frente era composta de representantes de todos os grupos feministas atuantes em São Paulo, no ano de 1980. Entre eles, encontravam- se membros do grupo Lésbico-Feminista. (p. 117)

[...]

Seus pronunciamentos (de Teca) contavam com o apoio de uma parte das militantes    lésbicas, mas não produziam uma visão consensual a respeito da necessidade política de dissolver a identidade lésbica no interior de uma identidade feminista mais geral (sic). O que acabou por resultar em uma segmentação do grupo Lésbico-Feminista. (p. 118)

Passei um pente fino na tese de Pontes e, em momento algum, se vê o tal de GALF citado pela dupla Facchini/Simões. Aqui os autores fizeram dois "copia e cola", o já citado do triângulo amoroso fictício da Pontes e o tal GALF vindo da obra de outro inventivo antropólogo, Edward MacRae (depois me ocupo deste). De fato, a única sigla que Pontes utiliza é LF, e o nome do grupo a que ela se refere é Grupo Lésbico-Feminista, com as variantes Ação Lésbico-Feminista ou grupo de Ação Lésbico Feminista (da famosa coleção de assinaturas do LF).

Além disso, nem o LF nem o GALF começaram em torno de um casal fundador nem terminaram em função de rupturas amorosas. O LF surgiu em maio de 1979, como subgrupo do Somos, pelas mãos de várias participantes dessa organização, tornou-se um grupo independente em maio de 1980 e terminou em junho de 1981 por simples desinteresse de suas participantes em sua continuidade.

O GALF foi fundado por mim e Rosely mais algumas colaboradoras do grupo em outubro de 1981, mas nós não éramos namoradas na ocasião. Também não foi o fim de nosso relacionamento que se deu em 1987 que determinou o encerramento do grupo que só terminará no início de 1990. Nem a doença de Rosely, que abalou as estruturas do grupo, determinou seu fim. O GALF se encerrou porque não víamos mais sentido na manutenção de um grupo lésbico-feminista, já que era contraproducente viver às voltas com o heterocêntrico movimento feminista do período sempre disposto a nos envolver em suas baixarias mil.

E como a dupla também avança sobre a história até da Um Outro Olhar, cabe esclarecer que esta foi registrada estatutariamente em abril de 1990, da mesma forma que o GALF o fora em outubro de 1981. A Um Outro Olhar teve a mesma estrutura do GALF, em seus primeiros 5 anos, e continuou com o mesmo estatuto quando passou a receber verbas governamentais a partir de 1995. Qualquer organização pode ter um estatuto, independente de suas características e finalidades.

E a fábula do LF que virou GALF após a separação do Somos?

Faz pouco tempo que descobri essa nova invenção do LF que virou GALF após a separação do Somos e passei a pesquisar sobre o assunto. Ao que tudo indica, a principal origem dessa história são os textos do antropólogo Edward MaCRae. Em seu livrinho com Peter Fry, O Que é Homossexualidade, MacRae afirmava, em 1985:


... aproveitando o ensejo de uma briga entre os homens que já começava a ameaçar a coesão do grupo Somos, as lésbicas deste grupo resolveram optar por uma total autonomia. Fundaram o Grupo de Ação Lésbico Feminista (aqui ainda lésbico-feminista) em maio de 1980. (p. 28).


Nesse livro também, surge a história de que as lésbicas haviam encontrado uma forte relutância inicial à sua presença, publicamente homossexual, no Movimento Feminista, mas que essa relutância havia sido superada. (p. 101/102). Deve ter sido na mesma realidade paralela onde a feminista Amelinha Teles disse que o MF abriu os braços para as lésbicas desde 1977.


Em um outro seu livro, A construção da igualdade-política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”, fruto da tese O militante homossexual no Brasil da “abertura”, observa-se que MacRae pinçou uma das assinaturas do lésbico-feminista, a partir do texto A Posição do GALF, no Lampião da Esquina de agosto, p. 5, passando por cima de outros documentos imediatamente posteriores à saída do LF do Somos (como O Racha do Somos) e inclusive posteriores. A propósito, o texto em que ele se baseia deve ter sido da mesma lavra de quem escreveu que o lésbico-feminista tinha virado Atuação Feminista porque o "lésbico" repercutia de forma muito violenta entre as pessoas. (Lampião da Esquina, 22, p. 3).

A partir dessa seleção, MacRae vai chamar o LF de GALF em suas participações no Encontro de Valinhos, na frente feminista que vai dar origem ao SOS-Mulher, no próprio SOS-Mulher, adentrando até no período já do GALF real, o grupo que iniciará suas atividades na sede da rua Aurora. Aqui ele imita a Pontes misturando fatos e personagens de diferentes momentos no tempo e no espaço, como no trecho abaixo.
O financiamento do aluguel da sede sempre foi problemático e eram muitos os expedientes usados para arrecadar o dinheiro necessário. Organizavam-se festas, bingos e churrascos, mas o lucro proporcionado frequentemente não era suficiente e, em última instância, algumas militantes, em melhores condições financeiras, acabavam ajudando a pagar o aluguel com seu próprio dinheiro. Porém, como se pode imaginar, isto era causa de muitos problemas, pois, em um grupo em que todas deveriam ser iguais, a contribuição desproporcional de algumas inevitavelmente introduzia um elemento de desigualdade de
poder. Além do aluguel, outra despesa grande era a edição esporádica do jornal Chanacomchana, no qual eram publicadas notícias e entrevistas relacionadas com o lesbianismo. Também neste caso, quando o dinheiro proveniente da vendagem não era suficiente, algumas integrantes cobriam a diferença do seu próprio bolso.

Essa descrição corresponde aos expedientes do LF, não do GALF. O GALF também chegou a fazer alguns bingos, mas não para prioritariamente bancar o aluguel de sua sede que era viabilizado pela divisão do espaço com o grupo Outra Coisa. No coletivo do GALF não havia contribuição desproporcional de nenhuma integrante, pois todas eram igualmente descapitalizadas. As edições do Chana não foram tão regulares, mas sua impressão era garantida em gráficas de diretórios acadêmicos e em cotas de parlamentares. Alguns anúncios publicados no boletim também traziam alguns trocados para a publicação. E, depois, o próprio sistema de associação do GALF, vai bancar as impressões do Chana e do Um Outro Olhar. MacRae não sabe quem foi o GALF de fato.

MacRae congelou sua pesquisa no período em que esteve no Somos e conviveu com integrantes do lésbico-feminista. Mas, se não me falha a memória, era inclusive vizinho da sede do GALF/Outra Coisa, em 82 e 83, na praça da República, mas nunca o vi por lá. Outro antropólogo conhecido, Nestor Perlongher, participou de atividades na sede do GALF/Outra Coisa e inclusive da famosa invasão do Ferro´s Bar, mas, felizmente, só escreveu sobre michês e prostituição masculina, não sobre lésbicas. 

 Vale a pena salientar que o movimento pelos direitos homossexuais no Brasil teve uma espécie de gap, um hiato de ao menos uma década entre o pessoal que atuou nos grupos nos primeiros três ou, no máximo, 5 anos iniciais e o pessoal que permaneceu militando desde o início até a década de 90 em diante. Apelidei esse pessoal que se ausentou e retornou 10, 13 anos depois, de portadores de síndrome de Austin Powers, personagem do comediante Mike Meyers, que foi congelado na época da swinging London (década de 60) e descongelado nos anos 90, voltando descompensado, falando, se vestindo e agindo como se décadas não houvessem se passado.

O fato é que ao escolher uma das assinaturas do LF pra dizer que este virara GALF, MacRae entra em conflito até com sua colega Pontes e sua fantasia de rupturas ideológicas misturadas com triângulos amorosos. MacRae também copia e cola esse trecho da tese de Pontes, em sua Construção da Igualdade, mas, onde ela fala em lésbico-feminista, ele traduz para GALF. Entretanto, como dito anteriormente, não aparece nenhum GALF na tese de Pontes, tese que retrata um grupo, o SOS-Mulher, que se inicia em outubro de 1980, período em que o LF continua sendo conhecido como grupo lésbico-feminista, vai se juntar ao SOS-Mulher e, em sua maior parte, acabar submergindo nele. Outras integrantes do LF, contudo, continuaram com o grupo até meados de 1981, quando se dispersaram.

Como eu sou boazinha e compreensiva, até admito que o fato do GALF, o real, ter incorporado o histórico de seu antecessor, o LF, num primeiro momento, possa ter alimentado essa confusão toda entre os dois coletivos. E inclusive assumo que possa inadvertidamente ter culpa nesse cartório. Mas, convenhamos, o Grupo Ação Lésbica Feminista (o GALF real) vai percorrer praticamente toda a década de 80 e terminar no início de 1990. E nenhum desses pesquisadores veio falar com alguém do GALF em quase uma década, mas se achou no direito de escrever historinhas mil sobre a organização? Nem veio falar com ninguém da Um Outro Olhar mesmo afirmando que o GALF teria chegado aos anos 1990 como Rede de Informação Um Outro Olhar? Em outras palavras, em 40 anos de história, esse pessoal não teve tempo de consultar as pessoas que fizeram parte do GALF sobre a história do grupo? 

No livro de Simões/Facchini, os autores iniciam dizendo que o androcentrismo do livro se devia ao fato de haver poucas pesquisas sobre lésbicas e travestis. (Gozado que Facchini me escreveu durante a elaboração desse livro pedindo uma das fotos da invasão do Ferro’s onde, se não me falha a memória, aparece o Júlio Simões. Poderia ter feito algumas perguntas sobre o GALF, não? Melhor do que ficar no "copia e cola" de teses alheias). Entretanto, depois dessa declaração de escassez de pesquisas sobre lésbicas, os autores emendam a conversa com a história de que era impossível evitar que preferências, afinidades e inclinações transparecessem em diversas passagens. Afinal estariam lidando com um campo político aberto e, como tal, sujeito ao jogo da estratégia e da paixão, da aliança e da disputa. Puxa, mas não era pra ser um simples resgate histórico? Bem, da mesma forma que nunca acreditei na dupla militância em partidos e entidades da sociedade civil (a autonomia das entidades civis vai para o espaço nessa aliança caracu), não acredito em acadêmico-militante, pois a parcialidade contamina seu trabalho. Dei aqui só alguns exemplos das distorções que podem causar.

Ah, e antes que me esqueça, há também pesquisadores, como James Green, que igualmente andam falando de um LF que virou Grupo de Ação Lésbica Feminista, depois da saída do Somos, mas antes diziam outra coisa (Ver “Mais amor e mais tesão”:a construção de um movimento brasileiro de gays,
lésbicas e travestis). Deve seguir também o modelo pesquisa como paixão, aliança e disputa.

Tentativas de sequestro do ChanacomChana para ilustrar supostas resistências à ditadura militar

A partir de 2014, começaram a surgir textos sobre a vivência homossexual durante a ditadura militar, mas fundamentalmente com um foco na repressão e dando a entender que teria havido uma política de estado dos governos militares contra gays e lésbicas. Alguns ativistas daquele período, entre os quais me incluo, não concordam com esse enfoque, mas até aí morreu Neves, como diria o velho ditado. Estaríamos só no terreno das ideias.

Problema é que defensores dessa tese resolveram ilustrá-la com o boletim Chanacomchana, entre outras publicações, apenas porque o CCC começou a ser publicado ainda sob o regime de exceção (dezembro de 1982). À minha revelia, claro, convocaram a mitômana Marisa Fernandes a fim de inventar historinhas sobre a ditadura, contra a qual de fato ela nunca fez nada, fazendo-se passar como editora do Chana, cofundadora do GALF, etc..., naquele velho esquema de falsa identidade e plágio que a caracteriza. (Ironicamente a simples presença de Fernandes nessa tese já a torna discutível). No ano passado, acabei até constituindo advogada para tratar dessas tentativas de usurpação do meu trabalho e dos meus direitos autorais, pois se tornou evidente a tentativa de dissociação das minhas publicações da minha pessoa vinda da nefasta e suas e seus comparsas. Parece até piada, mas só se for de muito mau gosto.

Falando nisso, já abordei em detalhes as publicações que editei para o GALF e a Um Outro Olhar num texto específico, Um Raio-X dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar e suas digitalizações. Mas vale reforçar aqui que, embora a legislação brasileira me garanta os direitos morais e patrimoniais sobre o Chana, como organizadora dessa coleção, bem como da coleção Um Outro Olhar, o fato é que minha contribuição para essas publicações se deu também em termos de concepção (seções), produção (layout), edição, e conteúdo, este em termos de textos, revisões, traduções, desenhos, poesias etc. Se se fosse tirar minha contribuição dessas publicações, restariam apenas artigos e desenhos individuais que, óbvio, são de direito de suas autoras. Ou seja, deixariam de existir tanto os Chanas como os Um Outro Olhar. E eu, ao contrário da mitômana Marisa Fernandes, não sou nenhuma boçal para ficar assumindo o que não fiz. Esse tipo de comportamento é como um documento que uma pessoa assina contra si mesma atestando que é medíocre de pai, mãe e parteira. E entre os meus defeitos, mediocridade não consta. De qualquer forma, é inacreditável que tenhamos chegado ao ponto de ter que se partir para a área jurídica porque os movimentos sociais descambaram até para o nível da ilegalidade.

Do ponto de vista político, reforçando o que disse anteriormente, nunca em momento algum, os Chanas foram pensados como resistência à ditadura militar. Os Chanas representaram uma insurgência contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória, só não hegemônica na época de sua existência porque a esquerda libertária da Contracultura e sua revolução sexual já naturalizavam as relações entre pessoas de mesmo sexo. A visão negativa dos militares sobre a homossexualidade era a mesma da sociedade em geral. E os militares não me causaram problema algum como ativista lésbica, mesmo porque já estavam arrumando as malas para partir quando comecei a produzir os Chanas. Os problemas da militância tanto feminista quanto homossexual do período eram já a político-partidarização dos movimentos (em especial no caso do feminista) e da questão da identidade homossexual que se somou à chegada da AIDS (no movimento homossexual) para impactar fortemente a vida dos gays e o movimento pelos direitos homossexuais. Se o tempo me permitir, espero poder trazer uma outra perspectiva sobre essa questão da homossexualidade sob o período ditatorial.


História oral é a prova definitiva da inveja que a História tem da Literatura


Essa frase, um chiste, aliás, não é minha e sim de um professor de literatura brasileira, especialista em Barroco, com quem tive aulas na Letras da USP umas três décadas atrás. Muito culto e irônico, sua aulas estavam mais pra stand up literário do que pra aula propriamente dita, e ele adorava zoar o pessoal das ciências humanas, em especial os historiadores, vizinhos do prédio da Letras no campus da capital. Para nossa diversão, dizia que, certa feita, tinha enviado um texto literário para os colegas historiadores, pedindo confirmação, no entanto, se se tratava de um documento histórico, e que obteve essa confirmação. Daí concluía que historiadores não sabiam distinguir um texto de ficção de não-ficção e que, por isso, teriam inventado a história oral, a prova definitiva da inveja que a História tem da Literatura. Aproveitava também para zoar todas as outras ditas ciências sociais, afirmando que se tudo tinha virado ficção, o certo era decretar a obsolescência de antropólogos, historiadores, sociológicos et caterva e deixar a análise da realidade para os críticos literários. 

O professor antecipava a discussão atual sobre as fake news e as narrativas ideológicas com as quais as militâncias tentam encaixar a realidade na moldura conceitual de suas fantasias. Mas a História Oral até começou com boas intenções, em meados do século passado, com o advento dos aparatos tecnológicos de gravação (gravador de fita) e objetivando dar voz aos excluídos da historiografia tradicional focada nos grandes eventos e grandes vultos. A partir da coleta de testemunhos e depoimentos com participantes ou testemunhas de acontecimentos do passado e do presente buscava também ampliar a reconstrução dos eventos sob pesquisa.


Entretanto, como depoimentos orais são fontes subjetivas, relativas à falível ou fantasiosa memória individual (sem falar na possível má fé de alguns depoentes), buscava-se estabelecer mais precisão e confiabilidade ao relato oral desenvolvendo-se um diálogo entre a documentação escrita já existente e a fonte oral ou mesmo se confrontando a fonte oral com outros tipos de documentação. Propunha-se que o historiador buscasse o máximo de isenção possível, amparando-se em diversas fontes de pesquisa, consciente de que a fonte oral não substituía a fonte escrita, mas a complementava e vice-versa. 


Com o passar dos anos, porém, a História Oral se encheu de vento, resolveu reivindicar autonomia e autossuficiência e se encaminhou para o lero-lero da História Oral Pura, negando o cruzamento e a comparação entre fontes escritas, documentais, e orais, sob o pretexto de que tal cotejamento rebaixaria a oralidade à mera ilustração. Passou-se a pregar despreocupação com a confiabilidade das fontes, com qualquer factualidade, porque o que as pessoas acreditam que viveram, seu passado imaginário, seria mais importante do que o que de fato viveram (soa familiar, não?), tornando a subjetividade objeto de estudo da História, transformando historiador em psicanalista ou psicólogo e suas análises em literatura, pois é destas o domínio da análise das motivações inconscientes das pessoas e da produção ficcional.

Daí o chiste do meu saudoso e sarcástico professor de literatura brasileira ao dizer que a História Oral era a prova definitiva da inveja que a História tinha da Literatura. Porque a Literatura é livre para criar até mesmo quando produz romances históricos, baseados em personagens e eventos reais. A História (outras ciências sociais também), por outro lado, precisa se aproximar do acontecido, utilizando documentos e fontes  relativos a ele e comprovando sua veracidade com métodos de testagem, comparação, cruzamentos. A História depende inclusive desses documentos e fontes (em particular da matéria escrita) e dos métodos de aferição da confiabilidade desses materiais para a manutenção de  seu estatuto de cientificidade. Em outras palavras, o historiador não é livre para criar como um romancista. Ilustro essa falação com trecho do texto Why historians should write fiction? do romancista e historiador Ian Mortimer, (Por que historiadores deveriam escrever ficção.):

Gostaria de esclarecer desde o início que sou tanto um romancista (sob o pseudônimo de James Forrester) quanto um historiador (Ian Mortimer) e que escrevo livros de História para o público em geral bem como artigos acadêmicos. Como romancista, eu conto mentiras. Das grandes. Todos os romancistas históricos contam. No meu caso, eu faço personagens históricos como Sir William Cecil e Francis Walsingham dizerem e fazerem coisas que eles nunca disseram ou fizeram.  Atribuo causas para a morte de algumas pessoas que, de fato, morreram de outras coisas, faço-as falarem em linguagem atual embora no contexto de outros tempos, e mudo seus nomes verdadeiros. Como historiador, eu não conto mentiras. Observo escrupulosamente as fontes primárias e secundárias.

 

Bem, acabei enveredando por essa discussão sobre a História Oral, sobre a qual li alguns textos, porque comecei esse tópico perguntando as razões para tantas fabulações a respeito dos primórdios da organização lésbica no Brasil, em particular sobre o GALF, e apontei alguns exemplos da participação de acadêmicos na construção dessa mitologia. Acho que em sua versão pura, onde até depoimentos imaginários são validados, sob pretexto de que subjetividades também deveriam ser objeto de estudo da História, a HO abre uma avenida de possibilidades para as fabulações que, no entanto, ganham estatuto de veracidade porque veiculadas por pesquisadores.

Em 2021, cansei de ver depoimentos orais sendo usados anacronicamente, em teses inclusive: ativistas da década de 90 sendo instadas a depor sobre a década de 80 que não viveram, sobre o GALF do qual não foram interlocutoras; gente querendo fazer perfil da Rosely Roth junto a pessoas que sequer a conheceram, mas sendo colocadas como se tivessem conhecido e supostamente tido de lidar com o problema de sua doença individual e coletivamente (sic), inclusive mantendo supostas mágoas sobre o assunto (como alguém pode ter mágoas do que não sofreu é que são elas). Vale lembrar que não havia grupos lésbicos no Rio de Janeiro, onde Rosely faleceu, em 1990, sequer ativistas independentes. Para ver depoimentos de época sobre a Rosely, de pessoas que de fato a conheceram ou mantiveram contato com ela via GALF, vale ler a edição número 12 do boletim Um Outro Olhar acessível por este link.


Gente querendo fazer documentários sobre a manifestação do Ferro’s com gente que não esteve no evento. Gente tentando dissociar, em teses, meu trabalho da minha pessoa. E não só em teses. Gente me difamando e caluniando inclusive em teses para me desacreditar como protagonista da minha própria história e produção (quando a gente quer reescrever a História tem que tentar desacreditar quem de fato foi protagonista e testemunha ocular da História, né mesmo?). Textos do CCC e UOO e até mesmo meus desenhos sendo usados para referendar coisas que nada tiveram a ver com eles. E, mesmo fora da produção acadêmica, gente inventando supostos arquivos lésbicos para fazer perfil falso de velhas e novas comadres a fim de inventar histórias lésbicas das carochinhas mil.

Pesquisadores que assim agem não podem ser levados a sério, como explanei acima na breve passagem sobre a História Oral. Depoimentos orais, desde que submetidos a contraprovas e em diálogo com outros tipos de documentação de época, enriquecem as pesquisas, podem trazer inclusive informações e perspectivas indisponíveis de outra forma. Caso contrário, só servem de instrumento para gente de má fé (e até criminosa) e para os mitômanos de plantão (mesmo só os compulsivos e não psicopatas).

Cada vez mais frequentemente, contudo, vê-se acadêmicos abdicando de sua função essencial de analisar e buscar explicar a realidade atual ou de resgatar o passado de forma mais fidedigna para querer interferir nos acontecimentos, reescrever a História, viver de narrativas ideológicas, sobretudo na área sociopolítica e cultural. Não se trata de cobrar suposta objetividade científica de pesquisadores ou dizer que não podem se posicionar politicamente, mas sim de questionar essa visão da atividade intelectual como mero instrumento de militância política.

Não tenho dúvidas de que jogos da estratégia e da paixão, da aliança e da disputa, caem melhor no espírito de torcidas organizadas de algum tipo de esporte, em assembleias estudantis ou na micro ou macro política rasteira de nosso país. E o talento para criação de narrativas e historinhas ficcionais cai melhor na área da Literatura ou da escrita ficcional em geral. Ou então, como no chiste do meu saudoso e irônico professor de Literatura, se querem tudo ficção, o certo é deixar a análise da realidade para os críticos literários (a propósito, fiz análise literária por anos a fio, ok?).


Ah, e antes que me esqueça, ninguém sabe mais do meu trabalho, de com quem namorei ou deixei de namorar (e quando) do que eu mesma. Por isso, posso rebater de cátedra toda essa fabulação, em particular sobre o GALF. Mas não deixo de fazer pesquisa para fundamentar o que digo porque a memória se esgarça com o passar dos anos e é importante refrescá-la com documentos de época.

Um desagravo ao Grupo Lésbico-Feminista- LF (05/1979-06/1981)

O Grupo Lésbico-Feminista (LF) foi uma parte ínfima de minha militância e não deixou saudades, mesmo porque mal começou e já acabou. Nunca mais tive qualquer contato com ex-integrantes do grupo, a não ser com duas que já conhecia de antes da militância, mesmo assim esporadicamente. As demais só me contataram em anos recentes pelo Facebook. No entanto, tenho uma dívida de gratidão com ele e com o Somos porque, através deles, pude me sentir confortável como lésbica pela primeira vez. Fora isso, ele teve um ciclo de vida que precisa ser respeitado e não violentado para atender aos fetiches de medíocres mitômanas que querem a fórceps se encaixar num outro coletivo, o GALF, pelo qual não tiveram qualquer interesse enquanto este existiu. Escrevi sobre o LF em 2019, como pode ser lido aqui

Em respeito ao Lésbico-Feminista, do qual também fui cofundadora, cumpre repetir, quantas vezes for necessário, que, apesar de ele ter adotado tantas assinaturas variando em torno do termo lésbico-feminista, sua identidade sempre foi apenas Lésbico-Feminista. É falsa a informação de que ele se tornou GALF após deixar o Somos em 17 de maio de 1980.

No Lampião da Esquina, n. 25, p.8, na matéria O Racha do Somos/SP, em junho de 1980, o agora Grupo Lésbico-Feminista explica, num documento, os motivos da sua separação do Somos e assina Grupo Lésbico-Feminista.

Exemplos não faltam para desconstruir essa nova falácia de um LF que teria virado GALF após o racha do Somos. Até a memorabilia do grupo contesta essa história. Por exemplo, em 30/31 de maio de 1980, o LF fez uma festa na boate Mistura Fina para celebrar um ano de sua existência. Dois meses depois, em 03/08/1980, o Grupo Lésbico Feminista faz filipetas datilografadas para convidar as frequentadoras da boate Mistura Fina para seu bingo.

Já em 81, também no Lampião da Esquina, edição 35, de abril de 1981, p. 13, praticamente um ano após a separação do Lésbico-Feminista do Somos, na matéria Um Congresso Bem-Pensante? são entrevistadas uma ex-integrante do Lésbico-Feminista e uma atual (termos do jornal). Para a representante do Lésbico Feminista é perguntado: "E o Lésbico-Feminista, por que entrou no Congresso e em que circunstâncias?" Ao que a entrevistada responde porque o LF isso, o LF aquilo e o LF aquilo outro. Até Vange Leonel, que esteve de passagem, no LF, no primeiro semestre de 1981, nessa nova fabulação a respeito dos primórdios da organização lésbica brasileira, teria entrado num GALF que não existiu. Entretanto, em entrevista ao site A Capa, de 2012, sua apresentação é a seguinte:

"A música, que ecoou por rádios de todo o país, catapultou o nome de Vange Leonel, que anos mais tarde assumiria publicamente sua homossexualidade. Na mesma época, Vange viria a fortalecer seu vínculo com a militância LGBT, que começou ainda em 1981, quando ela fez parte do grupo LF (Lésbico Feminista), uma dissidência do SOMOS." 

 

Uma das últimas atividades do Lésbico-Feminista (em grifo), foi participar da Semana de Luta Homossexual, de 9 a 12 de junho de 1981, com dois debates e uma manifestação em frente ao Teatro Municipal, como se observa na filipeta abaixo:


É fato que o LF também assinou uns dois folhetos como Grupo de Ação Lésbica Feminista, por exemplo, mas não após o racha do Somos, e continuou assinando e se reconhecendo como Lésbico-Feminista até o seu final em meados de 81. Nos últimos documentos relativos ao grupo, como observa-se também num folheto do I Encontro Paulista de Grupos Organizados, de 25 a 26 de abril, também aparecia a assinatura Grupo de Ação Lésbico-Feminista, provavelmente a última assinatura a prevalecer, tanto que será o primeiro nome não-oficial que o GALF vai utilizar no seu primeiro 1 ano e meio de vida (vide a história do GALF acima). Inventar, portanto, que o LF virou GALF após sair do Somos e acoplá-lo ao GALF que fundei em outubro de 81 com Rosely (vide a ata de fundação do GALF) é destruir metade da história do já breve primeiro coletivo de lésbicas ativistas do país e deturpar a história do segundo.

Os grupos são conformados pelas pessoas que os compõem a despeito de siglas. No Peru, houve dois GALF, exatamente a mesma sigla, mas nenhum deles procurava se fazer passar pelo outro. É da interação entre suas integrantes que surge a real identidade dos grupos desembocando em ações específicas. Os coletivos do Lésbico-Feminista e do GALF foram bem distintos, pois mesmo eu e Rosely, que passáramos pelo LF, iniciamos uma interação totalmente nova com o GALF. Todas as outras integrantes do GALF que se juntaram a nós, ao longo da década de 80, nada tiveram a ver com o coletivo do LF. Por isso, a trajetória dos dois grupos foi bem distinta também, seu espírito e sua produção idem. Mas ambos precisam ter suas histórias respeitadas. 
    


Condições de compartilhamento deste texto

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*Miriam Martinho é uma das fundadoras do Movimento Homossexual brasileiro, em particular da organização lésbica, tendo co-fundado as primeiras entidades lésbicas brasileiras, a saber, Grupo Lésbico-Feminista (1979-1981), Grupo Ação Lésbica-Feminista (1981-1989) e Rede de Informação Um Outro Olhar (1989....). Produziu e editou também as primeiras publicações lésbicas do país, como o fanzine ChanacomChana (década de 80) e o boletim e posterior revista Um Outro Olhar (década de 90 até 2002). Atualmente administra as páginas Um Outro Olhar e Contra o Coro dos Contentes.

Fundou igualmente o movimento de saúde lésbica no Brasil, em 1994, realizando a primeira campanha de prevenção às DST-AIDS para mulheres que se relacionam com mulheres, em 1995, e editando as primeiras publicações sobre o tema desde essa época (em 2006 publicou a 4 edição da cartilha Prazer sem Medo sobre saúde integral para lésbicas e bissexuais). Participou da organização do I EBHO (1980), organizou dois encontros LGBT nacionais (VII EBLHO/93 e IX EBGLT/97) e foi sócia-fundadora da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT-1995). Participou igualmente de vários encontros internacionais com destaque para a 8ª Conferência Internacional do Serviço de Informação Lésbica Internacional-ILIS (Genebra, Suiça, 28 a 31/03/1986), o I Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-Americanas e do Caribe (Cuernavaca, México, 1987) e a Reunião de Reflexão Lésbica-Homossexual (Santiago, Chile/ nov. 1992).

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