Orgulho Lésbico: o happening político do Ferro's Bar

sábado, 25 de junho de 2022


Sumário

Perfil Míriam Martinho 
Histórico do lançamento do dia do orgulho e apresentação do material deste resgate.
Memória 19/08/83: Panfleto “Pra você que frequenta o Ferro’s”
Memória 19/08/83: texto Democracia também para lésbicas: uma luta no Ferro’s Bar
A Manifestação do Ferro’s em fotos: nota de esclarecimento.
Memória 19/08/83: A Manifestação do Ferro’s em fotos.
Memória 19/08/83: A noite em que as lésbicas invadiram seu próprio bar.
Memória 19/08/83: Panfleto A democracia depende de nós
Memória 19/08/83: Moção nº 248/83, apoio da Câmara Municipal de São Paulo
Rosely Roth - (21/08/59.-28/08/90)
Onde foi parar o Movimento Lésbico Internacional?
O surgimento das teorias de gênero e a homossexualidade virando atração por gêneros
Movimento Lésbico Internacional parou nas teorias de gênero, mas não se deu por vencido.
Onde foi parar o Movimento Lésbico no Brasil (breve histórico).
Lançamento do Dia do Orgulho Lésbico e da Caminhada Lésbica em texto e fotos
2003: Um divisor de águas para pior: as matrioskas da cooptação.
Movimento Lésbico internacional não se deu por vencido. E o do Brasil?

Imagens de Míriam Martinho nos três grupos dos quais foi cofundadora: Grupo Lésbico-Feminista (LF),
Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF), Rede de Informação Um Outro Olhar)

Nasci no Rio de Janeiro, mas cresci em São Paulo, sendo paulistana de coração. Estudei música e artes plásticas, me formei em tradução, pela Associação Alumni, e em Letras pela Universidade de São Paulo. Sou uma das fundadoras do Movimento Lésbico no Brasil, tendo cofundado as primeiras entidades lésbicas brasileiras, a saber, Grupo Lésbico-Feminista (maio 1979- jul. 1981), Grupo Ação Lésbica-Feminista (out.1981-mar. 1990) e Rede de Informação Um Outro Olhar (abril 1989-2009) [*]. Fundei também, com outros ativistas (gays e lésbicas), a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis -ABGLT (Curitiba, jan. 1985). Fui igualmente propositora, em 1993, da inserção da palavra lésbica no nome dos encontros nacionais de homossexuais, proposta encampada pelos grupos de gays e lésbicas da época, e já presente no VIII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais (Cajamar, SP) em setembro de 1993. Clipe abaixo do vídeo "Memória de Mulheres" (1991). Crédito: COMULHER


Produzi e editei igualmente as primeiras publicações lésbicas de ativismo do país, como o fanzine ChanacomChana (1982-1987) e o boletim e posterior revista Um Outro Olhar (1987 até 2002). Produzi também o boletim sobre saúde lésbica Ousar Viver (1996-2002). Atualmente produzo as páginas Um Outro Olhar e Contra o Coro dos Contentes. Encaminhei ainda, pela Rede de Informação Um Outro Olhar, o primeiro projeto de saúde lésbica no Brasil em 1995, intitulado Prazer sem Medo e financiado pelo Ministério da Saúde.

Desde o início de minha militância, participei, inclusive como organizadora, de encontros e eventos históricos tanto do Movimento Homossexual Brasileiro (depois LGBT) e do Movimento Feminista quanto do incipiente Movimento Lésbico internacional, com destaque para: I Encontro Brasileiro de Homossexuais (EBHO-4-6/04/1980), II Congresso da Mulher Paulista (8-9/03/1980), primeira passeata com participação homossexual contra a repressão policial em São Paulo (13/06/80), manifestação lésbica no Ferro’s Bar contra a discriminação (São Paulo, 19/08/83), 8ª Conferência do Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS), em Genebra, na Suíça (março de 1986), I Encontro Lésbico-Feminista Latino-americano e do Caribe (México, 1987), VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais (EBLHO), em Cajamar, SP (set/1993); 17ª Conferência da ILGA (Associação Gay e Lésbica Internacional), de 18 a 25 de junho de 1995, e o IX Encontro Brasileiro de Gays Lésbicas e Travesti (XIX EBGLT, SP, jan. 1997) de onde se originou a primeira passeata do então MGLBT, em São Paulo, desde a histórica manifestação de 13 de junho de 1980.

Nos últimos anos, me dedico, além da produção de artigos para minhas páginas na Web, ao resgate da história da organização lésbica em sua interrelação com os movimentos feminista e de gays e lésbicas, tendo como guia minha vivência enquanto protagonista e testemunha ocular dos fatos ancorada em permanente pesquisa no acervo da Um Outro Olhar e em outras fontes correlatas.

Míriam Martinho

*Nota: A Um Outro Olhar encerrou suas atividades presenciais em 2009, mas foi mantida virtualmente através de sua página na Internet e da digitalização da documentação de seu acervo.

 

Figura 3: Neusa Maria e Luiza Granado
Em homenagem à ativista Rosely Roth, em outubro de 2000, na revista Um Outro Olhar 33, decidi propor o dia 19 de agosto, dia da primeira manifestação lésbica brasileira contra o preconceito e a discriminação, ocorrida no Ferro’s Bar, como Dia do Orgulho Lésbico Brasileiro. Em 2003, as ativistas Luiza Granado e Neusa Maria de Jesus, então da Rede de Informação Um Outro Olhar e da Coordenadoria Especial de Lésbicas (CEL) da Associação da  Parada do Orgulho GLBT, para dar destaque à questão lésbica nos eventos comemorativos da 7ª parada do Orgulho Gay (como era chamado o evento então) daquele ano, organizaram um debate específico sobre a questão lésbica (11/06/2003) e nele lançaram publicamente o dia 19 de agosto como Dia do Orgulho Lésbico. O dia foi lançado tendo em vista estabelecer uma referência histórica de luta e orgulho para lésbicas com as quais as pessoas se identificassem e pudesse de fato vir a ser comemorada. Como na versão original da manifestação, a Folha de São Paulo fez uma reportagem sobre o assunto, desta feita com Luiza Granado e Neusa Maria de Jesus, pauta que foi, como de costume, reproduzida por outros jornalistas e outros veículos da mídia, dando uma grande divulgação à iniciativa. E em 19 de junho de 2008, a Assembleia Legislativa Paulista aprovou projeto que instituiu o Dia do Orgulho Lésbico no Estado de São Paulo. 

Desde agosto de 2003, o dia 19 de agosto foi lembrado com diferentes tipos de atividades sociais, culturais e políticas. Em 2009, tendo em vista também o marco de 30 anos do início da organização lésbica no Brasil (1979- 2009), decidi celebrar o dia com um relato que resgatava, com fotos e registros originais de época, aquele momento, e um vídeo sobre o evento. Para tal, reproduzi:

1. O panfleto que foi distribuído para as frequentadoras do Ferro’s, informando da proibição da venda do boletim do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) naquele estabelecimento;
2. A matéria posterior à manifestação, elaborada pela jornalista Vanda Frias, integrante do GALF, que faz um bom resumo de todo o acontecido;
3. Outro panfleto do GALF também distribuído no Ferro’s em agradecimento a todas as pessoas que colaboraram com o sucesso da manifestação.
4. A moção de repúdio aos donos do bar, pelas ações discriminatórias, e de apoio às integrantes do GALF, feita pela Câmara Municipal de São Paulo em 19 de março de 1984.
5. Fotos do evento, algumas doadas pelo fotógrafo Ovídio Vieira da Folha de São Paulo ao GALF, outras liberadas pela FSP para o livreto.
6. Resgatei também um pequeno histórico da trajetória de Rosely Roth e de suas atividades em prol dos direitos das lésbicas brasileiras.

Nesta edição, publico também a matéria do jornalista Carlos Brickman sobre a manifestação e resgato  fotos e resumos dos eventos realizados para marcar a passagem do dia 19 além de uma atualização sobre a trajetória do movimento de lésbicas nacional e internacional até os dias de hoje.  

Míriam Martinho 
São Paulo, 19 de junho de 2022


Panfleto distribuído pelo GALF em frente ao Ferro’s em julho de 1983
 
 Capa da HQ do dia 19/08

Democracia também para as lésbicas: uma luta no Ferro’s Bar

Por Vanda Frias

O dia 19 de agosto é muito especial para o Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e para as lésbicas que frequentam o Ferro’s — antigo e velho bar situado quase no Bexiga, bairro dos mais badalados da noite de Sampa.

O frio que baixa na cidade não impede que o "happening” político organizado pelo GALF seja um sucesso. Por volta das nove da noite, as militantes do grupo e mais alguns companheiros do Outra Coisa Ação Homossexualista, formado por homens, continuam a distribuir na frente do famoso bar um panfleto denunciando as agressões que o GALF vinha sofrendo há meses, quando tentava vender seu boletim ChanacomChana dentro do Ferro’s. Um pouco mais tarde, começam a "invadir" o bar figuras um tanto estranhas para suas fiéis frequentadoras: mulheres "diferentes", rapazes de barba e lindos paletós de couro (desses que a gente costuma ver nas manifestações tradicionais da esquerda), bichas finérrimas.

Em pé, Ricardo Cury, Antonio Carlos Tosta (Outra Coisa); Rosely Roth, Míriam Martinho (GALF). Agachadas,
Vanda Frias, Luiza Granado e Célia Miliauskas. Os gays do Outra Coisa foram grande apoio na realização
da manifestação do Ferro’s Bar.


Dentro, a maior confusão. Como sempre acontece no Ferro’s, há poucas mesas para suas frequentadoras, que são obrigadas a se espremer nos estreitos espaços livres, à espera de que a sorte lhes premie com um lugar. Num dia especial, então, os garçons são obrigados a fazer verdadeiros malabarismos para chegar com suas bandejas sãs e salvas até a mesa que fez o pedido.

Mas não e só isso. O atarracado porteiro - sempre tão agressivo com as militantes do GALF -segura firme a porta fechada para garantir que nenhuma dessas “perigosas” mulheres invada tão imaculado recinto. À medida que se aproxima o histórico momento, a força estranha que já havia invadido o bar explode aos gritos de: "entra", “entra", "entra”. Numa das mesas, a vereadora Irede Cardoso (do PT) discursa aos berros sobre a luta pelas liberdades democráticas inclusive para as lésbicas.

Chega a hora: entre os flashes dos fotógrafos, as militantes do GALF - e outras pessoas que ainda estão para fora — forçam a porta do bar, que o porteiro, agora ajudado por outros defensores da “paz e da ordem”, segura como pode.

O inesperado — ou mais uma artimanha de um dos alegres rapazes da banda — precipita tudo. O boné do porteiro é arrancado e jogado longe. Enquanto ele busca tão importante signo de seu poder, duas mulheres puxam-no para o lado oposto. Aproveitando-se desse inusitado embate, as lésbicas do GALF entram. Uma delas, Rosely, sobe imediatamente sobre uma cadeira e começa a denunciar as atitudes autoritárias do bar.

LÉSBICAS EM BUSCA DE UMA ENTRADA

O que Rosely denuncia começara há quase dois meses. Todos os sábados, quando íamos vender o boletim ChanacomChana no Ferro’s éramos agredidas pelo porteiro — com ameaças ou com puxões de braço para que nos retirássemos. Até que no dia 23 de julho último, a barra pesou mais: um dos donos do bar, seu segurança e seu porteiro tentaram concretizar a expulsão, através de agressões físicas. Enquanto nos puxavam para o lado de fora, parte das lésbicas — que compram o boletim e conversam com as moçoilas do GALF - nos segurava lá dentro. Belo corpo-a-corpo: dos que tem a força da ordem e da lei contra as que ganharam no dia a dia uma força física e interior para poder viver numa sociedade onde a regra é ser heterossexual. Quem foge desse padrão é pervertida (o), louca (o), imatura (o) sexualmente e definitivamente não merece compartilhar das benesses desse paraíso terrestre.

Alegando que nós estávamos fazendo "arruaça” dentro de tão comportado ambiente, o dono chamou a polícia. Os policiais chegaram, ouviram as argumentações do dono, as nossas, as das lésbicas não militantes que nos apoiam. E estranhamente um deles respondeu que, como deviam ser imparciais, pois os direitos são para todos os brasileiros, não tomariam qualquer atitude contra nós. Puxaram o carro e pudemos jantar em meio às outras lésbicas, como sempre fazemos. Há também dias — ainda raríssimos — que são da caça e não do caçador.

Foi uma vitória. Depois dela muitas discussões no GALF. Já estávamos cheias de sermos agredidas injustamente e pensávamos que o incidente podia se repetir mais vezes, talvez com mais apoio da polícia. Não queríamos ficar na defensiva. Precisávamos reconquistar nosso direito de vender o ChanacomChana no Ferro’s. Não só vendê-lo, mas conversar com as lésbicas dos mais distintos estratos sociais e vivências pessoais. Não somos e não queremos ser elite ou vanguarda.

A militância política de esquerda sempre foi reprimida. Mas sempre compensada pela certeza de se estar lutando por um mundo melhor e de se estar fazendo história. Mas as (os) militantes da esquerda não enfrentam, no seu dia a dia, as dificuldades das lésbicas e das feministas mesmo quando heterossexuais. São olhadas com certo deboche e feridas com agressões verbais por estarem numa luta menor, num combate não-prioritário. Boa parte da esquerda ainda nos olha dessa forma. Mas não poderia ser de outro jeito numa sociedade falocrata, onde as mulheres nunca tiveram direitos, só deveres-- e quantos. É lógico que, quando algumas buscam resgatar seu passado, para que o presente e o futuro sejam diferentes, sejam vistas como as feiticeiras queimadas na Idade Média por estarem à frente de seu tempo.

Integrantes do GALF que participaram do 19 de Agosto: Célia Miliauskas,
Elisete Ribeiro Neres, Luiza Granado, Míriam Martinho, Rosely Roth e Vanda Frias.
Na foto acima: Maria Rita (ao lado de Rosely) não participou.
Na foto abaixo: Liete (à direita, sentada, não participou).


Processo semelhante acontece com os negros em sociedades racistas como a Brasileira. Ou com os índios, que eram muitas nações nesse Brasil antes da invasão do branco colonizador. E que foram— e ainda são — gradualmente confinados em regiões desabitadas (guetos?). Nessa terra de Vera Cruz que já foi só deles.

São as chamadas "minorias", mais uma palavra que esconde o verdadeiro nome: grupos oprimidos. Nós do GALF queremos ajudar a romper com essa história. Por isso, resolvemos reconquistar o Ferro’s com a ajuda de homens homossexuais, mulheres feministas, ativistas dos direitos civis e militantes ou políticos dos partidos de oposição mais identificados com as lutas das minorias.

 Elisete Neres faleceu em 13/10/2021 de problemas do coração

Por sermos um grupo autônomo, o GALF é aberto às lésbicas dos mais diferentes horizontes políticos. Ao contrário de alguns outros grupos feministas, o GALF não aceita a chamada dupla militância: isto é, batalhar dentro de um grupo e, ao mesmo tempo, dentro de um partido político. Pensamos que a dupla militância foi um dos principais fatores de enfraquecimento dos grupos feministas dos últimos anos particularmente com as eleições de 1982.

Isso não impede que busquemos ótimas relações com os partidos de oposição — PMDB, PT e PDT — pois nossas lutas se cruzam em alguns pontos essenciais, como é o caso da luta pelas liberdades democráticas. Por isso, fizemos questão de convidar, para o happening político do Ferro’s, a deputada Ruth Escobar (PMDB), a vereadora Irede Cardoso (PT), o deputado federal Eduardo Suplicy (PT) e a bancada do PT na Assembleia Legislativa através de carta endereçada ao líder de sua bancada, Marco Aurélio Ribeiro. Como apoio na área legal, convidamos a advogada Zulaiê Cobra Ribeiro (representante da Ordem dos Advogados do Brasil e da Comissão de Direitos Humanos).

Batalhamos na organização do "happening” do 19 de agosto durante quase um mês, enquanto distribuíamos no gueto um panfleto denunciando a atitude do Ferro’s, que não é isolada. Com a reconquista do Ferro’s, buscávamos também lutar pelo legítimo direito de circular livremente em todos os locais.

RESGATE DE UMA HISTÓRIA

Ao contrário de outras ocasiões, quando nos sentíamos acossadas, nós - as militantes do GALF — tomamos a ofensiva naquela sexta-feira. Rosely fez discursos em várias cadeiras. É bom deixar claro que ela não é e não quer ser líder do grupo, pois lutamos contra a hierarquia e o poder; algumas militantes do grupo ainda lutam contra o medo de se exporem publicamente. A interiorização do medo e da repressão é um dos motivos que impedem o grupo de crescer quantitativamente. Porque qualitativamente ele vem avançando desde seu surgimento, em 1979.

Os discursos de Rosely se intercalam com gritos de parte das lésbicas e de nossas(os) companheiras(os) de luta para que o dono apareça. A ordem dentro do bar é sempre garantida pelos garçons, pelo porteiro e pelo segurança, em troca do salário mensal e da sobrevivência. Dos lucros, ele e seu sócio sabem fazer bom proveito.

Por fim, a voz do dono. Cercado por jornalistas, lésbicas não-militantes ou do GALF e pela vereadora Irede, o dono é obrigado a discutir suas atitudes — uma prática democrática a qual parece não estar muito acostumado. Afinal, vivemos no Brasil.

As militantes do GALF conversam com o dono e conseguem que ele declare diante delas, da imprensa e de outras companheiras (os), que o grupo poderá divulgar seu boletim dentro do bar sustentado pelas lésbicas. Findo o episódio, Irede dá um viva a democracia.

Qual democracia? Para nós, do GALF, sua definição transparece na complementação que Rosely faz à Irede: “ele só voltou atrás por causa da nossa força, da nossa união. A democracia neste bar só depende de nós”. Por acreditar nessa democracia, sem lideranças, sem vanguardas e sem elites, é que continuamos a lutar para que todas as lésbicas se expressem e lutem por seus direitos. À maneira de cada uma. Acreditando em nossa autonomia individual, mesmo que participando dos mais diversos grupos.

A repercussão do “happening” político do Ferro’s abriu espaços sociais para o GALF em dois sentidos. Entre as lésbicas, muitas vieram participar do grupo. As que ainda não querem militar já leem nosso boletim com outros olhos e discutem mais conosco. Sabemos que a libertação individual é um processo a longo prazo. Sabemos, também, que, na história, a militância sempre foi um gesto de muito poucos e dentro de espaços delimitados - por exemplo, os partidos políticos.

Neste final de século XX, grupos e pessoas dos mais diversos países querem modificar isso. A militância pela democracia não se restringe aos trabalhadores, seus sindicatos e seus partidos políticos, mas se estende ao cotidiano: às ruas, aos bares, às escolas, ao trabalho, às camas, aos jardins, aos mercados. Em suma, ao dia a dia mais "corriqueiro e banal" de todas(os) cidadãs(ãos). É assim que esperamos ir construindo a verdadeira democracia e o verdadeiro socialismo. Sem todas as hierarquias e poderes que sufocam há milhares de anos, desde a pré-história, a existência, a alegria e o prazer dos seres humanos.

Nessa luta em constante movimento e transformação, as lésbicas têm um papel importante a desempenhar. Desde Safo - poetisa grega que fez alguns dos mais lindos versos de amor pelas mulheres e que, vivendo na ilha de Lesbos deu origem a palavra com qual orgulhosamente nos denominamos - as lésbicas não tiveram voz e foram oprimidas. O resgate dessa história, dos versos perdidos em livros malditos, dos beijos que nunca puderam ser dados à luz do dia, do amor que nunca pode ser declarado à amiga com medo de perdê-la para sempre. Tudo isso e muito mais faz hoje nossa alegria de viver e de lutar. Fonte: publicado originalmente no boletim ChanacomChana 4, setembro de 1983, p. 1-4.

A manifestação do Ferro’s:  uma nota de esclarecimento.

Em 2021, entre outras situações surreais, me deparei com gente fazendo “documentário” sobre um tal “levante” do Ferro’s Bar. Cheguei a dar entrevista para um grupo que pelo menos estava realmente em busca das ativistas que participaram da manifestação. Outros, porém, me disseram que não podiam revelar quem estavam entrevistando por questão de confidencialidade (sic). Também vi minha foto e de Rosely com imagens do Ferro’s junto a fotos de gente que nunca vi na vida. Algumas que reconheci são useiras e vezeiras em reescrever a História para se colocar como protagonistas do que não viveram e não fizeram. Também me deparei, na mesma página do Facebook de um desses “documentários”, com fulana perguntando a beltrana se ela estava nas fotos do Ferro’s, o que por si só é surreal, pois, se estivesse, como não teria sido reconhecida? Ao que a beltrana respondeu que não aparecia nas fotos, mas tinha estado lá e, ainda por cima, com mais umas 30 pessoas do grupo lésbico-feminista extinto em junho de 1981.

O Ferro’s Bar não era uma pista de mil metros quadrados às escuras. Era um restaurante-bar relativamente pequeno, mas bem iluminado, que se iniciava com um retângulo, onde ficavam algumas mesas, depois se estreitava, formando um corredor, porque à esquerda de quem entrava ficava o bar e o espaço onde era feita a comida e assim seguia até quase o fim do estabelecimento. Ainda se abria para mais retângulos onde ficavam mais mesas e culminava com dois micro banheiros à direita de quem caminhava pelo bar. Fora que havia umas colunas bem bregas pelo caminho ajudando a atravancar o espaço.

A manifestação do dia 19 de Agosto foi registrada pelo fotógrafo da Folha Ovídio Vieira desde a concentração na porta do bar até a entrada e depois por todo percurso do evento até o momento em que as integrantes do GALF vão conversar com os Ferro para conseguir deles a promessa de não mais nos impedir de vender o Chana no local. Após o sucesso da empreitada, ainda conseguimos uma mesa na parte final do bar onde ficamos por bom tempo para jantar e bebericar em comemoração à vitória obtida. Em outra mesa, ficaram as feministas que, numa aparição excepcional, apoiaram a manifestação. Eu as identifiquei nas fotos, mas as registro também aqui: Bete Feijó, Maria Teresa Aarão (Teca), Miriam Botassi, Regina Stella e Sonia Alvarez. Destas, a única que fora parte do Grupo Lésbico-Feminista, até outubro de 1980, é a Teca (no evento do Ferro’s já era inclusive ex-SOS Mulher também).

Então, pelo tamanho do bar, por nós do GALF e os apoiadores da manifestação termos percorrido todo o local do começo ao fim, com o fotógrafo registrando tudo passo a passo, e ainda termos ficado um bom tempo comemorando a vitória numa mesa na parte final do Ferro’s, não há como outras ex-militantes conhecidas terem estado por lá sem terem sido vistas e ou fotografadas. No caso dos homens sim existem alguns que foram fotografados, mas não identificados ainda.

Nesse sentido, cumpre esclarecer que as seguintes pessoas não estiveram na manifestação, a não ser que tenham ficado escondidas em alguma realidade paralela à la Strangers ThingsAdriana Arco-Íris, Alice Oliveira, Cristina Calixto, Edna Toffanetto, Gisele Cerqueira Cezar, Hanna Korich, Iara Rosa, Fernanda Pompeu, Maria Angélica Lemos, Marisa Fernandes, Mônica Pita, Nívea Cerqueira Cezar, Rita Quadros, Rita Colaço, Sheila Costa, Sonia Brantys, Terezinha Vicente, Virgínia Figueiredo e Zuleika Aguiar. Podem ter sido frequentadoras do Ferro’s, o que as habilita a falar sobre ele, pois o bar durou até 2000, alcançando várias gerações de lésbicas, mas ter estado no dia da manifestação do Ferro’s não, o que as descarta como relatoras do acontecido. Como há uma clara tentativa de usurpação de protagonismos e de reescritura da História, há que se fazer esse esclarecimento.

É bastante estranho inclusive que uma manifestação tão bem registrada em foto e texto desde o início seja agora motivo de documentário com pessoas alheias a ela, 18 anos após o Dia do Orgulho Lésbico ter sido lançado. Onde estavam essas pessoas nos anos anteriores que não se pronunciaram? Algumas estavam inclusive combatendo o dia do orgulho, eu asseguro. Aliás, o simples fato de estarem chamando uma manifestação pacífica de levante, já demonstra o interesse de reescrever os fatos. Nem Stonewall, em que gays, lésbicas e travestis entraram em confronto físico com a polícia, foi chamada de levante, imagine uma manifestação que não teve nenhum atrito ser chamada assim (fora a resistência truculenta do porteiro no início). Os donos do Ferro’s logo sacaram que era mais proveitoso para eles cederem à nossa demanda. E era mesmo. Ganharam publicidade da Folha, conquistaram um público de classe média-alta que não costumava frequentar o local. Foi um ganha-ganha geral. Nada a ver com papo de levante. O Ferro’s não era a Bastilha nem o GALF alguma milícia popular para o episódio ser chamado de levante. Fazendo uma atualização, "levante" é o que acaba de acontecer no Sri Lanka, onde uma insurreição popular invadiu o palácio do governo, ocupando-o e pondo o presidente para correr (já renunciou).  O que fizemos no Ferro's, como bem disse a Vanda Frias e o Carlos Brickman, foi um happening político, uma manifestação bem-organizada e de pressão que, no entanto, se abria para o imprevisto, o improviso e a participação da plateia, como de fato aconteceu.

Seria mais proveitoso, para a história da organização lésbica, se essas senhoras fizessem um documentário sobre o lançamento do dia da visibilidade lésbica, que sempre foi sua data de celebração, e do primeiro SENALE sobre os quais há enorme escassez de dados.

A história do 19 de agosto, suas protagonistas e seus apoiadores foram devidamente registrados pelas lentes de Ovídio Vieira e os textos de Carlos Brickman e Vanda Frias. Oportunismo é feio e reescrever a História, coisa de fascista, no seu sentido histórico.


A manifestação do Ferro’s: fatos e fotos

Algumas das fotos abaixo foram doadas pelo fotógrafo Ovídio Vieira ao GALF e depois integradas ao Acervo da Um Outro Olhar. Outras foram obtidas junto à Folha Imagem. Obrigatório citar os créditos das fotos e seu link para este trabalho.

Míriam Martinho e Rosely Roth barradas pelo porteiro.  GALF e Outra Coisa conversam com frequentadoras do Ferro's

Início da "invasão". Na segunda foto, identifica-se a feminista Regina Stella de presilha no cabelo.

Rosely discursa na cadeira. Ao seu lado, o jornalista Carlos Brickman da Folha. No canto direito da foto, Antônio Carlos Tosta (Outra Coisa) e Vanda Frias (GALF). Na segunda foto, em primeiro plano, a feminista Bete Feijó, a seu lado direito Míriam Martinho. No meio da foto, de óculos, Luiza Granado e atrás dela Célia Miliauskas (ambas do GALF). Ao lado de Célia, o escritor Nestor Perlongher. Atrás de Célia, Ricardo Cury (Outra Coisa).


Primeira foto, Rosely na cadeira. Ao seu lado, encostada na parede, a feminista Míriam Botassi. No meio da foto, olhando para Rosely, a feminista Maria Teresa Aarão (Teca) e, atrás dela, novamente Nestor Perlongher. Na segunda foto, à esquerda, encostadas na parede, as feministas Miriam Botassi e Sonia Alvarez. No canto direito, novamente Rosely e, atrás de seu braço, Míriam Martinho.

Vereadora Irede Cardoso ao centro discursando. Ao seu lado direito, Rosely Roth e Elisete Neres do GALF. Na segunda foto, os donos do Ferro’s que por fim se comprometeram a liberar a venda do ChanacomChana

A noite em que as lésbicas invadiram seu próprio bar
por Carlos Brickman

 Rosely Roth no início da manifestação. À esquerda da foto, a feminista Míriam Botassi.

São 22h15, sexta-feira. Faz frio na rua Martinho Prado. Na calçada, um grupo de moças aguarda pacientemente o momento de entrar em ação. Rosely, a líder, anuncia que chegou a advogada. Está tudo pronto: a um sinal, as lésbicas invadem o Ferro's Bar.

Houve alguma resistência, logo vencida. O porteiro, assim que começou a invasão, fechou as portas e segurou-as com o corpo. Dentro do bar, tumulto total: gritos de "entra, entra", tentativas inúteis de parlamentar com o porteiro, um discurso da vereadora Irede Cardoso que, doente, saiu de casa só para apoiar a manifestação. Alguém força a passagem, o porteiro empurra violentamente dois rapazes, enfia a mão no rosto da militante Vanda. De repente, cessa a resistência: alguém tirou o boné do porteiro e o atirou no meio das mesas. Enquanto, desesperado, o porteiro sai atrás do boné, completa-se a invasão.

Estranho, muito estranho: se o Ferro' s Bar é há mais de vinte anos o ponto de encontro preferido das lésbicas da cidade, por que elas precisaram invadi-lo?

O grande desquite

O Ferro's Bar é um dos melhores exemplos de má decoração que existem em São Paulo. Chão amarelo não muito limpo, de cacos de cerâmica; paredes com azulejos azuis até à metade e terríveis pinturas multicoloridas na parte superior; enfeites de gesso creme que certamente conheceram melhores tempos; e colunas revestidas em baixo de fórmica branca, no meio de fórmica azul, no alto de pastilhas espelhadas. Isso é compensado pela comida, boa — embora um pouco oleosa — e relativamente barata. Em outras épocas, foi reduto de jornalistas, escritores e prostitutas; depois, de homossexuais masculinos; finalmente de lésbicas.

Uma relação tumultuada, sempre. No início da década de 70, julgando-se maltratadas, as lésbicas se mudaram para um bar na Galeria Metrópole. Os donos do Ferro's lhes pediram que voltassem, prometendo melhor tratamento; foram atendidos. Alguns anos depois, num incidente meio nebuloso, uma jovem levou uma garrafada; há poucos dias, um rapaz dirigiu algumas grosserias a uma moça, que reagiu, apanhou e teve de tomar seis pontos no rosto (e, segundo as frequentadoras, os garçons do bar impediram que alguém interrompesse a surra).

A gota d’água viria no dia 23 de julho. As militantes do Grupo Ação Lésbica Feminista entraram no bar para vender seu jornal, que tem o sugestivo título de "Chana com Chana" — o leitor tem liberdade para imaginar o que quer dizer. No momento em que faziam o discurso de apresentação do jornal, foram postas para fora do bar. "O dono proibiu nossa entrada", informa Rosely. "Não proibi nada, nem a venda do jornal", rebate Aníbal, um dos sócios do Ferro's. "Só não quero tumulto. Ou então daqui a pouco vem gente querendo vender colchão aqui dentro. Não dá, não é?"

Não era bem verdade; tanto a entrada das moças estava proibida que na noite da invasão o porteiro fechou-lhes a porta na cara. O fato, porém, é que colocá-las fora do bar por pouco não custou o rompimento definitivo do velho casamento entre as lésbicas e o Ferro's.

Final feliz

Rosely é uma morena bonita, alta, de 23 anos e grande capacidade de mobilização. Embora o movimento rejeite lideranças, ela encabeçou o protesto: "Nós sustentamos esse bar e temos o direito de vender nosso boletim", afirmou. "Se eles não recuarem, vamos boicotar o Ferros!".

Foi tudo muito bem-organizado: houve convites a Irede Cardoso, ao deputado Eduardo Matarazzo Suplicy (que lamentou não poder ir, pois estava de viagem marcada), à advogada Zulayê Cobra Ribeiro, da OAB, garantindo a cobertura de quem participasse do protesto; e contatos com grupos de homossexuais masculinos, entidades feministas, ativistas de direitos civis, todo esse pessoal que dá a vida para comparecer a um protesto e contribui para engrossar a manifestação.

Juntar todo o grupo à porta do Ferro's levou mais de uma hora. Dentro, o clima era de tensão: nas mesas, lésbicas discutiam a validade ou não do protesto, o risco de se envolverem em confusões que as prejudicariam no emprego ou revelariam a verdade às famílias; no balcão, o proprietário dizia esperar com ansiedade o momento da invasão. "É propaganda, é bom, o nome do meu bar vai sair na "Folha". 

E mais tarde as moças vão cair em si e ver que estavam erradas". Mas o porteiro se mantinha alerta, pronto para fechar as portas no momento propício — manobra que só falhou porque lhe tiraram o boné.

Depois da invasão, o "happening": Rosely discursando em cima da me­sa, grupos de lésbicas menos assumi­das saindo de rosto coberto, medrosas de eventuais fotografias, a vereadora Irede Cardoso funcionando como me­diadora. Um pouco atrás, o porteiro, já de boné, tentava sem êxito puxar briga com uma lésbica que o chamara de palhaço (não sabe do que escapou: a moça é boa de briga e trabalha na polícia). Gritaria geral, enquanto Ire­de parlamenta com o proprietário e Rosely. Irede pede silêncio, fala alto, acaba sendo atendida: "O dono do bar está dizendo que foi tudo um mal en­tendido, que ele ama as lésbicas, quer que venham aqui e vendam seu bole­tim em paz. Quer que conversem com o outro sócio, também, para acabar com todos os mal-entendidos. Ele re­conhece que vive de vocês. E viva a democracia!"

Rosely ainda quer discutir, exige que o dono repita sua rendição em voz alta, Irede a acalma, ela discursa: "Ele só voltou atrás por causa de nos­sa força, de nossa união. A democra­cia neste bar só depende de nós!"

O clima já está relaxado, os garçons voltam a circular de mesa em mesa com cerveja bem gelada. E Aníbal, o proprietário, completa: "Podem ven­der o jornal. Mas para mim é de graça, tá?"

Fonte: Folha de São Paulo, por Carlos Brickmann, 21/08/1983.


 Panfleto distribuído no Ferro's após o dia 19


 Moção de repúdio da vereadora Irede Cardoso contra os donos do Ferro's

Rosely Roth (à direita) entrevistando Cassandra Rios e Irede Cardoso no Ferro’s. Acima Ubiratan da Costa e Silva
 do grupo gay Lambda/SP  (São Paulo, set. 1986).


O dia 19 de agosto, dia do orgulho das mulheres lésbicas no Brasil, além de marcar a data da primeira manifestação protagonizada por lésbicas contra o preconceito e a discriminação, celebra também a memória de Rosely Roth.

A manifestação no Ferro’s bar, análoga ao Stonewall Inn americano, teve em Rosely sua figura de destaque. Nela, Rosely iniciou sua trajetória inigualável de visibilidade junto à imprensa escrita e aos meios de comunicação da época. Participou de programas de rádio e televisão e deu várias entrevistas à imprensa, dos grandes aos pequenos jornais. Fora isso, também escreveu artigos para o boletim ChanacomChana e para a imprensa feminista, além de participar de inúmeros encontros, seminários, simpósios e reuniões (ver histórico ao fim do texto).

Como a confirmar a máxima pessoana de que morre jovem o que os deuses amam, Rosely brilhou intensamente em sua breve vida, ceifada aos trinta anos de idade pela grave enfermidade que a acometeu. Ao final de 1987, durante o IV Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe (19 e 25 de outubro), no México, Rosely passou a apresentar as alterações perceptivas, tanto auditivas quanto visuais, que caracterizam a esquizofrenia, doença que atinge jovens adultos na faixa dos 28 a 30 anos (no caso das mulheres). Fruto de um desequilíbrio químico-cerebral, de provável origem genética, a esquizofrenia, apesar dos avanços nos medicamentos de controle dos surtos, ainda hoje leva mais de 10% de suas vítimas ao suicídio, inclusive porque a acompanham períodos de intensa apatia e depressão. Após 2 anos e meio lutando com a doença, Rosely se suicidou no apartamento de sua namorada, Vera Lúcia S. de Barros, em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro, no dia 28 de agosto de 1990.

Sua morte provocou grande choque mesmo entre aquelas pessoas que acompanhavam de perto seu calvário e sabiam da possibilidade de um trágico desfecho. Como sempre acontece em casos de suicídio, ainda mais de pessoas de grande potencial humano como Rosely, formou-se uma espécie de tabu sobre o acontecido, como se morrer de uma doença grave fosse motivo de vergonha e não uma simples fatalidade a que estamos todos sujeitos de um jeito ou de outro. Tal tabu inclusive não combina com a memória de uma mulher que se destacou exatamente pela quebra dos silêncios e dos tabus em relação à lesbianidade e cuja trajetória de ativista foi um exemplo de luta contra a insanidade do preconceito e da discriminação. Que ele se desfaça, portanto, não só por Rosely mas também como uma contribuição à desmistificação da doença que a acometeu da qual padecem milhares de pessoas no mundo inteiro. Mais informações em Rosely Roth: ouçam nossas vozes no dia mundial da pessoa com esquizofrenia. Aproveito também para indicar um filme que uma portadora de esquizofrenia me indicou. Chama-se Palavras nas Paredes do Banheiro, história de um adolescente esquizofrênico às voltas com as agruras da doença e das medicações. O filme pega leve na questão, mas mostra bem o que sentem os portadores dessa enfermidade tão desafiante. Está no Prime video da Amazon.

Para a história do Movimento Lésbico e do movimento brasileiro de gays e lésbicas, o que de fato importa é naturalmente a lembrança de sua trajetória ímpar, muitos anos à frente de seu tempo, que celebramos anualmente pelas razões já ditas acima e referendadas na carta abaixo, enviada por integrantes do grupo Deusa Terra (do início da década de noventa) ao International Gay and Lesbian Human Rights Comission (IGLHRC), como indicação ao prêmio Felipa de Souza.

 Carta do Grupo Deusa Terra indicando Rosely ao prêmio Felipa de Sousa

Rosely Roth – Notícias Populares,
04/06/1985

Rosely Roth iniciou seu ativismo em fevereiro de 1981, quando se uniu ao GRUPO LÉSBICO-FEMINISTA (LF), mesmo ano em que se formou em filosofia pela PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SP, onde também iniciou pós-graduação em Antropologia (85-87). Em outubro de 1981, fundou, com Míriam Martinho, o Grupo Ação Lésbica- Feminista (GALF), onde atuou até 1987.

Textos para o fanzine ChanacomChana

ChanacomChana (CCC) 2: A Queda Para o Alto. Resenha do livro de Sandra Mara Herzer, p. 4, 1983
CCC 3: Depoimento Pessoal, p. 8, 1983
CCC 4: Autonomia, p. 5, 1983
CCC 5: Desarmamento Nuclear, p.9, 1984
CCC 7: Família, p.4, 1985
CCC 8: Lésbicas X Censura, p. 7, 1985
CCC 9: Homossexualidade na Constituinte, p. 16, 1985
CCC 10: Homossexualidade nas Leis, p. 8, 1986
CCC 11: VIII Encontro Nacional Feminista, p. 1. 1986
CCC 12: Balanço das Eleições, p.16.
OUTRO OLHAR 1: VERA, pág. 1. 1987

Texto de reflexão para GALF: O Lesbianismo enquanto Postura Política (1985)

Trabalhos não publicados

A constituição da identidade de um grupo de mulheres lésbicas-feministas.
A identidade da mulher.
Papéis de gênero e a questão das identidades.
Contribuições de Lévi-Strauss e de Pierre Castres para se pensar a questão dos papéis de gênero. Vivências lésbicas (tese sobre vivências lésbicas em bares e boates)

Entrevistas e textos para jornais

O Sexo do Brasil, resenha do livro História e Sexualidade no Brasil, para o jornal Mulherio, n.30, julho de 1987.
Entrevista ao Pasquim, Lesbianismo é um estilo de vida mais criativo (27.11.85).
Entrevista à Club dos Homens, n.17.
Depoimento: Desenrusta-se! Para Big Men Internacional (1984).
Adotar filhos, desafio para os homossexuais. Folha de São Paulo (02/6/85).
Homossexuais disfarçam na hora de adotar. Notícias Populares (4/06/85).
Lesbianismo na TV: polêmica aumenta. Folha de São Paulo, 01/06/86.
Depoimento, para o Jornal da Tarde, sobre a expulsão do GALF, efetuada pelo grupo Centro Informação Mulher (CIM), da sede que ambos os grupos dividiam no bairro da luz, São Paulo. 24/12/84.
Só Tabu. Folha da Tarde, 1987.

Televisão

Dois programas da apresentadora de TV, Hebe Camargo, sobre homossexualidade feminina em 25/05/85 e 29/04/86; Em Julgamento, Bandeirantes, Homossexualismo É Doença? (s.d.); Programa Blota Júnior, TV Bandeirantes, Homossexualidade X Constituinte (03/86)



Onde foi parar o Movimento Lésbico Internacional?

Gay Liberation Front- NCY LGBT Historic Sites Project


Quando escrevi a primeira versão desse livreto, em julho de 2009, abordei brevemente a trajetória do movimento lésbico internacional, sob o título “40 ANOS DE MOVIMENTO LÉSBICO”, tendo como ponto de partida a data dos eventos da revolta de Stonewall em junho. Esses eventos foram capitalizados pela organização Gay Liberation Front – GLF (Frente de Liberação Gay), formada logo após a revolta, um dos principais protagonistas da construção do contemporâneo movimento gay (homossexual) que se expandiu paulatinamente para todo o mundo. Vale lembrar que esse “gay” do GLF incluía as lésbicas, fato importante a destacar pois alguns gays insistem em monopolizar o protagonismo da construção do movimento pelos direitos homossexuais até hoje. Na foto acima, usada pelo GLF como poster, pode-se inclusive observar uma equivalência numérica entre gays e lésbicas.

 Produzido pelo DOB de 1956 a 1972

Se formos considerar o grupo lésbico Daughters of Bilitis (1955-1995), originário de San Francisco, Califórnia, e pioneiro na luta pelos direitos civis das mulheres homossexuais nos EUA, teríamos que recuar ainda mais no tempo e, já em 2009, estarmos falando de 54 anos de organização lésbica internacional. Apesar de se situar, pelo nascimento, dentro do chamado Homophile Movement (Movimento Homófilo), das décadas de 50-60, como sua existência atravessa o marco histórico de Stonewall e vai além, o DOB pode se inserir também no contexto do movimento homossexual contemporâneo.

Se fôssemos abordar essa história de ativismo para antes do movimento de gays e lésbicas contemporâneo e do Movimento Homófilo, seguramente recuaríamos até o século XIX e a expandiríamos para outros países além dos EUA, o que óbvio não é propósito desse apanhado que retoma o anterior de 2009 a fim de responder agora à pergunta “Onde foi parar o Movimento Lésbico?”. Já adianto que a pergunta é ambígua e irônica.

Há 13 anos, na primeira edição deste trabalho, eu resumia a trajetória do ativismo lesbiano da seguinte forma:

A trajetória das lésbicas, com pequenas diferenças de país para país ocidental (onde foi possível existir um movimento homossexual), poderia ser resumida da seguinte maneira: primeiro, as lésbicas se insurgem contra a homofobia junto com os homens homossexuais; depois se ressentem do androcentrismo do movimento misto e buscam no movimento feminista encontrar espaço para suas questões também como mulheres. Entretanto, o heterocêntrico movimento feminista, como nas palavras de Rita Mae Brown, histórica ativista lésbica americana, não só empurrou as lésbicas de volta para o armário como também fechou a porta com pregos (the women’s movement not only pushed us back in the closet, they nailed the door shut).[1]

Em seguida, resumia também os primórdios da organização autônoma das lésbicas no início dos anos setenta e oitenta, pelas mãos das lésbicas feministas, separatistas, radicais e sua concepção da lesbianidade como política, pois se constituiria na maior negação da heterossexualidade obrigatória. Um destaque dessa perspectiva foi o surgimento do ILIS (sigla em inglês para Serviço de Informação Lésbica Internacional) na Europa em 1980. A organização, de caráter itinerante (vários grupos lésbicos assumiam a sigla a cada período), foi responsável pela 8ª conferência do ILIS, em Genebra, de 28 a 31 de março de 1986 (ChanacomChana 10, p. 19 a 27), matriz de onde se originaram, por exemplo, o I Encontro Lésbico-Feminista Latino-Americano e do Caribe e a Rede Asiática de Lésbicas.

Entretanto, excessos críticos dessas correntes quanto ao heterossexo e ao sexo lésbico que incluísse uma suposta reprodução das relações heteropatriarcais levou ao surgimento de acirrado debate nos EUA sobre a sexualidade feminina, durante a década de 80, que ficou conhecido como Sex Wars (Guerras Sexuais). Reclamando que essas correntes faziam um patrulhamento da própria sexualidade lésbica, sobre a qual recaísse suspeitas de reproduzir as relações heteropatriarcais, lésbicas que vieram a ser chamadas de “pró-sexo” (feministas hétero e bissexuais também fizeram parte dessa turma), como as sadomasoquistas e as butch-femme (par bofinho-lady), passaram a reivindicar que era possível ser feminista e gostar de sexo, entendendo que a sexualidade era o terreno do lúdico, da fantasia, não cabendo projeções literais da realidade da dominação homem-mulher no território das brincadeiras sexuais. No fim dessas guerras sexuais, quem as observava com mais distanciamento, porém, percebeu que os supostos lados opostos estavam usando argumentos muito parecidos um contra o outro e, no fundo, ambos desejavam estabelecer receitas de como as mulheres deveriam se relacionar erótica e afetivamente.

Com o término das chamadas guerras sexuais, a partir da década de noventa, as lésbicas iniciam uma nova fase de aparente autonomia em relação ao feminismo, voltando a interagir mais com os gays, no movimento homossexual (agora já o da sopa de letrinhas GLBT), bem como com outras minorias sexuais. Surgem inúmeras identidades representativas das diversas subculturas da população de mulheres homoafetivas. Essa multiplicidade de identidades (lipstick lesbians, gay, sapatas, butch-femme, dykes, queer, entre outras) será peça-chave na visibilização das lésbicas perante a sociedade somada ao avanço dos direitos homossexuais em geral e o interesse da mídia do período pela lesbianidade. 

Dessa crescente visibilidade dos anos 90 que inclusive adentra a primeira década do século XXI, surgem as dyke marches (em 1993), também nos EUA, que se espalharam não só local como internacionalmente, sites específicos, filmes, o seriado Xena: A Princesa Guerreira (set. 95- jun. 2001), com seu famoso subtexto lésbico, publicações e editoras lésbicas (revistas, livros), outros seriados lésbicos, a série The L Word (jan. 2004 – mar. 2009), lutas na justiça por assumir direitos parentais, a maternidade conjunta dos filhos, por reprodução assistida, os estudos lésbicos nas universidades, etc. Sobre estes, nas universidades dos países desenvolvidos dos anos 90, à parte dos estudos feministas, LGBT e queer, emergem inúmeras teses e livros analisando as vivências lésbicas, de distintas perspectivas ideológicas, em seus diferentes aspectos sociais, étnicos, históricos e políticos. Aqui, no Brasil, esses estudos estavam apenas começando a se delinear.

O surgimento das teorias de gênero e a homossexualidade virando atração por gêneros

Todavia, toda essa efervescência lésbica começará a declinar de fins da década de 2000 em diante. Já em novembro de 2006, numa reunião internacional de grupos de direitos humanos na cidade de Yogyakarta (Joguejacarta), na Indonésia, criam-se os chamados Princípios de Yogyakarta, onde teóricos da identidade de gênero conseguiram introduzir não só o conceito de identidade de gênero como também redefinir orientação sexual da seguinte maneira:

Compreendemos orientação sexual como uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas.

Aqui vale fazer uma breve linha do tempo do termo gênero até se chegar aos Princípios de Yogyakarta. Em termos contemporâneos, “gênero” foi um termo emprestado da gramática pelo psicólogo e sexólogo neozelandês John Money, em meados dos anos 50, a fim de caracterizar comportamentos que considerava mais apropriados para pessoas do sexo feminino ou masculino. Ele trabalhava com intersexuais. Posteriormente, Robert Stoller, um psiquiatra americano, empresta o termo “gênero” de Money e cunha a expressão “identidade de gênero” que aparece em seu livro Sex and Gender (Sexo e Gênero) de1968. Stoller pesquisava sobre homossexualidade, transexualidade e intersexualidade.

Em termos de movimentos sociais, atribui-se o termo transgênero ao crossdresser Virginia Prince em 1969, embora alguns o considerem apenas seu popularizador, a paternidade da palavra cabendo de fato ao psiquiatra John F. Olivan em 1965Como transgêneros, Prince definia membros de um movimento de homens heterossexuais que se travestiam, nos anos 60 e 70, em oposição aos transexuais. Prince criou a revista Transvestia (1960) e várias organizações para crossdressers, como a Foundation for Full Personality Expression (FPE), também nos anos 60 e 70. Aliás, gays e transexuais não eram admitidos nessa organização. Prince também publicou livros sobre crossdressing, como The Transvestite and His Wife (O travesti e sua esposa,1967) and How To Be a Woman Though Male (Como ser uma mulher embora macho, 1971).[2]

Também na década de 70, no exterior, feministas passaram a usar o termo gênero em oposição à sexo, sendo “gênero” uma série de convenções sociais sobre o que é ser homem e mulher, aglutinados nos estereótipos feminino e masculino, e sexo, nossa realidade biológica, material.  No Brasil, ainda na década de 80, continuávamos falando de sexo e papéis sexuais. Só a partir da década de 90, começa-se a usar o termo gênero, papéis de gênero, mas dentro da perspectiva já apontada de gênero como construção social e sexo como realidade biológica. A partir da década de 90, a teoria queer vai adotar o termo gênero aí já no sentido de performance que dá suposta existência a uma abstração. Gênero se torna real na medida em que é representado. Também aparecem as ideias de sexo como construção social e de palavras capazes de mudar e definir a realidade que rotulam. Apesar da posição aparentemente construtivista, teóricos queer acabaram contribuindo para a renaturalização dos estereótipos de gênero.

Por fim, as pessoas que redigiram a primeira carta de direitos de gênero, em 1990, foram dois crossdressers, casados, com filhos, Joann Roberts e Phyllis Frye.[3] O documento foi chamado primeiramente de Bill of Gender Rights, depois de International Bill of Gender Rights (Carta Internacional de direitos de Gênero). Frye, um advogado casado com uma mulher, por três décadas, fundou também, em 1992, a International Conference on Transgender Law and Employment Policy (Conferência Internacional sobre Direito Transgênero e Política de Emprego). Essa carta, por sua vez, vai influenciar a introdução da expressão “identidade de gênero”, já misturada com a questão da orientação sexual, nos Princípios de Yogyakarta, como já citado.

O problema dessa definição de orientação sexual, como aparece nos Princípios de Yogyakarta, como “atração afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero” é que, para começar, se trata de algo paradoxal. Orientação sexual - como o nome já diz - é para qual sexo nosso desejo se dirige, não para qual gênero. Entre pessoas homossexuais, gays e lésbicas, gênero aparece como no máximo preferência sexual, um termo meio em desuso hoje em dia, mas que significa o que se prefere fazer na cama com aquele tipo de pessoa por quem se tem tesão. Há lésbicas que preferem mulheres que fazem o gênero mais feminino, outras preferem as que fazem o gênero mais masculino, outras preferem as que fazem o gênero andrógino, outras nem dão importância a modelitos e agem na base do que vier eu traço desde que venha num corpo do sexo feminino. Gays também têm preferências sexuais por homens que fazem vários diferentes gêneros desde que também venham num corpo do sexo masculino (são famosas as várias subculturas gays: bombados, ursos, pocs...). Porque a homossexualidade é uma variante da sexualidade humana não uma performance de gênero.

Por isso, a crescente substituição da palavra sexo por gênero, que cresce neste século XXI em particular, vai criar inevitáveis problemas para os movimentos cuja luta sempre foi baseada em sexo, não em gênero, como o movimento feminista e o de gays e lésbicas. A opressão das mulheres é baseada em seu sexo não em representações de gênero. Mulheres sempre tiveram suas vidas definidas e limitadas por serem do sexo feminino, não do gênero feminino. Ao contrário, o gênero feminino, aquele conjunto de convenções sociais sobre ser mulher que a sociedade patriarcal impõe às mulheres, é exatamente um dos principais instrumentos de adestramento para a submissão das mulheres e para seu controle social.



[1] WILTON, TAMSIN. Disobeying “mother feminism” – A history of divisions. In: Lesbian Studies, Setting An Agenda. Kentucky (USA): ROUTLEDGE, 1995, p. 95  
[2] Jeffreys, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism (p. 26). Taylor and Francis. Edição do Kindle.
[3] Jeffreys, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism (p. 143). Taylor and Francis. Edição do Kindle.

No caso do movimento de gays e lésbicas, sua luta sempre foi pelo direito à livre expressão das relações erótico-afetivas entre pessoas de mesmo sexo, não do mesmo gênero, pela livre orientação sexual, pelo fim da limitação da sexualidade humana ao heterossexo para fins reprodutivos. Em outras palavras, sempre foi contra a heterossexualidade obrigatória, importante componente dos estereótipos de gênero.

Na prática, essa substituição de sexo por gênero resultou, para as mulheres, na invasão de seus espaços exclusivos (banheiros, vestiários, centros de acolhimento de mulheres violentadas, esportes, aplicativos de encontros etc.) por homens que se reivindicam mulheres, pois reproduzem o estereótipo de gênero feminino. Resultou também na constante invisibilização das mulheres da linguagem, reduzidas a “pessoas com vagina”, “pessoas com útero”, “pessoas que menstruam”, “pessoas que dão à luz”, “pessoas que amamentam”. Enquanto os ideólogos da identidade de gênero, em particular o movimento transgênero, querem a fórceps que todos aceitem suas ditas identidades de gênero, negam e usurpam a identidade sexual da maior parte da população humana. A escritora J. K. Rowling, autora da saga Harry Potter, entrou na mira dos transativistas por ter ironizado a expressão “pessoas que menstruam”. Disse ela em um tuíte: “-Tenho certeza de que havia uma palavra para essas pessoas. Me ajudem: mulhen, mulund, mumud?” Mulheres (e homens também) que têm discordado das premissas dos ideólogos de gênero acabaram por perder até empregos por acusação de transfobia, havendo atualmente um início de reversão desse quadro

Para gays e lésbicas, a substituição de sexo por gênero resultou em acusações de transfobia pelo simples fato de serem homossexuais e recusarem se relacionar com pessoas do sexo oposto. Não transar com pessoas do sexo oposto significaria que o gay ou a lésbica é genitalista, como se nossos genitais não fossem parte indissociável de nossos corpos e pepecas e bilaus pudessem ser guardados na gaveta dos armários de acordo com as conveniências. Significa que, inclusive no movimento que gays e lésbicas criaram para combater a heterossexualidade obrigatória, uma nova espécie de cura gay travestida de progressismo vem rolando quase sem disputa.

As lésbicas têm sido particularmente vitimadas por essa cultura transgenerista. Primeiro porque as que se identificam com o combo de convenções do gênero masculino vêm sendo convencidas de que de fato são homens trans e não simplesmente mulheres masculinas, fanchas, sapatonas, caminhoneiras. Jovens lésbicas têm sido submetidas a bloqueadores de puberdade e sofrido mastectomias e histerectomias em idade tão precoce quanto 13 anos. Outras lésbicas vêm sendo induzidas a se relacionarem com pessoas do sexo masculino pois estas seriam “de fato” mulheres por reproduzirem o estereótipo de gênero feminino. Lésbicas que não querem se relacionar com o sexo oposto ao seu são rotuladas de genitalistas, como já dito, bucetistas, “racistas sexuais”, e naturalmente transfóbicas por não considerarem seres humanos do sexo masculino que se reivindicam mulheres como potenciais parcerias sexuais.


Toda a pujança e vitalidade da movimentação lésbica dos anos 90 e 2000 desapareceram no exterior, segundo relatos. Bares e boates exclusivos fecharam, festivais de música de mulheres acabaram, grupos ativistas perderam seu sujeito político específico e a própria palavra lésbica foi rotulada como fora de moda, dando lugar a uma infinidade de rótulos baseados no difuso termo gênero. Permanecem existindo grupos que até se rotulam de gays e de lésbicas, mas suas pautas privilegiam questões de gênero e de direitos políticos de transgêneros.

Então, o Movimento Lésbico internacional parou nas teorias de gênero, mas não se deu por vencido.

De fato, nos últimos 6 anos principalmente, iniciou-se uma reação contra essas teorias que tanto têm afetado a vida de mulheres e gays e lésbicas, sem falar nas crianças (pois também inventaram uma tal de criança trans). As feministas radicais foram pioneiras no combate a essas ideologias que vêm retrocedendo os direitos das mulheres em muitos aspectos. Não por menos têm sido demonizadas pelo transativismo que até criou o insulto TERF (trans exclusionary radical feminist – feminista radical trans excludente) com o qual atacam mulheres insubmissas. Tiro meu chapéu para sua bravura e resiliência. A elas se somaram, com o passar do tempo, outras mulheres, feministas independentes ou simplesmente mulheres conscientes da necessidade de preservar os direitos das mulheres que são baseados em seu sexo.

Allison Bailey processou a sociedade de advogados
 Garden Court e o grupo Stonewall que a acusaram
de transfobia por ser crítica de gênero.

Também gays e lésbicas, saturados de ver sua orientação sexual desrespeitada, passaram a se organizar em grupos LGB, como as “LGB Alliance” (Aliança LGB), destinadas a promover os direitos de lésbicas, gay e bissexuais com base em orientação sexual não em gênero. Por fim, como essas teorias interferem, a bem da verdade, na vida de todos, surgiu também o movimento crítico de gênero (gender critical movement) que abrange mulheres e homens de todas as orientações sexuais e identidades (inclusive trans críticos do transativismo), de idades e perspectivas políticas diferenciadas que acreditam em biologia e se opõem à medicalização de crianças e ao apagamento de mulheres e de gays e lésbicas. Embora incipientes, essas movimentações já começam a dar frutos como, por exemplo, em alguns locais, a proibição da participação masculina em esportes femininos. As entidades internacionais de esportes como natação e rúgbi decidiram limitar a participação de trans em jogos de mulheres. Também mulheres críticas de gênero como Maya Forstater e Alisson Bailey, cofundadora da LGB Alliance UK, ganharam os processos contra seus empregadores que as discriminaram por suas ideias. E a clínica para transição de gênero de crianças e adolescentes, Tavistock, foi fechada por ser considerada insegura para as pacientes.

Mesmo no âmbito acadêmico, aí dentro do contexto mais amplo de crítica ao que se chama atualmente de esquerda identitária e às suas polícias do pensamento e políticas do cancelamento, vozes divergentes começaram a se insurgir contra as demandas dos outrora libertários, hoje autoritários movimentos sociais. Cito, como exemplo, o ensaio recém-lançado da historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, intitulado Eu Soberano – Um Ensaio sobre as Derivas Identitárias, onde a autora questiona a política do cancelamento, o revisionismo histórico e o vitimismo do ativismo atual. Sobre gênero, ela afirma em entrevista ao Estadão:

“...outra motivação para o ensaio é mostrar que houve passos para trás com várias dessas derivas identitárias. A questão do gênero foi revolucionária ao introduzir a noção de que ele é uma construção social e psíquica e não apenas uma diferença anatômica de sexo, mas houve uma guinada no sentido contrário quando se passou a negar o sexo em detrimento do gênero. Ambos, sexo e gênero, são necessários.”

Pessoalmente, acho que gênero só tem alguma utilidade para animar fruições libidinosas no terreno do privado. Na real, não pode ser levado a sério se se quer um mundo mais igualitário em oportunidades para todas as pessoas. A função do gênero é distribuir as características humanas arbitrariamente entre os sexos, determinando funções específicas e hierárquicas para mulheres e homens em detrimento de suas potencialidades individuais. Sua permanência se deve sobretudo à bem-sucedida estratégia patriarcal de lhe estabelecer uma falsa relação intrínseca com o sexo, dando-lhe o status de naturalidade que não tem. Essa falsa relação intrínseca foi desnudada pelos anos revolucionários da Contracultura (60-70-80), pelo feminismo e o incipiente movimento gay de então. Não à toa um dos personagens icônicos do período foi o andrógino, mulheres e homens que passaram a usar roupas e adereços atribuídos ao sexo oposto, parecer inclusive com o sexo oposto ao seu, mas sem se colocar como do sexo oposto. Mulheres masculinas e homens femininos marcaram a época.

Os teóricos de gênero, contudo, conseguiram a proeza de reverter essa conquista, dissociando sexo de gênero, mas descartando o sexo e renaturalizando os estereótipos de gênero. Um mero conceito passou a ser tratado como coisa inata. Já ouvi até a expressão “gênero de nascença”. Hoje, uma criança que demonstre interesse por coisas ditas de menino ou menina (cores, roupas, objetos, brinquedos, brincadeiras) corre o risco de ser rotulada de trans e passar a ser educada a partir dos estereótipos de gênero atribuídos ao sexo oposto ao seu, além de já no início da adolescência começar a tomar bloqueadores de puberdade e rapidamente ser submetida a cirurgias irreparáveis num momento da vida em que falta informação e amadurecimento para tomar decisões tão drásticas. Parodiando o aforisma do saudoso Millôr Fernandes sobre o comunismo: “O transgenerismo é como uma espécie de alfaiate que quando a roupa (de gênero) não fica boa faz alterações no cliente.”[1].


[1] No original: O comunismo é uma espécie de alfaiate que quando a roupa não fica boa faz alterações no cliente

Mais e mais mulheres estão começando a entender que transativismo
significa rotular os direitos das mulheres como “transfóbicos”,
a biologia das mulheres como “transfóbica”,
 a privacidade das mulheres como “transfóbica”,
a proteção às crianças como “transfóbica”,
a homossexualidade como “transfóbica”,
o feminismo como “transfóbico”.

Em suma, ficou claro para feministas (de verdade) e ativistas gays e lésbicas conscientes de que a existência por si só de mulheres e pessoas homossexuais é considerada transfóbica, concluindo-se, portanto, que só deixando de existir, ao menos no terreno da linguagem, essa população escaparia de semelhante rótulo. Só que deixar de existir no terreno da linguagem implica deixar de existir como sujeito de direitos, perder as conquistas legais que lhe permitiram ter uma vidinha um pouco melhor. Daí que, a não ser por algum desejo de morte, não há como não se opor a essas teorias de gênero nos termos hoje colocados. Outrossim, é perfeitamente possível respeitar o desejo de pessoas adultas, maiores e vacinadas de passar a vida representando os estereótipos de gênero atribuídos ao sexo oposto ao seu, se assim o desejarem. Conservadores também têm seu direito ao sol, desde que não queiram impor seus dogmas sobre os outros. Por dever de reciprocidade, portanto, essas pessoas precisam também respeitar as identidades baseadas em sexo que fundamentam a psicologia da maioria da humanidade. Se querem respeito por identidades de gênero têm que respeitar as identidades sexuais, as autoidentificações dos outros, os espaços dos outros, o que não vem acontecendo. Cada maluco com sua mania desde que cada um no seu quadrado.

Onde foi parar o Movimento Lésbico no Brasil?


Anos 80:

A organização lésbica no Brasil seguiu uma trajetória análoga a dos grupos no exterior: primeiro as lésbicas se insurgiram contra a homofobia junto com os homens homossexuais em 1979, com o coletivo do grupo lésbico-feminista (maio de 1979 – jun. de 1981). Depois buscaram encontrar no movimento feminista espaço para suas questões também como mulheres, deparando-se, contudo, com ferrenho heterossexismo. Rapidamente, o coletivo do grupo lésbico-feminista é absorvido pelo feminismo de então que pregava a invisibilidade lésbica, migrando em boa parte para o grupo SOS Mulher, ironicamente destinado a combater a violência contra as mulheres. Segundo integrante deste grupo, ele tinha o propósito explícito de dissolver as categorias homossexual e heterossexual, por serem limitadoras das potencialidades dos indivíduos, da fluidez da sexualidade humana, reduzindo a lesbianidade à opção sexual. Em outras palavras, despolitizando-a.  Quer dizer, tudo bem que as pessoas soubessem que havia lésbicas no MF desde que não lutassem por seus direitos.

Em todo o mundo, o movimento feminista (MF) sempre foi um dos grandes cooptadores da organização lésbica, as diferenças no resultado dessa política ficando por conta da reação das próprias lésbicas. Nos EUA, Betty Friedman, presidente da NOW (National Organization for Women), quis invisibilizar as lésbicas no Movimento Feminista local, por considerar que a associação do feminismo com as lésbicas reforçaria o estereótipo de que feministas eram sapatões. Como a cor atribuída às lésbicas era a lavanda, rotulou as sapatas de então de “ameaça lavanda”, mas a reação contrária foi à altura. Lésbicas de grupos como as Radical Lesbians, Gay Liberation Front (GLF) e outras feministas incorporaram a história da ameaça lavanda em camisetas e outros materiais e durante o Second Congress to Unite Women (Segundo Congresso para União das Mulheres - maio de 70, Nova York), apareceram em 17 mulheres com as camisetas “Lavender Menace” e tomaram a palavra para falar contra o heterossexismo do Movimento Feminista. Conseguiram romper um pouco com a invisibilidade lésbica no MF e, no ano seguinte, levar a uma resolução da NOW em apoio às lésbicas. 

Ativistas lésbicas em congresso feminista protestando contra a invisibilidade lésbica. NYC LGBT Historic Sites Project

No Brasil, o coletivo do Grupo Lésbico-Feminista, no seu último semestre de existência, ao participar do III Congresso da Mulher Paulista (8 de março de 1981), passou por experiência semelhante quando integrantes do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), do jornal Hora do Povo, então no PMDB, em particular sua porta-voz Márcia Campos, vão tentar tirar as lésbicas do encontro por “não serem femininas, supostamente negarem a condição de mulher”. O coletivo do LF não teve condições, contudo, de reagir à altura do desplante, inclusive porque não obteve o apoio devido de outros grupos feministas. Esse episódio seguramente ajudou bastante também na política da invisibilização das lésbicas na década de 80 no MF porque, assim como suas congêneres americanas, as feministas brasileiras temiam referendar, ao ter lésbicas reivindicativas no movimento, o estereótipo de que feministas eram todas sapatonas. Vale lembrar também que a esquerda da época de onde vinha a maioria das feministas era tão homofóbica quanto os generais.

O segundo coletivo lésbico da década de 80, o Grupo Ação Lésbica Feminista (out. 1981- mar. 1990), que nasce dos escombros do anterior, nunca engoliu essa política de invisibilidade, reagindo mais como suas colegas gringas, e promoveu, em abril de 1982, no Sindicato dos Jornalistas, em São Paulo, um happening com máscaras. Entrou com três de suas integrantes mascaradas, no auditório onde o grupo SOS Mulher discutia violência contra a mulher, leu e distribuiu o panfleto sobre violência, de minha autoria (texto integral aqui), que termina dizendo:

Queremos propor que o movimento feminista não reproduza o discurso politiqueiro machista das lutas gerais contra as lutas específicas e que todas as questões referentes a todas as mulheres sejam igualmente prioritárias.

Igualmente prioritárias mesmo porque a mulher homossexual também é negra, a mulher homossexual também é dona-de-casa, a mulher homossexual também é prostituta, a mulher homossexual também é operária, a mulher homossexual também está na periferia e calar a respeito dessas múltiplas opressões também nos torna cúmplices da violência".

O GALF, contudo, não conseguiu alterar a política de invisibilização lésbica do MF durante a década de 80 porque era um grupo pequeno e sem apoio das feministas homossexuais que, em sua maioria, entraram no armário feminista simplesmente. Aliás, algumas ex-LF viraram cães de guarda da despolitização. Umas poucas feministas até achavam que era sim importante se falar de “lesbianismo” no movimento, mas elas próprias não tinham coragem para tal e ficavam puxando as integrantes do GALF pela camiseta para abordar aquela questão difícil. Brincar de lésbica radical só em Paris (très chic). Em geral, todas eram contrárias a interações com os gays porque seriam “sexistas, machistas, misóginos”, opinião que mudaria na década de 90 alimentada pelo combustível dos financiamentos governamentais para os grupos de gays e lésbicas que começaram a surgir em particular a partir de 1995.

Por outro lado, o Movimento Homossexual que começara alvissareiro em seus primeiros anos (79-80), inicia um recesso já em meados de 81 e vai declinando até 1985. Exatamente quando termina a ditadura militar, o refluxo do movimento atinge o pico e os grupos de gays e lésbicas passam a poder ser contados nos dedos de uma mão. A discussão bizantina sobre a identidade homossexual como questionável (porque categorizava os seres humanos em hétero, homo, bi e, portanto, cerceava a sexualidade humana) vai se juntar à chegada da AIDS para deixar o movimento esvaziado e desprestigiado, o que significava também com pouco poder de pressão para maiores conquistas. Mesmo assim elas existiram.

O GALF passou a década de 80 como cavaleiro solitário da luta pela visibilidade lésbica, já que foram poucas e muito efêmeras as tentativas de formação de grupos e publicações lésbicas da década.[1] Manteve-se graças à publicação dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar, que permitiam o intercâmbio com lésbicas de todo o país e do estrangeiro, e aos contatos com o exterior onde um movimento lésbico começava a florescer. Sem interlocutores no Brasil, por causa do heterocentrismo do MF e da pauta estritamente reformista do MHB sobrevivente que limitava as discussões, o GALF vai acompanhar os debates internacionais sobre a questão lésbica, o que lhe garantiu estar décadas à frente de seu tempo em nosso país. Questões abordadas no CCC e UOO só começaram a entrar nas discussões dos movimentos feminista e de gays e lésbicas na primeira década do século XXI, praticamente três décadas depois de sua existência.

O GALF terminou em função do esgotamento de seu ciclo de ativismo junto ao Movimento Feminista. Ficou claro para suas integrantes o quanto era contraproducente levar as lésbicas para o feminismo e, ao mesmo tempo incentivá-las a sair do armário, quando o próprio Movimento Feminista impunha a despolitização das vivências lésbicas empurrando-as para o terreno do privado, da chamada “opção sexual”. Nada incomum, no período de existência do GALF e até na década de noventa, encontrar grupos feministas formados majoritariamente por lésbicas, mas exclusivamente referentes às questões das mulheres heterossexuais e a resolução dos problemas dessas mulheres em seus relacionamentos com homens. Não havia mais por que manter um grupo lésbico-feminista nesse contexto.

Em seu tempo de vida, o GALF foi pioneiro na visibilidade lésbica no Brasil seja pela minha produção dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar seja por manifestações públicas como a da “invasão” do Ferro’s Bar, organizada por suas integrantes em agosto de 1983, seja pelas aparições na mídia escrita e televisiva onde Rosely Roth se destacou de forma pioneira.

Anos 90

Terminei os anos 80 fazendo um balanço da organização lésbica do período no boletim Um Outro Olhar 9, de novembro de 1989, de fato um balanço da primeira década de mobilização lésbica no Brasil, 1979-1989: 10 anos de movimentação lésbica no Brasil (p.8-17), Neste, eu terminava dizendo: “Esperamos, acima de tudo, poder compartilhar a próxima década, que se anuncia como uma década de volta a valores mais cooperativos e humanos, com, pelo menos, algum outro grupo lésbico brasileiro”. Neste balanço, eu também anunciava o surgimento da Rede de Informação Um Outro Olhar para o início de 1990, o que de fato ocorreu com sua oficialização em 12 de abril. A Rede vai dar continuidade a estrutura do GALF de associação entre lésbicas de todo o país e a produção do boletim Um Outro Olhar (do 11 ao 21), posterior revista (até 2002), além do boletim Ousar Viver (anexo à revista) e outras publicações na área da saúde. A partir de 1995, a organização passa a ter projetos sobre saúde lésbica e das mulheres em geral, na perspectiva da prevenção às DST/AIDS, financiados pelo Ministério da Saúde.

A Um Outro Olhar vai ter uma longa e prolífica trajetória sendo responsável pela mudança do nome dos encontros homossexuais para encontros brasileiros de gays e lésbicas e do próprio nome do movimento até então homossexual ao realizar o VII Encontro de Lésbicas e Homossexuais em Cajamar (SP). Apesar da artilharia pesada contra a mudança do nome do evento, de parte sobretudo dos grupos gays GGB. Triângulo Rosa e Dignidade, a Um Outro Olhar, com apoio do grupo lésbico Deusa Terra e de ativistas gays [2], criou um divisor de águas no movimento da época considerado por muitos o renascimento da luta pelos direitos de gays e lésbicas no Brasil. O relatório do encontro pode ser lido clicando aqui. Material da imprensa e texto meu analisando o evento pode ser lido no boletim Um Outro Olhar 21, p. 8-9 e p.16-19, clicando aqui.



[1] Grupo Lésbico Feminista (LF), Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), Grupo Terra Maria Opção Lésbica (SP), Imaricumás (RJ), Grupo Libertário Homossexual (BA), Grupo Terceira Dimensão (RS), Grupo Gaúcho de Lésbicas Feministas (RJ). Publicações: Chanacomchana tabloide (LF); Boletim Chanacomchana e Um Outro Olhar (GALF), Imaricumás (Iamaricumás); Amazonas (Grupo Libertário Homossexual); Xerereca (Rita Colaço).

[2] As ativistas lésbicas que organizaram o VII EBLHO foram Luiza Granado e Míriam Martinho (pela Um Outro Olhar), Célia Miliauskas e Cristina Matsubara (pelo Deusa Terra) e Monica Pita (independente).

Passeata após o VII Encontro de Gays e Lésbicas em 1995 - ABGLT


Em 1995, durante o VIII Encontro de Gays e Lésbicas, ocorrido em Curitiba, a Um Outro Olhar se tornou sócia-fundadora da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT-1995), comigo assumindo o cargo de secretária-geral. Apesar de tumultuado por picuinhas políticas, o encontro terminou com uma colorida passeata pelas ruas de Curitiba no que foi a primeira manifestação de rua do movimento desde o início dos anos 80.  Ver relato em Revista Um Outro Olhar, 22, p.10.

Em 1997, a Um Outro Olhar também realizou o IX Encontro de Gays, Lésbicas e Travestis, no centro de São Paulo, um evento financiado pelo Ministério da Saúde e a Secretaria de Estado da Saúde de SP, mas também bastante tumultuado por petistas e grupos ligados a ABGLT que queriam tomar o poder de um encontro onde não havia poder a ser tomado. O Encontro ficou, por isso, com duas caras: uma solar com mesas, painéis, oficinas, grupos de discussão muito interessantes que contrastavam com uma outra sombria do circo armado pelo ativismo sem noção. De qualquer forma, o evento trouxe,  para São Paulo, a primeira passeata de rua de gays e lésbicas desde 13 de junho de 1980, sendo embrião da primeira parada GLT realizada alguns meses depois. Para ler o relatório do encontro, clique aqui. Mais informações sobre o evento, clique aqui.

Na década de 90, também outros grupos e publicações lésbicas surgiram e dois agrupamentos de feministas homossexuais igualmente se interessaram pela causa de gays e lésbicas: o Coletivo de Feministas Lésbicas (a partir de set. 1993), e o CEDOICOM/COLERJ em 1995, mudando sua política de não trabalhar com gays. Com a feminista Miriam Botassi, do CIM, o CFL tentou realizar o IV Encontro de Lésbicas Feministas da América Latina e do Caribe sem sucesso. Ver, na revista Um Outro Olhar, 22, p. 11-12, um histórico do evento.

Em 1996, o grupo feminista CEDOICOM/COLERJ realizou o I Seminário Nacional de Lésbicas do qual o único registro parece ter ocorrido na revista Um Outro Olhar n. 25, p. 5. Entre as resoluções, a aprovação do dia 29 de agosto como Dia Nacional da Visibilidade Lésbica e moção contra a utilização da ala feminina de hospitais por travestis. Segundo Yone Lindgren, que me enviou informações sobre o encontro, também foi constatado que em nenhum momento as feministas reconheciam o espaço das lésbicas, sua ausência tendo sido notada no seminário para o qual haviam sido convidadas e disseram não poder comparecer.

Na revista Um Outro Olhar também registrei os dois SENALES posteriores, a saber, II SENALE (1997),  Salvador/BA (UOO 27 p. 16-18), III SENALE (1998), Betim/MG (UOO 29, p. 11-12;14). Luiza Granado e Angela Gonçalves da Rede também participaram do IV SENALE (2001), Aquiráz/CE, mas disseram não ter havido nada significativo para registrar. De qualquer forma, deste SENALE saiu a decisão de realizar o V SENALE em São Paulo, ao qual a Rede de Informação Um Outro Olhar se comprometeu a apoiar na forma de divulgação ao menos. Nos meses posteriores, contudo, até a realização do evento, a Rede não recebeu qualquer notícia ou informação a respeito de sua organização, razão pela qual decidiu não participar do encontro (a falta de informação foi exatamente para evitar essa participação). 

Ainda no final da década de 90, o CEDICOM/COLERJ também organizou no Rio o V Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-americanas e do Caribe, experiência relatada por Luiza Granado, da Rede, e Yone Lindgren, do Movimento D’Ellas, na revista Um Outro Olhar 31, p 26-39

Anos 2000 

Reunião dos grupos lésbicos com a CN-DTS/AIDS, sobre saúde lésbica, em março de 2001

Em março de 2001 (12-13), os grupos lésbicos existentes no início dos anos 2000, reuniram-se com a CN-DST-AIDS para discutir a prevenção a doenças sexualmente transmissíveis entre lésbicas. Num raro encontro tranquilo, reuniram-se representantes dos seguintes grupos:  Movimento D'Ellas, Um Outro Olhar, Grupo Lésbico da Bahia (GLB), Coletivo de Lésbicas-Feministas (CFL),  Associação Lésbica de Minas (ALÉM), Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro e Movimento de Lésbicas de Campinas (MOLECA). Também na foto 3 representantes de grupos mistos (Nuances, Arco-Íris e Estruturação). Redigi um breve relato do encontro no boletim Ousar Viver, n. 14, que pode ser lido aqui.

Em junho de 2002, durante a  Conferência Nacional das Mulheres Brasileiras, no embalo das paradas do orgulho que começaram a bombar no Brasil, o Movimento Feminista finalmente assumiu politicamente a questão lésbica na citada conferência 23 anos após o surgimento do Grupo Lésbico-Feminista, primeiro coletivo lésbico brasileiro. Mesmo assim, embora a comissão organizadora do congresso tivesse em destaque um casal de mulheres, Jacira Melo e Marisa Sanematsu[1], não havia referência ao papel das lésbicas na luta das mulheres, ao contrário das mulheres negras e indígenas, na plataforma da conferência. Quem me chamou a atenção para ausência das lésbicas no preâmbulo do citado documento foi a ativista lésbica Vânia Galliciano que fora integrante do grupo Dignidade. Confirmando, então, que a menção às lésbicas aparecia apenas junto à questão geral de combate ao preconceito a gays, lésbicas, travestis e transexuais, pedi destaque para a contribuição das lésbicas na luta das mulheres pelo direito ao próprio corpo, pela livre orientação sexual e por outras tantas questões correlatas onde sempre estivemos inseridas. Esse destaque foi inserido no preâmbulo da Plataforma Feminista após as referências às mulheres negras e indígenas. (Revista Um Outro Olhar 37, p. 17)

Registrei esse evento histórico na revista Um Outro Olhar número 37, p. 14-19. Nesta edição da Um Outro Olhar, também entrevistei duas feministas homossexuais participantes do evento, Neusa Cardoso de Melo (NCM), então Secretária Adjunta da Rede Feminista de Saúde, e Jacira Melo (JM), da Articulação Brasileira de Mulheres, e uma das organizadoras da citada conferência. Suas falas evidenciam que as feministas homossexuais estavam começando, após 23 anos de existência da organização lésbica no Brasil, a abordar a questão lésbica no Movimento Feminista.

Reproduzo texto de Neusa Cardoso de Melo sobre o assunto:

NCM: Recentemente foi lançado o Jornal da Rede Saúde n° 24 que tem como tema central, os direitos sexuais, onde a questão da mulher lésbica é intensamente abordada. Entretanto, acredito ser correto afirmar, que o movimento feminista de um modo geral tem ignorado este tema. Contudo, com o aumento da visibilidade da mulher lésbica e da atuação de seus movimentos este espaço vem se ampliando. Prova disto é a plataforma, retirada na Conferência de Mulheres Brasileiras, onde as demandas das mulheres lésbicas entram em situado de igualdade com as das outras mulheres. Entretanto, até o último Jornal, a própria Rede Saúde se mantinha distante deste tema, o que pode ser constatado na leitura dos "Dossiês" da Rede, onde a saúde da mulher lésbica não é colocada (RUOO 37, p. 14).

NCM: Acredito que o movimento de mulheres tem uma dívida histórica com as mulheres lésbicas. Tenho a convicção de que a Rede Feminista de Saúde , por congregar tantas mulheres, é um espaço privilegiado para o resgate desta dívida. Sempre fomos uma parcela expressiva do movimento de mulheres, contudo, parece que ainda temos uma atitude um tanto envergonhada. É preciso superarmos esta etapa e encontrarmos o orgulho para colocarmos nossas questões e para que a nossa cidadania plena seja conquistada. Neste aspecto, a visibilidade é fundamental. Por isso, é fundamental a participação de todas as mulheres lésbicas filiadas à Rede. Da minha parte, todas as possibilidades que eu tiver usarei para isso. Se não tiver procurarei construi-las. Um abraço a todas (RUOO, p. 15).

JM: Veja, a CNMB acontece em um momento de autocrítica do feminismo com relação à luta das mulheres lésbicas. O Jornal da Rede Feminista de Saúde dedicado ao tema dos Direitos Sexuais - no qual respondo pela coordenação editorial - traz um balanço crítico sobre o feminismo e o seu déficit de reflexão teórico-política sobre os direitos sexuais, em especial os direitos das lésbicas. Nas entrevistas e artigos, há a percepção crítica de que o feminismo não enfrenta adequadamente  a questão lésbica, que não tem construído um discurso político de defesa do lesbianismo. (RUOO, p. 19)

Ao contrário de Neusa, Jacira, contudo, não se vê como protagonista da mudança da invisibilidade lésbica no MF, dizendo que:

Nesse sentido, as organizações de lésbicas têm algo a aprender com as mulheres negras. Há mais de uma década o movimento feminista tem convivido com a exigência, formulada pelo movimento de mulheres negras, para que a luta contra o racismo faça parte da agenda política do movimento feminista. A cada manifestação, seminário, reunião esta cobrança vem sendo formulada e sustentada com reflexões criativas e cortantes (RUOO, p. 19).

Memória curta da moça. O GALF não fez outra coisa durante toda a década de 80 senão reivindicar que o MF incorporasse a questão lésbica à agenda do movimento. Levou caras feias, pitis, ataques de pelanca e baixarias mil do meu Brasil exatamente por isso. E não obteve sucesso porque feministas homossexuais, como Jacira, formaram um gueto alienado e covarde dentro do Movimento Feminista em vez de ir à luta. Sua fala reflete a posição da maioria delas que não se via como agente de politização da própria vivência no movimento em que trabalhavam. E só decidiram se interessar pelo assunto quando o movimento de gays e lésbicas e as próprias lésbicas começaram a botar milhares de pessoas nas ruas tornando a homossexualidade mais aceitável.

[1] Marisa Sanematsu esteve de passagem no Grupo Lésbico-Feminista (LF) em 1980.

A Rede de Informação Um Outro Olhar e a Coordenadoria Especial de Lésbicas (CEL) da Associação da Parada do Orgulho GLBT lançam o Dia do Orgulho Lésbico em 11/06/2003 durante debate prévio à Parada em 2003.


2003
– Lançamento do Dia do Orgulho Lésbico e da Caminhada Lésbica

Fora a quinta edição do SENALE, São Paulo acolheu duas novidades lésbicas em 2003: o lançamento do dia do Orgulho Lésbico, resgatando a primeira manifestação lésbica do país, ocorrida em 19 de agosto de 1983, em seus 20 anos de existência, e a I Caminhada Lésbica de São Paulo na Av. Paulista. O Dia Nacional do Orgulho Lésbico foi lançado em debate prévio à Parada do Orgulho GLBT em 11/06/2003 pelos grupos Rede de Informação Um Outro Olhar e a Coordenadoria Especial de Lésbicas (CEL) da Associação da Parada do Orgulho GLBT. A primeira caminhada lésbica intitulada “Caminhada de Lésbicas e Simpatizantes da Cidade de São Paulo” foi organizada pelos grupos lésbicos Umas e Outras (SP) e Mo.Le.Ca (o Movimento Lésbico de Campinas) e realizada no dia 21 de junho.

Assim como, em agosto de 1983, a Folha de São Paulo registrou a manifestação do Ferro’s, 20 anos depois voltou a divulgar o lançamento do Dia do Orgulho Lésbico e a anunciar a festa comemorativa da efeméride na sede da Ação Educativa no centro de São Paulo.

No próprio dia 19, foi realizada uma manifestação artística com benção da Wicca, leitura de poesias, exibição de vídeos e coquetel. No dia 23, a psicanalista Graciela Barbeiro organizou a oficina Um Toque de Orgulho e no dia 30, tivemos um debate com representantes respectivamente das Católicas pelo Direito a Decidir, do Ministério da Saúde e do CLADEM, discutindo o que já havia sido conquistado ou estava para se conquistar para as lésbicas na área da religião, da saúde e dos direitos legais.

Integrantes da UOO e da CEL, Rita Moreira declamando poesias,  plateia do lançamento do dia do orgulho, e debate Católicas pelo Direito a Decidir e do CLADEM - 2003

Desde essa data até 2009, foram realizadas atividades presenciais as mais variadas para marcar a data, mesclando música, teatro, dança, exibição de vídeos, exposição de arte, oficinas sobre saúde e sexualidade lésbicas com a população lésbica e com agentes de saúde, oficinas sobre meditação, autoestima, palestras sobre direitos, maratona de união estável (o que era possível na época para oficializar os casais lésbicas), confraternizações. Abaixo, algumas imagens dessas atividades e suas parcerias. Colaboraram conosco nessas jornadas, a cantora Ana Lúcia, as atrizes Luah Guimarães e Mariana Senne, a artista plástica Edilene Mora, os bailarinos Giovane Salmeron, Carla Lazazzera e Suely Lis, as videomakers Mônica Sucupira, Tika Tiritilli e Rita Moreira, a poetisa Marinete L. Monteiro, as místicas Teresa Vilalba, Agata Ramos, Magaly Adhorat, Miriam Julie, as psicólogas do Grupo Soll, a psicanalista Graciela Barbero, as advogadas Cleuser Lemos e Heloísa Helena Gama Alves, a Área Temática de DST/AIDS da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, a Ação Educativa, e as empresas Vermont Repúbica e Pousada Porto X.

Peça A Cicatriz é a Flor e oficina sobre saúde lésbica para agentes de saúde de São Paulo - 2004


 Cantora Ana Lúcia e então vereador Carlos Giannazi autor do projeto do Dia Estadual do Orgulho Lésbico - 2004

Feira Mística, exposição de arte "As Deusas" da artista plástica Edilene Mora, oficinas sobre direitos e saúde - 2005

Oficinas de consciência corporal com psicólogas do Grupo Soll, Matilde, Fabiana e Célia, saúde e sexualidade lésbicas, com Míriam Martinho, e dança com Giovane Salmeron- 2006

Oficina de dança no Espaço GLS de Dança de Salão da bailarina Carla Lazazzera - 2007

Maratona de Uniões Estáveis - 2008

Encontro de confraternização pelo dia do orgulho na pousada Porto X em Atibaia -Neste encontro também foi lançado o vídeo do dia do Orgulho- 2009


E a expressão “mantida presente, ou viva” é bem pertinente porque, apesar de sua importância histórica para as lésbicas e o movimento homossexual, posterior LGBT, contou com a oposição violenta não do patriarcado, do conservadorismo, blá-blá-blá, mas sim das criadoras do dia da visibilidade lésbica, de feministas oportunistas que queriam pegar carona na evidência das paradas de gays e lésbicas e de glpetistas que tinham problemas tanto com a Rede Um Outro Olhar quanto com a gestão da Associação da Parada de 2003. Descrevi a história mais detalhamente em Dia da Visibilidade: 36 anos de história mal contada.

Essa turba moveu uma campanha injuriosa e difamatória violenta contra quem lançou o Dia do Orgulho Lésbico, com armações e articulações visando atingir a credibilidade das organizadoras e a validade da data, inclusive com ameaças de ostracismo político contra aquelas e aqueles que naturalmente apoiavam o dia. Procuraram invalidar o Dia do Orgulho dizendo que ele não tinha sido tirado numa plenária, pois só uma plenária daria aval a tal comemoração, “esquecendo-se” que o Dia Internacional do Orgulho Gay, o dia 28 de junho, foi lançado por um grupo homossexual americano (Gay Liberation Front) que capitalizou a revolta de Stonewall Inn, análoga ao 19 de agosto. “Esqueceram” também que a bandeira do arco-íris foi criada por um artista gay americano (o designer Gilbert Baker) e divulgada no meio LGBT passando a ser adotada internacionalmente. E elas nunca deixaram de ir às Paradas por isso nem de adotar a bandeira do arco-íris, não é mesmo? Também disseram que a data era mórbida porque homenageava uma pessoa que havia se suicidado. Nível rés de chão mesmo.

A mesma feminista Jacira Melo que eu entrevistara em 2002, sobre o fato histórico do movimento feminista ter finalmente assumido a questão lésbica, durante a Conferência Nacional da Mulher Brasileira, me convidou para escrever artigo sobre o dia do orgulho em um boletim de sua editoria que na verdade celebrava o dia da visibilidade lésbica. Outro grupo feminista do Rio, Redeh, me convidou para falar sobre o dia do orgulho a fim apenas de me constranger com perguntas sobre o dia da visibilidade. Agiram como se houvesse algo de errado no fato de a gente querer celebrar uma data histórica como a da invasão do Ferro’s Bar, um marco da luta homossexual brasileira da qual elas nunca fizeram parte.

Na verdade, queriam que a gente fosse obrigada a adotar o dia da visibilidade lésbica criado por paraquedistas que caíram no movimento de gays e lésbicas, em 1995, para inventar a roda que já havia sido criada 17 anos antes de elas aparecerem. Elas não apareceram para somar, apareceram para dividir. E trouxeram para aquele engatinhante Movimento Lésbico, assim como o CFL, os vícios do Movimento Feminista e suas eternas e fálicas disputas de poder. E o SENALE não foi o primeiro encontro de ativistas lésbicas. O primeiro aconteceu em São Paulo em abril de 1981, de onde aliás já surgiu a ideia de se fazer uma rede nacional de lésbicas. No final de 1993, o grupo Deusa Terra também havia proposto se tentar fazer encontros nacionais de lésbicas antes de se tentar um latino-americano. O SENALE também não foi o primeiro a reunir lésbicas de todo o país. O GALF e a Um Outro Olhar sozinhos já tinham feito reuniões presenciais com lésbicas de outras partes do país. A Rede já era, inclusive estatuariamente, nacional. Sem falar na própria composição sobretudo do boletim Um Outro Olhar que contava com a colaboração de lésbicas de várias cidades do Brasil. De diferente, o SENALE só teve a conjuntura dos financiamentos governamentais e outros que possibilitaram expandir o que antes era impossível exatamente pela ausência de dinheiro. E a partir de 2003, teve também a “ajuda” do movimento feminista que o inflou artificialmente bem como ao dia da visibilidade lésbica. Nada além. Vale ressaltar que ambos, SENALE e 29/08 poderiam ter crescido naturalmente ao invés de virar puxadinho de outro movimento.

Queriam que as pessoas que haviam realizado uma manifestação lésbica pública, ainda durante a ditadura militar, registrada pelo maior jornal do país em 1983, fossem obrigadas a se identificar com uma data de 1996 fruto de puro voluntarismo que nunca sequer teve registro (fora o da Um Outro Olhar, até onde se sabe), mas que paradoxalmente foi intitulada de dia da visibilidade lésbica. Além disso, mesmo se o dia da visibilidade tivesse surgido de forma mais orgânica e menos paradoxal, nada impediria que outras pessoas criassem outras datas com as quais tivessem mais identidade. Só mesmo o enorme déficit de consciência democrática dessas ditas feministas e petistas e sua autoritária ideia de hegemonia explicam o absurdo dos ataques ocorridos contra o dia do orgulho. Só mesmo o déficit de consciência democrática e o afã de cooptação e aparelhamento daquele ainda incipiente movimento lésbico de então explicam o que fizeram.

Matrioskas


2003: Um divisor de águas para pior: as matrioskas da cooptação

A Matrioska, ou matriosca, é uma boneca de madeira típica da Rússia, embora a origem seja japonesa, acompanhada de cópias de vários tamanhos menores com uma se encaixando dentro da outra. Ela é associada à fertilidade feminina, a valores positivos, como amor e amizade, e à espiritualidade. Mas eu vou pedir perdão à matriosca e usá-la para representar algo negativo que é a cooptação e o aparelhamento.

Porque aquele ainda incipiente movimento lésbico do início dos anos 2000 foi cooptado por várias forças alienígenas a começar pelo movimento feminista, aquele mesmo que levou 23 anos para se pronunciar oficialmente sobre as lésbicas, mas, de repente, virou paladino da visibilidade lésbica. Todo o reconhecimento do não apoio do MF às lésbicas e a promessa das feministas homossexuais de que iriam superar a vergonha e dar visibilidade à sua questão dentro de seu próprio movimento se mostrou outra coisa. O discurso de que o feminismo não enfrentava adequadamente a questão lésbica, que não havia construído um discurso político de defesa do lesbianismo idem. Em vez de levar a questão dentro do movimento feminista, elas decidiram trazer seu movimento para dentro do movimento lésbico numa estratégia para lá de oportunista. Se ligar a uma data criada por um grupo feminista que já havia caído de paraquedas no movimento lésbico em 1995 foi muito conveniente. Aliás, acho que essas figuras fizeram curso de capacitação na Aeronáutica porque cair de paraquedas em terreno alheio parece ser um hábito recorrente da turma.

O fato é que, enquanto atacavam o dia do orgulho lésbico, foram se infiltrando e assumindo o protagonismo de eventos lésbicos desde então. Por exemplo, O VI SENALE, ocorrido em Recife, em 2006, foi realizado pelo grupo feminista Curumin com apoio de outros grupos feministas como DIVAS - Instituto em Defesa da Diversidade Afetivo-Sexual, Centro das Mulheres do Cabo e Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE). O único grupo, nesse evento, que tinha a palavra lésbica no título foi a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL). Também foi o último evento exclusivamente lésbico. Depois, vieram também outras cooptações.

Os posteriores já passaram a se chamar de SENALESBI, adotando as bissexuais, embora tenha havido mais protagonismo lésbico pelo menos nominal. No VII, em Porto Velho (2010), nas conclusões, rolou recomendação de que o Estado brasileiro se comprometesse formalmente com a adoção e implementação dos Princípios de Yogyakarta (onde a homossexualidade vira atração por gênero) sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero. No VIII, em Porto Alegre (2014) aparece resolução de garantir a participação de mulheres trans, travestis lésbicas e bissexuais no SENALE com direito a voz e voto (Inserir o debate das transexualidades, travestilidades, intersexualidades e do enfrentamento à transfobia nas mesas, conferências e demais espaços do SENALE). No IX, em Teresina, no Piauí, em 2016, já houve participação de uma travesti bissexual. Na carta final do evento, tem de tudo: críticas ao governo Temer, contra o capital, contra a reforma da previdência e a trabalhista, contra o racismo, pelo estado laico, etc. Lésbicas só entram na história num suposto pacto de lésbicas com bissexuais para organização compartilhada dos espaços de seminários nacionais e/ou regionais que seriam o espaço legítimo e autônomo de planejamento, articulação e deliberação dos Movimentos de Lésbicas e Bissexuais no Brasil. No IX, de 2018, na Bahia, mais discursos sobre a conjuntura política da época, defesa das mulheres bissexuais e criação da rede feminista lesbitrans da Uneb como efeito do SENALESBI.

Caminhada Lésbica 2 e 3: a segunda, sob frio e chuva, foi épica


A caminhada lésbica (de São Paulo) também foi um bom termômetro dos processos de cooptação e aparelhamento modelo matrioska do mal. As primeiras edições fizeram jus ao nome de caminhadas lésbicas, organizadas por lésbicas, com faixas e cartazes de demandas 100% lésbicas. Já na terceira edição, porém, começaram a aparecer cartazes sobre a descriminação do aborto. A partir da sétima edição em 2009, surgem as jornadas lésbicas-feministas que vão até a décima-primeira edição. A décima segunda teve como organizadoras, entre alguns grupos lésbicos, as entidades muy lésbicas Marcha Mundial de Mulheres, Movimento Mulheres em Luta, União de Mulheres, Coletivo Ana Montenegro. A 13ª edição da caminhada teve como tema “Nenhuma Mulher Ficará para Trás: Todas contra o Racismo, Machismo, Bifobia, Lesbofobia e Transfobia”. Na caminhada lésbica, as lésbicas quase ficaram para trás.

A 14ª edição foi mais lesbocentrada, protestou contra o assassinato de Luana Barbosa dos Reis que faleceu após ser espancada por três policiais militares na cidade de Ribeirão Preto. Mas também foi a edição em que uma transgênera tomou a palavra para dizer que: “Tem mulher que tem uma xoxota com um formato bem diferente aqui e que a gente vai chupar também.”

A 16ª edição prestou homenagem à vereadora Marielle Franco, morta a tiros em março de 2018 e teve um tema difícil de entender por ser muito vago: “contra a criminalização da pobreza, o genocídio e a intervenção militar (?)”. A 17ª edição da Caminhada das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, de 2019, tematizou "A política do ódio não nos representa: mulheres lésbicas e bis, trans e cis, na mesma luta pela vida e por liberdade".  E a 20ª que rolou este ano teve como tema “Pela Luta, Memória e Resistência, contra Racismo, Transfobia, Bifobia e Lesbofobia”. A ordem dos fatores altera sim o resultado: na caminhada lésbica, a lesbofobia é só um item a mais e vem por último.[1]

Enfim, a boneca mater - a organização lésbica – ainda está ali, contudo, olhando mais atentamente, vai se constatar que está grávida de várias outras por sua vez grávidas de outras, inclusive de uma boneca masculina. Feminismo, política partidária, esquerdismo naftalina, racialismo e por fim o identitarismo de gênero. Há quem diga que isso é a unidade na diversidade, daí a luta contra o “machismo, racismo e homofobia” ter virado um clichê. De fato, não passa de uma mistura dos estereótipos “coração de mãe que sempre cabe mais um” com “a casa da mãe Joana”, mostrando que mesmo as lésbicas não escapam da socialização feminina para se colocar em segundo plano e agradar aos outros a despeito de si mesmas.

Existe uma diferença enorme entre apoio e protagonismo. Manifestações específicas não só servem para destacar grupos geralmente pouco visíveis, como é o caso das lésbicas, como para possibilitar seu protagonismo muitas vezes dificultado em outras instâncias. A participação de elementos de outros movimentos só poderia se dar nessas manifestações como apoio, nunca em nível horizontal de comissões organizadoras e de participantes em encontros com direito a voz e voto. Lembro que se fez questão de deixar isso claro para os gays, mas se esqueceu de dizer o mesmo a integrantes de outros movimentos. Ao contrário de outros invasores, os vampiros só entram em sua casa se você deixá-los entrar. Aliás, esse é o nome em português do belíssimo filme sueco sobre vampiros chamado Deixe ela Entrar. Depois que você convida o vampiro para entrar, ele vai sugar seu sangue até a morte ou transformá-la em um zumbi como ele.

Para fazer manifestações estilo “casa da mãe Joana”, vale mais a pena criar alas lésbicas bem visíveis no dia internacional da mulher, 8 de Março, ou nas paradas do Orgulho LGBTQWERTYZ. A descaracterização das organizações e caminhadas lésbicas ocorre em todo o mundo hoje, sobretudo em função das ações deletérias dos ativistas de gênero. Esqueceu-se completamente que essas caminhadas foram criadas para colocar as lésbicas em primeiro lugar. Caso não reajam, as lésbicas correm o risco de extinção.

[1] As referências sobre o SENALE e as Caminhadas Lésbicas foram retiradas de sites do SENALE na  Internet e do texto 12 anos de Caminhada Lésbica de Mariana Meriqui Rodrigues e Bruna Andrade Irineu.

O Movimento Lésbico internacional parou nas teorias de gênero, mas não se deu por vencido. E o brasileiro?

Observando as caminhadas e o SENALE, impossível não constatar que a organização lésbica brasileira se rendeu às teorias de gênero, mas não se sabe se vai reagir como suas contrapartes do exterior. Até no recém-lançado lesbocenso tem pergunta sobre identidade de gênero e todo aquele jargão bizarro de seus ideólogos. Vou retomar um pouco o que já disse sobre os teóricos de gênero e os malefícios de sua substituição de sexo por gênero para os direitos das mulheres, crianças e de gays e lésbicas, acrescentando a minha experiência com o assunto.

Nunca tive problema algum com a letra T porque sou libertária e sinceramente faço e ando para o que pessoas adultas fazem de seus corpos e vidas. Quando as travestis reivindicaram a inserção da letra T no nome do encontro de gays e lésbicas de 1995, em Curitiba, não vi nada demais porque, à época inclusive, achava que travesti era gay que gostava de representar o gênero feminino em tempo integral e só (vide a saudosa Rogéria). Acreditava que eram, elas e as transexuais, até um bom exemplo da não-naturalidade dos estereótipos de gênero, já que mostravam que um homem podia representar o modelo de mulher vigente na sociedade de forma convincente. No ChanacomChana n. 6, de 1985, escrevi um texto intitulado Roberta Close: Homem ou Mulher? onde, partindo daquela famosa frase dos comics “É um pássaro? É um avião? Não, é o super-homem!”, eu brincava que Roberta Close era um homem, depois que era uma mulher, depois que era um transexual, depois que era uma Roberta Close. Já vi este texto sendo interpretado como “queer”, mas, embora considere compreensível a confusão, esclareço que não era não. Eu apenas dizia que, para estar de acordo com os padrões vigentes do que era (é) considerado ser mulher, Roberta Close precisaria ser vista como mulher pela imagem estereotipada de mulher que construiu para si. De fato, eu apontava a artificialidade do modelo de mulher baseado no estereótipo de gênero feminino, nada inerente ao sexo feminino como se afirmava. Como existe muito anacronismo nas análises de publicações do passado, cabe ressaltar que não circulava à época a teoria queer e ideias e termos sui generis como “gênero atribuído ao nascer”, “cis” e outros bagulhos.

Na década de 90, interessada na questão de como as religiões viam e tratavam pessoas homossexuais, entrevistei inclusive uma mãe de santo que se dizia transexual, para a Revista Um Outro Olhar, n. 28, p. 28, sob o título Caminhos de Pedra e Luz. Publiquei também a pedidos um artigo de uma trans chamada Astrid Bodstein intitulado Mulheres Transexuais que Amam outras Mulheres na ediçao 31 da Revista UOO, p. 10, de 2000. Neste caso, acabei publicando o artigo pelo exotismo do texto: um homem que passou a personificar uma mulher e quer se relacionar com mulheres? Muito estranho. A ideia de homens hétero se reivindicando mulheres e afirmando que se interessavam por mulheres era inédita. Vendo da perspectiva atual, eu estava evidentemente pisando nos astros distraída. Vale ressaltar que, em ambos os casos da entrevista e do artigo, quando se falava em mudança de sexo, era no sentido da cirurgia de remodelação genital, não no da ideia de que realmente se pudesse passar de um sexo para o outro.

E assim continuei durante os anos 2000, brincando inclusive que eu era um homem preso no corpo de uma mulher que não queria mudar de sexo. Foi só lá por 2010, quando entrei no Facebook, que me deparei com o jargão aí já intitulado transgênero: disforia de gênero, gênero designado ao nascer (sic), cisgênero, etc. De imediato uma luzinha amarela acendeu no meu semáforo libertário. Porque, quando alguém busca definir a si mesma, quer poder sobre si mesma, quer autodeterminação. Quando alguém ou um grupo de pessoas procura definir os outros, quer poder sobre os outros. Não falha.

Depois disso também me deparei com a demonização das feministas radicais, pioneiras no questionamento das teorias do identitarismo de gênero. E sempre que alguém ou um grupo de pessoas é demonizado, o errado da história é o demonizador. Não falha também. Criticar faz parte do livre mercado das ideias, demonizar é o oposto. Só pela possibilidade de comparar diferentes ideias e perspectivas é que as pessoas enriquecem seu pensamento, ampliam suas mentes, tomam melhores decisões. A demonização seja de quem for sempre visa destruir a livre circulação de ideias e é típica da mentalidade autoritária ou totalitária. A essas alturas do campeonato, a luzinha do meu semáforo passou de amarela para laranja.

Por fim, eu me deparei com a história da criança trans e aí minha ficha caiu de vez, a luzinha do meu semáforo libertário entrou no vermelho. O identitarismo de gênero é totalmente baseado na visão conservadora de que os estereótipos de gênero feminino e masculino equivalem a ser mulher e homem, ainda que paradoxalmente diga que gênero é construção social. Uma pessoa adulta passou por todas as etapas de adestramento para se encaixar nesses estereótipos e inclusive introjetá-los como naturais. Uma criança não. Ela é totalmente induzida por seus pais, tutores, professores a achar que uma boneca é coisa de menina e bola é coisa de menino. No passado recente, lutava-se para que um garoto pudesse gostar de coisas que se convencionou chamar femininas sem prejuízo de sua identidade sexual. Da mesma forma, uma menina que gostava de coisas ditas masculinas era livre para vivê-las e simplesmente ser chamada de moleca, sem prejuízo de sua identidade sexual. Hoje, retrocedendo aos anos 50, uma criança que não se encaixe no estereótipo de gênero atribuído ao seu sexo é enquadrada no estereótipo de gênero do sexo oposto e rotulada de criança trans, à revelia da identidade sexual saudável que deveria desenvolver com seu corpo. Pior, na entrada da adolescência, vai ter seu desenvolvimento natural impedido por bloqueadores de puberdade e logo induzida a cirurgias mutilatórias irreparáveis.

Em outras palavras, se a condição transgênero em adultos que a escolheram de livre e espontânea vontade é aceitável, na medida que adultos têm o direito a decidir sobre seus corpos para o bem e para o mal, a história da criança trans não é. De fato, não passa de abuso infantil, síndrome de Munchausen por procuração, sede de lucro acima de qualquer ética médica e outras tantas motivações escusas. Parece que baixou o Dr. Josef Mengele (célebre médico nazista que fazia experiências em crianças  no campo de concentração de Auschwitz) nesse povo. No Brasil, o site No Corpo Certo reúne informações relevantes a respeito do assunto trazendo uma perspectiva bem fundamentada sobre esse tema tão importante. Outro site feminista que aborda o tema do identitarismo de gênero em geral (fala também de crianças) é o QG Feminista. As gurias do Sapataria Podcast também são uma boa referência lesbocentrada. Sobre gays críticos de gênero, vale acompanhar o Julio Marinho e seu canal no YouTube.

Comentários do facebook onde conservadores afirmam que "natural ou espontaneamente"
crianças se identificam com estereótipos de gênero.


Por último, o aspecto que mais me impressiona nas teorias de gênero e de identidade de gênero em particular é como algo tão reacionário e regressivo conseguiu se vender como progressista, lembrando que reacionário é quem tenta impedir mudanças ou revertê-las quando já existem. A falsa naturalidade dos estereótipos de gênero havia sido desmascarada a partir dos anos 60 aos anos 80. Parece que o fato de os conservadores tradicionais (com perdão da redundância) serem opositores do transgenerismo ajuda muito nessa fachada progressista dos TRA (Ativistas pelos direitos trans em ingês). Quem olha além das aparências, contudo, percebe as semelhanças entre ambos. O conflito entre esse pessoal é briga de família, de parentes que se estranham, que não se reconhecem como tais. Na real, a concepção de gênero de conservadores e identitaristas de gênero é a mesma: ser mulher e homem equivale a personificar o aglomerado de convenções sociais que constituem os estereótipos de gênero. Por exemplo, o cartunista Laerte, em entrevista, disse que a primeira vez que se “sentiu mulher” foi quando depilou o corpo todo. Depilar-se tem a ver com o estereótipo feminino não com a mulher. Atualmente há mulheres que não depilam nem as axilas, como se sabe.

Conservadores empunhando bandeiras e balões rosas e azuis contra o casamento entre pessoas de mesmo sexo
na França em janeiro de 2013

Até mesmo a cor dos estereótipos de gênero, rosa e azul, eles compartilham. Está presente na bandeira transgênero e nas manifestações dos conservadores pela família, pela manutenção da concepção de menino e menina e de homem e mulher baseada em estereótipos. Nunca esqueço das grandes manifestações dos conservadores franceses contra a aprovação do casamento gay, em janeiro de 2013, quando eles inundaram as ruas do país com bandeiras e balões rosas e azuis, também combinando com a bandeira francesa, entoando mantra análogo ao da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, aquele do “menino veste azul e menina veste rosa".

O fato é que não há como defender uma concepção de mulher e homem baseada em estereótipos de gênero sem ser conservador. Pintar o cabelo de azul, verde ou amarelo não esconde o fato de que há mais em comum entre conservadores e trans e queers do que sonham as vãs filosofias. Aliás, há um episódio engraçado envolvendo a travesti Rogéria, que inclusive se dizia “o” travesti, e as Tês atuais.

Em 2016, a libertária e desbocada Rogéria lançou sua picante autobiografia e pôs fogo no parquinho trans ao afirmar coisas como:

Um travesti precisa de inteligência e talento para saber que não é mulher de verdade. Só tenho duas preocupações com o visual: não parecer prostituta, nem homem vestido de mulher”.
[...]

Eu tenho o melhor de dois mundos (risos) e ainda vou mais rápido ao banheiro, porque o banheiro masculino não tem filas grandes como o das mulheres. Jamais seria um transexual, porque gosto de ser Astolfo e não cortaria meu peru por nada. E depois não existe isso de se criar uma buceta com uma operação - ou se nasce mulher ou não”.

O transativismo respondeu dizendo que Rogéria havia ficado no mundo das cavernas das décadas de 60/70 e que precisaria estudar para entender o que estava acontecendo no mundo. Na verdade, Rogéria estava algumas décadas à frente das identitaristas de gênero que pararam nas cavernas da década de 50, antes da Revolução Sexual chutar o pau da barraca dessa história de gênero e libertar mulheres e homens para serem andróginos e felizes. De fato, o transativismo simplesmente troca os estereótipos, não os questiona, com os homens incorporando o estereótipo de gênero feminino e as mulheres, o masculino. E, apenas porque não pode de fato mudar de sexo, quer fazer de conta que ele não existe e falar nele seria ser essencialista, biologicista. Fora que posa de progressista enquanto xinga os reais progressistas de conservadores.

Nesse mesmo caminho, os ideólogos da identidade de gênero criaram um divisor de águas no feminismo nacional e internacional. Uma boa parte das feministas brasileiras também comprou a falação da teórica queer Judith Butler onde mulher virou uma ficção representacional, sexo também virou construção social, uma convenção como gênero, e o feminismo deixou de ter a experiência corporal das mulheres como referência porque isso seria ser essencialista (sic). A propósito de Butler, a filósofa feminista Martha C. Nussbaum fez um texto matador em 1999, chamado a Professora da Paródia, A moda do Derrotismo em Judith Butler. Cito um trecho em tradução de Eli Vieira (ver o texto original e a tradução agregados aqui):

Bem, a performance paródica não é tão ruim quando você é uma acadêmica titular poderosa em uma universidade liberal. Mas é aqui que o foco de Butler no simbólico, sua negligência orgulhosa do aspecto material da vida, se torna uma cegueira fatal. Para mulheres com fome, analfabetas, desfavorecidas, espancadas ou estupradas, não é sedutor ou libertador reencenar, mesmo que de forma paródica, as condições de fome, analfabetismo, desfavorecimento, espancamento e estupro. Essas mulheres preferem comida, escola, direito ao voto e a integridade de seus corpos. Eu não vejo razões para acreditar que elas anseiam por um retorno sadomasoquista a suas situações deploráveis. Se alguns indivíduos não conseguem viver sem a eroticidade da dominação, sua situação parece triste, mas não é da nossa conta. Só que, quando uma teórica renomada diz a mulheres em condições desesperadoras que a vida só lhes oferece a sujeição, ela provê uma mentira cruel, e uma mentira que adula o mal por lhe atribuir muito mais poder do que ele realmente tem.

De fato, a noção de sexo e sexualidade varia através do tempo e das culturas, outras culturas tendo concepções distintas das ocidentais sobre o assunto, mas isso não significa que sexo como realidade biológica seja construção social, muito menos que constatar essa realidade corresponda a uma visão essencialista. Ser essencialista de fato é acreditar na suposta relação intrínseca entre sexo e gênero e na suposta naturalidade dos estereótipos de gênero como definidores do que é ser mulher e homem. Correntes do feminismo, como o feminismo cultural, o feminismo da diferença, até caberiam nessa pecha de essencialista por acreditar que as mulheres são mais sensíveis, solidárias, compassivas, pacíficas, generosas, ecológicas, do que os homens por natureza não pela socialização patriarcal que recebem para desenvolver essas virtudes de interesse masculino. Na versão dos ideólogos de gênero, repetindo, agora essencialista é simplesmente constatar a existência das diferenças sexuais, biológicas, entre mulheres e homens, e o quanto elas continuam determinando a vida das pessoas às vezes de forma radical.

A célebre frase de Simone de Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se” inclusive passou a ser instrumentalizada pelos teóricos de gênero para dizer que uma mulher é algo que se inventa ao sabor dos fetiches de qualquer um. Mas Beauvoir, quando escreveu a célebre frase, estava se referindo à fêmea humana, cuja forma na sociedade não seria definida por nenhum destino biológico, psíquico, econômico, mas sim pelo conjunto da civilização patriarcal enquanto feminino. Em outras palavras, ela apontava que era (é ainda) a conjuntura social que determina o papel da mulher na sociedade em vez de cada mulher poder ser livre criadora de si mesma.[1]

Até a etimologia da palavra feminista dá uma dica sobre seu real sentido. Ela se origina do francês féministe (1837), derivada de féminisme, pelo francês antigo feminin, vinda do latim fēmina, “fêmea, mulher”. Feminista, portanto, é quem defende a fêmea da espécie humana, a mulher, não o estereótipo de gênero feminino reivindicado por qualquer pessoa. Mesmo porque toda a discriminação sofrida pelas mulheres, repetindo, é baseada em seu sexo e não em uma abstração chamada gênero. Por isso, se na segunda versão deste trabalho de 2011 sobre o 19 de agosto, eu incluía um resumo das várias correntes feministas da época, muito em razão do cooptação da organização lésbica pelo feminismo local, hoje eu divido o feminismo a partir dessa linha de corte fundamental: feminismo de fato é aquele que defende os direitos das mulheres (as fēminas), independentemente de como se rotule. O resto perdeu o prumo e o rumo e agora acha que 2 + 2 = 5. Quem sabe um dia reencontre os dois.

Aliás, a esquerda em geral, em particular a chamada identitária, entrou numa espiral de irracionalidade de tal ordem que faz até a direita mais conservadora parecer razoável. Perto da lenda da “criança trans” e suas consequências macabras para toda uma geração de jovens, a ideia da terra plana não passa de bobagem folclórica, algo totalmente inócuo e bom gerador de memes. Exemplo disso é o recém-lançado documentário de um conservador americano chamado Matt Walsh com o título “O que é uma mulher?” Ele sai perguntando a meio mundo o que é uma mulher, entrevistando inclusive teóricos de gênero. Sem perder a linha por um segundo, sem debochar ou agredir, com perguntas simples e objetivas, ele expõe os teóricos de gênero ao ridículo simplesmente deixando-os falar. Um teaser do documentário pode ser visto aqui.

Agora, como eu sei que ele é conservador? O documentário se inicia com uma festa onde meninos e meninas aparecem abrindo seus presentes: os meninos recebem bolas e armas de brinquedo; as meninas, de rosa, recebem tiaras e sapatinhos de bonecas. Ou seja, ele critica no documentário mais um dos sintomas que sua própria visão de mundo produziu a partir da educação diferenciada dada a meninas e meninos para que se encaixem em estereótipos de gênero. Disforia de gênero é um distúrbio psicológico socialmente induzido pela citada educação diferenciada. Acabar com ela exige o fim dessa educação, adestramento melhor dizendo, e sua substituição por uma educação igualitária com foco nos potenciais individuais das crianças e não em seu sexo. Nós sabíamos disso no passado, mas hoje os movimentos sociais foram picados pela mosca azul e acham que fingir que grilhões são pulseiras vai libertá-los da prisão. Pior é a gente ter que torcer, nessa briga de reaças, para que conservadores como Matt Walsh prevaleçam porque pelo menos se opõem a mutilar crianças nessa onda Josef Mengele que se abateu sobre o Ocidente. E, falando em disforia, vale a audiência do vídeo abaixo, em 4 partes, que tem legenda em português. Elas podem ser vistas no youtube.


[1] Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino.” A Experiência Vivida, Primeira Parte Formação, Capítulo 1, Infância, p. 9 in BEAUVOIR, S. O segundo sexo, vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.


Lamento profundamente que movimentos como o feminista, o negro e o de gays e lésbicas, que nasceram no bojo libertário da Contracultura, com uma perspectiva universalista e transcendente dos preconceitos que cindem a humanidade, pareçam hoje mais um capítulo perdido do 1984, do George Orwell, que acabou de ser encontrado e anexado ao original. Nos discursos desses movimentos rola agora, como no célebre romance distópico, quebra do pensamento lógico, duplipensar, novilíngua, reescritura da História, polícia do pensamento, política do cancelamento, com direito à expiação de hereges e muitos minutos de ódio. Assustador, mas precisa ser encarado e questionado junto a um público cada vez mais amplo.

Que este resgate da manifestação do Ferro’s Bar, nesta nova edição, nos faça lembrar não só de um evento especial, organizado por lésbicas, protagonizado por lésbicas, pela venda de um boletim chamado ChanacomChana, mas também de um outro sonho feliz de humanidade que precisamos reencontrar. Porque “si en ese desierto cada estrella es un deseo de oasis.” (Huidobro)


                                                   Míriam Martinho, São Paulo, 19 de junho de 2022

 Condições de compartilhamento deste texto: Você deve dar o crédito apropriado a autora Míriam Martinho, prover link para este texto e para as fotos que o ilustram, se for utilizá-los. Você não pode usar o material para fins comerciais. Você não pode remixar, transformar ou criar a partir deste material.


6 comentários:

  1. Me sinto honradíssimo de ter sido citado no texto. Muito ogrigado mesmo. Esse é um documento histórico de suma importância. Além de lido deve ser guardado. É a história sendo contada por seus protagonistas. Parabéns, Míriam Martinho. E viva o Movimento Lésbico Brasileiro.

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    1. Obrigada, Julio, pelo comentário elogioso. Seus vídeos são muito didáticos e valem a audiência. Precisamos de quem defenda os direitos de gays e lésbicas neste momento sombrio. Um abraço, https://www.youtube.com/juliomarinho

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  2. Eu me emociono com essa foto. Nesse bar , vivi grandes paixões. Logo acima era uma boate : " Último Tango ". A representante era a Flora. Uma mulher lindíssima

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    1. O Ferro's foi um bar para lésbicas de muitas gerações. Sapataria geral passou por lá pelo menos uma vez na vida.

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  3. Mirian! Que relato fantástico e detalhado! Vale cada minuto! Agradeço a citação e mais ainda você ter tomado seu tempo para escrevê-lo.

    Vou falar dele na nossa próxima newsletter, linkando para cá.

    Receba meu abraço!

    Eugênia Rodrigues
    Jornalista
    Porta-voz da campanha No Corpo Certo
    www.nocorpocerto.com

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    1. Obrigada pela cumprimento, Eugênia. Agradeço o link em sua próxima newsletter. Sabe que admiro seu corajoso e incansável trabalho em defesa das crianças e adolescentes ameaçados pela reencarnação do Josef Mengele em forma de seita. Um abraço.

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