Memória Lesbiana: Míriam Martinho e o processo de produção dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Exemplares 1, 4 e 11 do boletim Chanacomchana © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho  

Míriam Martinho*
uoo@umoutroolhar.com.br

Chanacomchana e Um Outro Olhar foram boletins que produzi e editei de dezembro de 1982 até 1994 para dois dos grupos dos quais fui cofundadora (Grupo Ação Lésbica Feminista – GALF) e Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar. O boletim Um Outro Olhar se transformou em revista, que também produzi a partir de maio de 1995, com 16 edições (22-38), até dezembro de 2002.

Chanacomchana: um título debochado por libertárias até sérias

CCC 0

O boletim ChanacomChana teve um precedente, o CCC 0, en formato tabloide, impresso em janeiro de 1981 e lançado pelo Grupo Lésbico-Feminista, coletivo que antecedeu o GALF, em março de 1981, durante o III Congresso da Mulher Paulista. Embora conste um histórico do Lésbico-Feminista de minha autoria nesse trabalho, porque dele também fui uma das cofundadoras, não tive participação em sua produção e edição. Como sempre me pedem referência de quem o produziu, deixo aqui o nome da ex-integrante do Grupo Lésbico-Feminista, Maria Teresa Aarão, mais conhecida como Teca, que deve poder indicar quem o realizou.

Retomando, após a desarticulação do coletivo Lésbico-Feminista, em meados de 1981, duas de suas ex-integrantes, eu mesma e Rosely Roth, com algumas colaboradoras, fundamos o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), sob o codinome de Grupo Ação de Liberação Feminista, em outubro de 1981 (estatutariamente, 17/10/1981). No período entre a dissolução do coletivo anterior (LF) até o início do GALF (julho a outubro de 81), que apelidei de período de limbo, eu e Rosely tentamos reunir ex-integrantes do LF e lésbicas de outros grupos feministas, para ao menos produzir uma nova edição do tabloide ChanacomChana. Pelos registros da época, foram feitas duas tentativas nesse sentido, ambas fracassadas. Na segunda tentativa, quatro lésbicas apareceram, incluindo uma ex-integrante do LF, mas nada de concreto surgiu desse encontro.

A ideia de retomar o ChanacomChana foi adiada então para outro momento. O primeiro ano do GALF foi de dificuldades, já que só eu e Rosely nos assumíamos publicamente ao menos nos Movimentos Feminista e Homossexual da época. As demais integrantes do grupo desse período apenas colaboravam com pequenas tarefas internas e financeiramente. Fora isso havia o problema da manutenção da sede do GALF, pensada para ter sido do extinto LF, que morreu na praia. Fomos salvas pelo gongo (de perder a sede), quando o grupo gay Outra Coisa veio nos propor dividir o espaço em meados de 1982.


Com essa parceria, a mais frutífera e harmoniosa de toda a minha militância, os dois grupos começaram a realizar várias atividades conjuntas na sede (também externamente) que voltaram a mobilizar mais pessoas para seus objetivos. O GALF, em particular, começou a receber um maior afluxo de mulheres a partir de outubro de 1982. Com mais estabilidade financeira e maior afluxo de pessoas para suas atividades, a ideia de produzir uma publicação para a entidade foi retomada. Considerando que o GALF encampou o histórico do grupo lésbico-feminista como seu (um grande equívoco, aliás), a retomada do título ChanacomChana também pareceu natural.

Como o coletivo do GALF não tinha condições financeiras para publicar outro tabloide como o ChanacomChana 0, decidiu-se partir para a confecção de um fanzine com os parcos recursos gráficos existentes. Assumi então a tarefa hercúlea (ou melhor amazônica) de produzir os fanzines ChanacomChana, confeccionando as matrizes (bonecos) das publicações com textos datilografados, num layout pop-pobre que misturava colagens de fotos, textos, letras adesivas, guache, nanquim, corretivos, etc, aproveitando um pouco de minha experiência com artes plásticas. Apesar do resultado sofrível em particular dos primeiros números, o boletim foi encampado pelas lésbicas de então sem problemas, mais interessadas em ler alguma publicação que falasse de suas vivências do que com questões estéticas. Em termos de conteúdo, os primeiros números do Chana, em especial, trazem fundamentalmente contribuições das próprias integrantes do coletivo do GALF da ocasião, que eu revisava na medida do possível. Na parte de edição, fora a escolha das imagens, desde os primeiros números, passei a definir e produzir as seções do CCC, como as de informes (com traduções de notícias internacionais inclusive), poesias, cartas de grupos e cartas pessoais para correspondência (troca-cartas).

  Após a bem-sucedida invasão do Ferro’s Bar, em 19 de agosto de 1983, para poder romper com o veto do dono do bar à venda do Chana no local, o GALF já se tornou mais conhecido publicamente, processo amplificado pela participação de Rosely Roth em dois programas da Hebe Camargo, de grande audiência nacional, em 1985 e 1986. Como resultado, com nosso incentivo, um número maior de contribuições de lésbicas de todo o país passou a chegar à caixa postal do grupo, me dando maiores possibilidades de escolha de textos para publicação. Concebi o ChanacomChana, em consonância com outras integrantes do grupo, com a perspectiva de, por um lado, torná-lo um veículo de comunicação do GALF e sua militância, e, de outro, como um espaço de reflexão das lésbicas em geral sobre suas vivências e sofrências. Esse segundo objetivo visava também conscientizar as lésbicas sobre a necessidade de se mobilizar por seus direitos.

Para a impressão do Chana, Rosely Roth ficava encarregada de levar as matrizes dos boletins às gráficas dos diretórios acadêmicos de faculdades e da Câmara Municipal de São Paulo, neste último caso para serem impressas nas cotas de parlamentares, como a da sempre solidária vereadora Irede Cardoso, de saudosa memória. A tiragem era de 500 exemplares, tida como cota mínima para impressões em offset, mas seu escoamento, entre vendas e doações, ficava na metade disso. Posteriormente, após a invasão do Ferro’s, Rosely também passou a batalhar anúncios entre os donos e as donas dos bares e boates de lésbicas da época. A venda do boletim, da qual eu também participava, se dava nesses locais e através de assinaturas. 


Um Outro Olhar: homenageando o LesbRadar e buscando um público mais amplo

Após 12 edições, o ChanacomChana foi substituído pelo boletim Um Outro Olhar, em setembro de 1987, ainda no período de vigência do GALF. Esse nome surgiu de forma curiosa, numa conversa, a partir da tradução errada, feita por uma das integrantes do GALF, Luiza Granado, do título de um filme húngaro de temática lésbica chamado “Um Outro Jeito (Another Way)”. Ela lembrou do filme como Um Outro Olhar, eu pensei nas diversas possibilidades semânticas desse ‘um outro olhar”, e ele virou nome do novo boletim e, posteriormente, nome também da Rede de Informação Um Outro Olhar (o terceiro grupo do qual fui cofundadora).

No lançamento do Dia do Orgulho Lésbico, em 2003, a plateia ainda riu do Chanacomchana

No editorial que fiz para o primeiro número do Um Outro Olhar, eu destaco que o GALF queria, com seu novo título, espelhar o jeito especial que as lésbicas tinham de se olhar (LesbRadar) e trazer de fato novas maneiras de ver não só as relações entre mulheres como também o próprio “ser mulher” na muito patriarcal sociedade brasileira, buscando autoimagens mais positivas e perspectivas mais amplas em todas as direções. Embora não citado nesse editorial, buscávamos também com o novo título ampliar nosso público-alvo, já que o debochado título ChanacomChana incomodava parte das lésbicas da época. Prova disso é que, mesmo em 2003, durante o lançamento do dia do orgulho lésbico, quando lembramos do histórico da manifestação no Ferro’s Bar, o nome do Chana ainda provocou risos da plateia  e exclamações de que o título Um Outro Olhar fora uma mudança para bem melhor. Hoje, observo curiosamente uma maior simpatia pelo título Chanacomchana.

No boletim Um Outro Olhar, mantive parte das seções já iniciadas no ChanacomChana como as clássicas “Poesias”, “Troca-cartas”, “Cartas na Mesa“, e as seções “Em Movimento” e “Histórias de Heterror”, e acrescentei a “Deu no Jornal” e a “Publicações Recebidas” (ou material recebido). Como as contribuições das colaboradoras do GALF cresceram bastante, em nível nacional, e a biblioteca do grupo também cresceu expressivamente com publicações recebidas do Brasil e do exterior, o trabalho de edição desse material para publicação se tornou maior e mais complexo, me tomando um bom tempo de trabalho. Nesse sentido, para aliviar a sobrecarga, publiquei, ao longo das edições tanto do Chana quanto do UOO, pedidos de ajuda para a datilografia dos textos e a diagramação dos boletins, obtendo sucesso na diagramação de 9 números dos 21 produzidos (de fato 20, já que os números 19 e 20 vieram numa única edição), apesar de detestar o resultado estético dessa delegação. Nesse sentido, também solicitava que as colaboradoras enviassem o material já datilografado para nos poupar o trabalho de ainda ter que datilografar os textos. Embora em escala bem menor do que no Chanacomchana, tal fato explica a colcha de retalhos de tipos gráficos que ainda se vê em alguns números do Um Outro Olhar.
A venda do boletim Um Outro Olhar passou a se dar pelo sistema de associação do GALF e, posteriormente, a partir do número 11, em meados de 1990, pelo da Rede de Informação Um Outro Olhar, poupando o trabalho de venda em bares e boates. Eram feitas cópias do boletim original, em copiadoras, pagas com antecedência, como uma encomenda, o que explica haver  poucos exemplares remanescentes dessa publicão, com exceção do número 1 que foi feito ainda em offset. Em média eram produzidas 200 cópias dos UOO para as associadas do GALF e da RILUOO, mais conhecida como Rede, embora tenha havido caso de edições com mais cópias. Assim como o CCC, o UOO também era enviado para associações congêneres do Brasil e do exterior na base da permuta com as publicações dessas organizações ou simplesmente como cartão de visitas.


O boletim Um Outro Olhar teve 21 edições, publicadas de setembro de 1987 a janeiro de 1994 (edição verão-outono), evoluindo para o formato de revista a partir de 1995 (exemplo acima). Neste período  a Rede de Informação Um Outro Olhar passou a receber financiamento governamental para seus projetos sobre saúde da mulher lésbica e da mulher em geral, originando outro boletim, Ousar Viver, que foi encartado na revista Um Outro OLhar. Mas a revista e o encarte serão temas de outra radiografia.

Digitalizações dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar

Iniciei as digitalizações das publicações que produzi, para os grupos dos quais fui cofundadora, no final de 2017, atendendo inclusive a demanda de pesquisadores e pesquisadoras por acesso a esses materiais. Até então, fazia cópias dessas publicações e vendia os números da revista Um Outro Olhar para os interessados. Nesse período, contudo, tive uma série de questões pessoais a resolver que interromperam essa atividade. Deixei então apenas as revistas para digitalizar numa copiadora, já que não exigiam qualquer trabalho de reedição gráfica e as disponibilizei no Google Drive da Um Outro Olhar no início de 2018. No caso dos boletins, porém, havia vários problemas a solucionar nos originais derivados do desgaste do tempo, como perda das letras adesivas e das colagens de imagens que ilustravam as matérias, muitas manchas, páginas totalmente amareladas, algumas com vários apagamentos, etc.. Neste ano, enfim, tive condições de encarar esse trabalho e começar, enfim, a reeditar graficamente parte dos boletins, em particular algumas capas do CCC, as mais lesadas pelo tempo. Embora se trate de trabalho ainda em andamento, já disponibilizei o material para consulta.

Linha do tempo dos dispositivos de escrita com que foram  feitos o CCC e o UOO

Reeditar graficamente os boletins foi como tomar o túnel do tempo para a época em que os produzia daquela forma tão precária dos anos 80 e 90 que descrevi neste texto. Só que, desta vez, tive como auxiliar o mui famoso e poderoso Photoshop que transforma em beldades até as mais feias das criaturas. Aliás, a evolução gráfica do CCC, UOO e da revista Um Outro Olhar bem poderia servir também para traçar uma linha do tempo dos avanços tecnológicos da grande revolução da informação que, nas últimas décadas, permitiu a qualquer pessoa ter um veículo individual ou coletivo de comunicação quase sem custo na vastidão da Internet. Não pude deixar de pensar no que teria feito com os recursos técnicos de hoje para a produção dos CCC e UOO. Os primeiros CCC eram feitos ainda com máquinas de escrever antigas, depois com máquinas de escrever elétricas, assim como o Um Outro Olhar, depois com os editores de texto dos primeiros PC (baseados em DOS), com saída via impressoras matriciais, depois, já, na era Windows,  com os aplicativos de editoração de páginas, como o Page Maker, até chegar, na editoração e layout feitos pelas próprias gráficas onde a revista Um Outro Olhar e outros materiais da Rede foram impressos.

Conclusão

Hoje existe um esforço no sentido de individualizar as pessoas que atuaram nos grupos de gays e lésbicas na década de 80 e início da década de 90 ou colaboraram com eles, na base do quem era quem e fazia o quê. Segundo me disse um historiador, para “homenagear todas vocês que lutaram tanto por nossos direitos que estão novamente ameaçados”. No caso dos grupos de lésbicas, mais do que dos gays, o anonimato ou anonimato parcial se devia fundamentalmente à ditadura da heterossexualidade obrigatória quase hegemônica. Trocando em miúdos, 99% das lésbicas viviam no armário, incluindo feministas homossexuais e até as que migraram do lésbico-feminista para outros grupos feministas. No caso específico do GALF, em menor caso da Rede, além do armário prevalente, para a indistinção do que fazia cada ativista, colaborava ainda a tola visão meio anarquista e coletivista reinante no grupo que secundarizava as atuações individuais, forçando plurais de modéstia em prol de um coletivo amorfo, pois transeunte ou intermitente, encarnado numa sigla.

Espero, portanto, com esta radiografia dos CCC e UOO, ter contribuído um pouco para esse esforço de individualização. Ainda que meu nome apareça como editora, em boa parte dos números dessas publicações, faz-se necessário sem dúvida esse esclarecimento para coibir usurpações. Em termos legais, significa que detenho exclusivamente  a titularidade dos direitos autorais sobre as coleções ChanacomChana e Um Outro Olhar (Lei  nº 9.610/98, artigos 24, 17, parágrafo segundo). 

E boa leitura!

O material abaixo é estritamente para leitura e consulta. Para quaisquer outras finalidades, entre em contato direto comigo pelo e-mail uoo@umoutroolhar.com.br 
Os créditos das coleções ChanacomChana e Um Outro Olhar boletins e revistas devem ser dados a Míriam Martinho com link para esta página. 

Sumário ChanascomChanas
ChanacomChana: do 1 ao 12
© Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho 

Boletim Um Outro Olhar: do 1 ao 21 (acompanha complemento desta edição)

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*Miriam Martinho é uma das fundadoras do Movimento Homossexual brasileiro, em particular da organização lésbica, tendo co-fundado as primeiras entidades lésbicas brasileiras, a saber, Grupo Lésbico-Feminista (1979-1981), Grupo Ação Lésbica-Feminista (1981-1989) e Rede de Informação Um Outro Olhar (1989....). Editou também as primeiras publicações lésbicas do país, como o fanzine ChanacomChana (década de 80) e o boletim e posterior revista Um Outro Olhar (década de 90 até 2002). Atualmente administra as páginas Um Outro Olhar e Contra o Coro dos Contentes. 

Fundou igualmente o movimento de saúde lésbica no Brasil, em 1994, realizando a primeira campanha de prevenção às DST-AIDS para mulheres que se relacionam com mulheres, em 1995, e editando as primeiras publicações sobre o tema desde essa época (em 2006 publicou a 4 edição da cartilha Prazer sem Medo sobre saúde integral para lésbicas e bissexuais). Participou da organização do I EBHO (1980), organizou dois encontros LGBT nacionais (VII EBLHO/93 e IX EBGLT/97) e foi sócia-fundadora da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT-1995). Participou igualmente de vários encontros internacionais com destaque para a 8ª Conferência Internacional do Serviço de Informação Lésbica Internacional-ILIS (Genebra, Suiça, 28 a 31/03/1986), o I Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-Americanas e do Caribe (Cuernavaca, México, 1987) e a Reunião de Reflexão Lésbica-Homossexual (Santiago, Chile/ nov. 1992).

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