Exemplares 1, 4 e 11 do boletim Chanacomchana © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho |
Míriam Martinho*
uoo@umoutroolhar.com.br
Chanacomchana e Um Outro Olhar foram boletins que produzi e editei de dezembro
de 1982 até 1994 para dois dos grupos dos quais fui cofundadora (Grupo Ação
Lésbica Feminista – GALF) e Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar. O
boletim Um Outro Olhar se transformou em revista, que também produzi a partir
de maio de 1995, com 16 edições (22-38), até dezembro de 2002.
Chanacomchana: um título debochado por libertárias até sérias
CCC 0 |
O boletim ChanacomChana teve um precedente, o CCC 0, en formato tabloide, impresso em janeiro de 1981 e lançado pelo Grupo Lésbico-Feminista, coletivo que antecedeu o GALF, em março de 1981, durante o III Congresso da Mulher Paulista. Embora conste um histórico do Lésbico-Feminista de minha autoria nesse trabalho, porque dele também fui uma das cofundadoras, não tive participação em sua produção e edição. Como sempre me pedem referência de quem o produziu, deixo aqui o nome da ex-integrante do Grupo Lésbico-Feminista, Maria Teresa Aarão, mais conhecida como Teca, que deve poder indicar quem o realizou.
Retomando, após a desarticulação do coletivo Lésbico-Feminista, em meados de
1981, duas de suas ex-integrantes, eu mesma e Rosely Roth, com algumas
colaboradoras, fundamos o Grupo Ação
Lésbica Feminista (GALF), sob o codinome de Grupo Ação de Liberação Feminista, em outubro de 1981 (estatutariamente, 17/10/1981). No
período entre a dissolução do coletivo anterior (LF) até o início do GALF
(julho a outubro de 81), que apelidei de período de limbo, eu e Rosely tentamos
reunir ex-integrantes do LF e lésbicas de outros grupos feministas, para ao
menos produzir uma nova edição do tabloide ChanacomChana. Pelos registros da
época, foram feitas duas tentativas nesse sentido, ambas fracassadas. Na
segunda tentativa, quatro lésbicas apareceram, incluindo uma ex-integrante do
LF, mas nada de concreto surgiu desse encontro.
A ideia de retomar o ChanacomChana foi adiada então para outro momento. O
primeiro ano do GALF foi de dificuldades, já que só eu e Rosely nos
assumíamos publicamente ao menos nos Movimentos Feminista e Homossexual da
época. As demais integrantes do grupo desse período apenas colaboravam com pequenas
tarefas internas e financeiramente. Fora isso havia o problema da manutenção da
sede do GALF, pensada para ter sido do extinto LF, que morreu na praia. Fomos
salvas pelo gongo (de perder a sede), quando o grupo gay Outra Coisa veio nos
propor dividir o espaço em meados de 1982.
Com essa parceria, a mais frutífera e harmoniosa de toda a minha militância, os dois grupos começaram a realizar várias atividades conjuntas na sede (também externamente) que voltaram a mobilizar mais pessoas para seus objetivos. O GALF, em particular, começou a receber um maior afluxo de mulheres a partir de outubro de 1982. Com mais estabilidade financeira e maior afluxo de pessoas para suas atividades, a ideia de produzir uma publicação para a entidade foi retomada. Considerando que o GALF encampou o histórico do grupo lésbico-feminista como seu (um grande equívoco, aliás), a retomada do título ChanacomChana também pareceu natural.
Como o coletivo do GALF não tinha condições financeiras para publicar outro tabloide como o
ChanacomChana 0, decidiu-se partir para a confecção de um fanzine com os parcos recursos
gráficos existentes. Assumi então a tarefa hercúlea (ou melhor amazônica) de
produzir os fanzines ChanacomChana, confeccionando as matrizes (bonecos) das
publicações com textos datilografados, num layout pop-pobre que misturava colagens de fotos, textos, letras adesivas,
guache, nanquim, corretivos, etc, aproveitando um pouco de minha experiência
com artes plásticas. Apesar do resultado sofrível em particular dos primeiros números, o boletim foi encampado
pelas lésbicas de então sem problemas, mais interessadas em ler alguma publicação
que falasse de suas vivências do que com questões estéticas. Em termos de conteúdo, os primeiros números do Chana, em especial, trazem fundamentalmente contribuições
das próprias integrantes do coletivo do GALF da ocasião, que eu revisava na medida do possível. Na
parte de edição, fora a escolha das imagens, desde os primeiros números, passei
a definir e produzir as seções do CCC, como as de informes (com traduções de notícias internacionais inclusive), poesias, cartas de grupos e cartas pessoais
para correspondência (troca-cartas).
Após a bem-sucedida invasão do Ferro’s Bar, em 19 de agosto de 1983, para poder
romper com o veto do dono do bar à venda do Chana no local, o GALF já se tornou
mais conhecido publicamente, processo amplificado pela participação de Rosely
Roth em dois programas da Hebe Camargo, de grande audiência nacional, em 1985 e 1986. Como
resultado, com nosso incentivo, um número maior de contribuições de lésbicas de
todo o país passou a chegar à caixa postal do grupo, me dando maiores
possibilidades de escolha de textos para publicação. Concebi o ChanacomChana, em consonância com outras integrantes do grupo, com a perspectiva de, por um
lado, torná-lo um veículo de comunicação do GALF e sua militância, e, de
outro, como um espaço de reflexão das lésbicas em geral sobre suas
vivências e sofrências. Esse segundo objetivo visava também conscientizar as
lésbicas sobre a necessidade de se mobilizar por seus direitos.
Para a impressão do Chana, Rosely Roth ficava encarregada de levar as matrizes
dos boletins às gráficas dos diretórios acadêmicos de faculdades e da Câmara
Municipal de São Paulo, neste último caso para serem impressas nas cotas de
parlamentares, como a da sempre solidária vereadora Irede Cardoso, de saudosa
memória. A tiragem era de 500 exemplares, tida como cota mínima para impressões
em offset, mas seu escoamento, entre vendas e doações, ficava na metade disso. Posteriormente,
após a invasão do Ferro’s, Rosely também passou a batalhar anúncios entre os donos
e as donas dos bares e boates de lésbicas da época. A venda do boletim, da qual eu também participava, se dava nesses locais e através de assinaturas.
Um Outro Olhar: homenageando o LesbRadar e buscando um público mais amplo
Após 12 edições, o ChanacomChana foi substituído pelo boletim Um Outro Olhar, em
setembro de 1987, ainda no período de vigência do GALF. Esse nome surgiu de
forma curiosa, numa conversa, a partir da tradução errada, feita por uma das integrantes do GALF, Luiza Granado, do
título de um filme húngaro de temática lésbica chamado “Um Outro Jeito (Another
Way)”. Ela lembrou do filme como Um
Outro Olhar, eu pensei nas diversas possibilidades semânticas desse ‘um outro olhar”, e ele virou nome do novo
boletim e, posteriormente, nome também da
Rede de Informação Um Outro Olhar (o terceiro grupo do qual fui cofundadora).
No lançamento do Dia do Orgulho Lésbico, em 2003, a plateia ainda riu do Chanacomchana |
No editorial que fiz para o primeiro número do Um Outro Olhar, eu destaco que o
GALF queria, com seu novo título, espelhar o jeito especial que as lésbicas
tinham de se olhar (LesbRadar) e trazer de fato novas maneiras de ver não só as
relações entre mulheres como também o próprio “ser mulher” na muito patriarcal sociedade
brasileira, buscando autoimagens mais positivas e perspectivas mais amplas em
todas as direções. Embora não citado nesse editorial, buscávamos também com o
novo título ampliar nosso público-alvo, já que o debochado título ChanacomChana
incomodava parte das lésbicas da época. Prova disso é que, mesmo em 2003, durante o lançamento
do dia do orgulho lésbico, quando lembramos do histórico da manifestação
no Ferro’s Bar, o nome do Chana ainda provocou risos da plateia e exclamações de que o título Um Outro Olhar fora
uma mudança para bem melhor. Hoje, observo curiosamente uma
maior simpatia pelo título Chanacomchana.
No boletim Um Outro Olhar, mantive parte das seções já iniciadas no ChanacomChana como as clássicas “Poesias”, “Troca-cartas”, “Cartas na Mesa“, e as seções “Em Movimento” e “Histórias de Heterror”, e acrescentei a “Deu no Jornal” e a “Publicações Recebidas” (ou material recebido). Como as contribuições das colaboradoras do GALF cresceram bastante, em nível nacional, e a biblioteca do grupo também cresceu expressivamente com publicações recebidas do Brasil e do exterior, o trabalho de edição desse material para publicação se tornou maior e mais complexo, me tomando um bom tempo de trabalho. Nesse sentido, para aliviar a sobrecarga, publiquei, ao longo das edições tanto do Chana quanto do UOO, pedidos de ajuda para a datilografia dos textos e a diagramação dos boletins, obtendo sucesso na diagramação de 9 números dos 21 produzidos (de fato 20, já que os números 19 e 20 vieram numa única edição), apesar de detestar o resultado estético dessa delegação. Nesse sentido, também solicitava que as colaboradoras enviassem o material já datilografado para nos poupar o trabalho de ainda ter que datilografar os textos. Embora em escala bem menor do que no Chanacomchana, tal fato explica a colcha de retalhos de tipos gráficos que ainda se vê em alguns números do Um Outro Olhar.
A venda do boletim Um Outro Olhar passou a se dar pelo sistema de associação do GALF e, posteriormente, a partir do número 11, em meados de 1990, pelo da Rede de Informação Um Outro Olhar, poupando o trabalho de venda em bares e boates. Eram feitas cópias do boletim original, em copiadoras, pagas com antecedência, como uma encomenda, o que explica haver poucos exemplares remanescentes dessa publicão, com exceção do número 1 que foi feito ainda em offset. Em média eram produzidas 200 cópias dos UOO para as associadas do GALF e da RILUOO, mais conhecida como Rede, embora tenha havido caso de edições com mais cópias. Assim como o CCC, o UOO também era enviado para associações congêneres do Brasil e do exterior na base da permuta com as publicações dessas organizações ou simplesmente como cartão de visitas.
O boletim Um Outro Olhar teve 21 edições, publicadas de setembro de 1987 a janeiro
de 1994 (edição verão-outono), evoluindo para o formato de revista a partir de
1995 (exemplo acima). Neste período a Rede de Informação Um Outro Olhar passou a receber financiamento
governamental para seus projetos sobre saúde da mulher lésbica e da mulher em
geral, originando outro boletim, Ousar Viver, que foi encartado na revista Um Outro OLhar. Mas a revista e o encarte serão temas de outra radiografia.
Digitalizações dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar
Iniciei as digitalizações das publicações que produzi, para
os grupos dos quais fui cofundadora, no final de 2017, atendendo inclusive a demanda de pesquisadores
e pesquisadoras por acesso a esses materiais. Até então, fazia cópias dessas publicações
e vendia os números da revista Um Outro Olhar para os interessados. Nesse período,
contudo, tive uma série de questões pessoais a resolver que interromperam essa
atividade. Deixei então apenas as revistas para digitalizar numa copiadora, já que não exigiam qualquer
trabalho de reedição gráfica e as disponibilizei no Google Drive da Um Outro Olhar no início de 2018. No caso dos boletins, porém, havia vários
problemas a solucionar nos originais derivados do desgaste do tempo, como perda das letras
adesivas e das colagens de imagens que ilustravam as matérias, muitas manchas, páginas
totalmente amareladas, algumas com vários apagamentos, etc.. Neste ano,
enfim, tive condições de encarar esse trabalho e começar, enfim, a reeditar graficamente parte
dos boletins, em particular algumas capas do CCC, as mais lesadas pelo tempo.
Embora se trate de trabalho ainda em andamento, já disponibilizei o material
para consulta.
Linha do tempo dos dispositivos de escrita com que foram feitos o CCC e o UOO |
Reeditar graficamente os boletins foi como tomar o túnel do tempo para a época
em que os produzia daquela forma tão precária dos anos 80 e 90 que descrevi neste
texto. Só que, desta vez, tive como auxiliar o mui famoso e poderoso Photoshop
que transforma em beldades até as mais feias das criaturas. Aliás, a evolução
gráfica do CCC, UOO e da revista Um Outro Olhar bem poderia servir também para traçar
uma linha do tempo dos avanços tecnológicos da grande revolução da informação
que, nas últimas décadas, permitiu a qualquer pessoa ter um veículo individual
ou coletivo de comunicação quase sem custo na vastidão da Internet. Não pude
deixar de pensar no que teria feito com os recursos técnicos de hoje para a produção
dos CCC e UOO. Os primeiros CCC eram feitos ainda
com máquinas de escrever antigas, depois com máquinas de escrever elétricas, assim
como o Um Outro Olhar, depois com os editores de texto dos primeiros PC (baseados em DOS), com saída via impressoras matriciais, depois, já, na era
Windows, com os aplicativos de editoração
de páginas, como o Page Maker, até chegar, na editoração e layout feitos pelas próprias
gráficas onde a revista Um Outro Olhar e outros materiais da Rede foram impressos.
Conclusão
Hoje existe um esforço no sentido de individualizar as pessoas que atuaram nos grupos de
gays e lésbicas na década de 80 e início da década de 90 ou colaboraram com eles,
na base do quem era quem e fazia o quê. Segundo me disse um historiador, para “homenagear todas vocês que lutaram tanto
por nossos direitos que estão novamente ameaçados”. No caso dos
grupos de lésbicas, mais do que dos gays, o anonimato ou anonimato parcial se
devia fundamentalmente à ditadura da heterossexualidade obrigatória quase hegemônica.
Trocando em miúdos, 99% das lésbicas viviam no armário, incluindo feministas
homossexuais e até as que migraram do lésbico-feminista para outros grupos
feministas. No caso específico do GALF, em menor caso da Rede, além do armário
prevalente, para a indistinção do que fazia cada ativista, colaborava ainda a tola visão meio anarquista e coletivista reinante no grupo que secundarizava as atuações individuais, forçando plurais de modéstia em
prol de um coletivo amorfo, pois transeunte ou intermitente, encarnado numa sigla.
Espero, portanto, com esta radiografia dos CCC e UOO, ter contribuído um pouco para esse esforço de individualização. Ainda que meu nome apareça como editora, em boa parte dos números dessas publicações, faz-se necessário sem dúvida esse esclarecimento para coibir usurpações. Em termos legais, significa que detenho exclusivamente a titularidade dos direitos autorais sobre as coleções ChanacomChana e Um Outro Olhar (Lei nº 9.610/98, artigos 24, 17, parágrafo segundo).
Espero, portanto, com esta radiografia dos CCC e UOO, ter contribuído um pouco para esse esforço de individualização. Ainda que meu nome apareça como editora, em boa parte dos números dessas publicações, faz-se necessário sem dúvida esse esclarecimento para coibir usurpações. Em termos legais, significa que detenho exclusivamente a titularidade dos direitos autorais sobre as coleções ChanacomChana e Um Outro Olhar (Lei nº 9.610/98, artigos 24, 17, parágrafo segundo).
E boa leitura!
O material abaixo é estritamente para leitura e consulta. Para quaisquer outras finalidades, entre em contato direto comigo pelo e-mail uoo@umoutroolhar.com.br
Os créditos das coleções ChanacomChana e Um Outro Olhar boletins e revistas devem ser dados a Míriam Martinho com link para esta página.
Sumário ChanascomChanas
ChanacomChana: do 1 ao 12
© Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho
Boletim Um Outro Olhar: do 1 ao 21 (acompanha complemento desta edição)
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*Miriam Martinho é uma das fundadoras do Movimento Homossexual brasileiro, em particular da organização lésbica, tendo co-fundado as primeiras entidades lésbicas brasileiras, a saber, Grupo Lésbico-Feminista (1979-1981), Grupo Ação Lésbica-Feminista (1981-1989) e Rede de Informação Um Outro Olhar (1989....). Editou também as primeiras publicações lésbicas do país, como o fanzine ChanacomChana (década de 80) e o boletim e posterior revista Um Outro Olhar (década de 90 até 2002). Atualmente administra as páginas Um Outro Olhar e Contra o Coro dos Contentes.
Fundou igualmente o movimento de saúde lésbica no Brasil, em 1994, realizando a primeira campanha de prevenção às DST-AIDS para mulheres que se relacionam com mulheres, em 1995, e editando as primeiras publicações sobre o tema desde essa época (em 2006 publicou a 4 edição da cartilha Prazer sem Medo sobre saúde integral para lésbicas e bissexuais). Participou da organização do I EBHO (1980), organizou dois encontros LGBT nacionais (VII EBLHO/93 e IX EBGLT/97) e foi sócia-fundadora da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT-1995). Participou igualmente de vários encontros internacionais com destaque para a 8ª Conferência Internacional do Serviço de Informação Lésbica Internacional-ILIS (Genebra, Suiça, 28 a 31/03/1986), o I Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-Americanas e do Caribe (Cuernavaca, México, 1987) e a Reunião de Reflexão Lésbica-Homossexual (Santiago, Chile/ nov. 1992).
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