Chanacomchana 4: resgate e edição comentada

terça-feira, 25 de abril de 2023

CCC 4 Set. 83 © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho


Míriam Martinho

Em dezembro de 1982, era lançado o primeiro número do boletim Chanacomchana (ver resgate do CCC 1 aqui, CCC2 aqui, CCC 3 aqui), seguido de outros 11 números. Neste artigo, abordo o ChanacomChana 4, não sem antes falar do contexto histórico e político de onde o periódico emerge, fundamental para entender sua produção e conteúdo (ver mais informações aqui).

Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).

Na prática, os grupos daquele incipiente movimento se preocupavam com a não reprodução da política tradicional, suas hierarquias, disputas de poder, discursos da boca para fora, e tentavam (com pouco sucesso) não reproduzir suas mazelas. Nesse sentido também, pregavam a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, uma das bandeiras de maior bom senso daquela época. O GALF era tributário dessas ideias (vide o texto Autonomia), via esquerda libertária, das ideias do feminismo de segunda onda, com seu questionamento dos papéis sexuais, e das correntes do separatismo lésbico do também incipiente movimento lésbico internacional. Nem o GALF nem o ChanacomChana refletem qualquer luta contra a ditadura militar que, aliás, já estava em seus estertores. O GALF e suas publicações foram, de fato, insurgências contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória.

A Revolução DIY
Todo esse amálgama de ideias e inspirações aparecem nas páginas do Chanacomchana do seu período inicial e nele permanecem no período posterior, de 1985 em diante, apesar do afã revolucionário contracultural do MHB ir sendo paulatinamente substituído pelo reformismo pragmático de grupos como o GGB e o Triângulo Rosa.

Também do ponto de vista gráfico, o CCC vai seguir a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo) matriz, entre outras produções, dos fanzines produzidos artesanalmente, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Nas vendas, o corpo a corpo junto ao público-alvo ou, posteriormente, via correios através do sistema de associação.

ChanacomChana nº 4 – Edição comentada





Democracia também para as lésbicas: uma luta no Ferro's Bar (p. 1 a 3)

Neste artigo, Vanda Frias, jornalista e integrante do GALF, faz uma descrição da manifestação do Ferro's Bar, ocorrida em 19 de agosto de 1983, para conseguir derrubar o veto dos donos do estabelecimento à venda do boletim ChanacomChana em seu espaço. Apresenta também um pouco da visão política do GALF daquele período, aspecto histórico e ideológico que vou destacar nesse resgate. Sobre o aspecto descritivo do evento, vale comparar o texto da Vanda com o do outro jornalista, Carlos Brickman, recentemente falecido, que cobriu a manifestação, clicando em Orgulho Lésbico: o happening político do Ferro's Bar (edição 2022). 

Pra começar, o título desse meu texto "o happening político do Ferro's Bar" foi baseado na definição que Vanda e mesmo Brickman deram ao evento (aparece 5 vezes em seus textos): happening e happening político. Da mesma forma, eles identificam a organização que realizou a manifestação como Grupo Ação Lésbica Feminista, em concordância com os documentos produzidos pelo grupo antes e depois do evento. Saliento esses aspectos porque nos processos de usurpação da data e reescritura da História, até por gente que sequer havia nascido à época, o happening do Ferro's virou levante (sic) e o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) virou Grupo de Ação Lésbico-Feminista. E não se trata de confusão com a semelhança dos nomes não. É má-fé mesmo.

Voltando ao texto, Vanda inicia falando que o frio que baixava na cidade não impediu que o "happening” político organizado pelo GALF fosse um sucesso. Descreve os grupos e pessoas que participaram da manifestação, como o grupo Outra Coisa e a vereadora Irede Cardoso (PT), e suas ações para a bem-sucedida "invasão" do recinto bem como as ações de anônimos que conseguiram vencer o porteiro com estratégia bem-humorada.
O inesperado — ou mais uma artimanha de um dos alegres rapazes da banda — precipita tudo. O boné do porteiro é arrancado e jogado longe. Enquanto ele busca tão importante signo de seu poder, duas mulheres puxam-no para o lado oposto. Aproveitando-se desse inusitado embate, as lésbicas do GALF entram. Uma delas, Rosely, sobe imediatamente sobre uma cadeira e começa a denunciar as atitudes autoritárias do bar.
Em seguida, no subtítulo "Lésbicas em busca de uma entrada", Vanda descreve os antecedentes do protesto, a crescente implicância dos donos do bar com a venda do boletim que, em 23 de julho, culminou numa tentativa malograda de expulsão das integrantes do GALF, por meio dos seguranças do recinto, na base dos empurrões. O dono então chamou a polícia alegando que o GALF estava fazendo arruaça no bar, mas não obteve apoio dos guardas. Segundo Vanda:

Alegando que nós estávamos fazendo "arruaça” dentro de tão comportado ambiente, o dono chamou a polícia. Os policiais chegaram, ouviram as argumentações do dono, as nossas, as das lésbicas não militantes que nos apoiam. E estranhamente um deles respondeu que, como deviam ser imparciais, pois os direitos são para todos os brasileiros, não tomariam qualquer atitude contra nós. Puxaram o carro e pudemos jantar em meio às outras lésbicas, como sempre fazemos. Há também dias — ainda raríssimos — que são da caça e não do caçador.

Acostumadas com a narrativa hiperdimensionada sobre a ditadura militar, mesmo às vésperas do fim dela, e a fábula de que os militares tinham política de estado contra homossexuais, não foram poucas as vezes que li e ouvi gente estranhando demais a polícia não ter levado as integrantes do GALF em cana. Fora isso, para corroborar o estranhamento, em maio de 1980, um sensacionalista delegado de polícia, Wilson Richetti, ainda promovera a "operação limpeza" destinada a limpar a cidade de prostitutas, travestis, negros e homossexuais. E, no final daquele ano, na apelidada "operação sapatão", também invadira vários bares do gueto lésbico, incluindo o Ferro's, a fim de levar as sapatas para um tour na delegacia mais próxima.

Entretanto, em 1982, os brasileiros já caminhavam a passos largos para o fim do regime autoritário e puderam votar inclusive para governador em novembro. Em 1983, o Secretário de Segurança Pública de SP, Manoel Pedro Pimentel declarou à revista Veja (02/03/1983) estar aberto ao diálogo com os grupos sociais, incluindo o de gays e lésbicas. Em reunião com o Secretário, o GALF e os demais grupos homossexuais de SP demandaram o fim da violência policial contra gays e lésbicas e uma revisão das prisões com base no critério muito subjetivo de "atentado ao pudor". O secretário se comprometeu a não reprimir manifestações pacíficas de homossexuais, mesmo as públicas, critério que só não se aplicaria a travestis que expunham suas partes pudendas em público. Esse compromisso do secretário é a explicação mais provável para a posição tão razoável dos guardas que foram chamados para nos retirar do Ferro's em julho de 1983. Nosso ativismo ali sempre fora totalmente pacífico assim como foi pacífica a manifestação do dia 19 de agosto (nada a ver com levante) quando já estávamos impedidas de entrar no bar. 

Outro ponto que vale destacar no texto da Vanda, por seu retrato do período, é quando ela fala da posição da esquerda da época sobre as lutas específicas de mulheres e gays e lésbicas.
A militância política de esquerda sempre foi reprimida. Mas sempre compensada pela certeza de se estar lutando por um mundo melhor e de se estar fazendo história. Mas as (os) militantes da esquerda não enfrentam, no seu dia a dia, as dificuldades das lésbicas e das feministas mesmo quando heterossexuais. São olhadas com certo deboche e feridas com agressões verbais por estarem numa luta menor, num combate não-prioritário. Boa parte da esquerda ainda nos olha dessa forma.
A esquerda ortodoxa que fora muito perseguida pelos militares, em particular durante os anos de chumbo (governo Médici), com o progressivo retorno ao pluripartidarismo e as chamadas liberdades democráticas, passou a se integrar aos partidos recém-formados. Apesar dessa concessão à democracia burguesa, continuaram com ideias da década de 60. Sua luta era exclusivamente a de classes e contra a ditadura, sendo qualquer outro tipo de militância vista como luta menor, o feminismo como coisa de burguesa desocupada, a homossexualidade, como fruto da decadência da burguesia. Na década de 90, após o baque do fim da URSS, esse pessoal se rearticulou na América Latina e passou a considerar mais estratégico cooptar e aparelhar os movimentos que outrora rechaçaram.

Vanda continua sua crítica à esquerda da época e pontua como o GALF buscava superar esses rótulos de luta maior e menor, apontando também para o caráter coletivo do protesto do Ferro's:
São as chamadas "minorias", mais uma palavra que esconde o verdadeiro nome: grupos oprimidos. Nós do GALF queremos ajudar a romper com essa história. Por isso, resolvemos reconquistar o Ferro’s com a ajuda de homens homossexuais, mulheres feministas, ativistas dos direitos civis e militantes ou políticos dos partidos de oposição mais identificados com as lutas das minorias.
Vanda ressalta também o caráter autônomo do GALF, lembrando que a questão da autonomia dos grupos em relação aos partidos políticos foi um tema central do incipiente movimento homossexual do período. Autonomia que não impedia o grupo de ter boas relações com os partidos de oposição da época:
Por sermos um grupo autônomo, o GALF é aberto às lésbicas dos mais diferentes horizontes políticos. Ao contrário de alguns outros grupos feministas, o GALF não aceita a chamada dupla militância: isto é, batalhar dentro de um grupo e, ao mesmo tempo, dentro de um partido político. Pensamos que a dupla militância foi um dos principais fatores de enfraquecimento dos grupos feministas dos últimos anos particularmente com as eleições de 1982.
Isso não impede que busquemos ótimas relações com os partidos de oposição — PMDB, PT e PDT — pois nossas lutas se cruzam em alguns pontos essenciais, como é o caso da luta pelas liberdades democráticas. Por isso, fizemos questão de convidar, para o happening político do Ferro’s, a deputada Ruth Escobar (PMDB), a vereadora Irede Cardoso (PT), o deputado federal Eduardo Suplicy (PT) e a bancada do PT na Assembleia Legislativa através de carta endereçada ao líder de sua bancada, Marco Aurélio Ribeiro. Como apoio na área legal, convidamos a advogada Zulaiê Cobra Ribeiro (representante da Ordem dos Advogados do Brasil e da Comissão de Direitos Humanos).
Resgate de uma História

Vanda iniciou seu texto descrevendo os primeiros momentos do happening político realizado no Ferro's pelo Grupo Ação Lésbica Feminista. Com o subtítulo "Resgate de uma História", ela terminou o texto falando dos momentos posteriores à entrada no bar e ressaltando mais uma das características da visão libertária e não hierárquica do grupo:
Rosely fez discursos em várias cadeiras. É bom deixar claro que ela não é e não quer ser líder do grupo, pois lutamos contra a hierarquia e o poder; algumas militantes do grupo ainda lutam contra o medo de se exporem publicamente.
Por acreditar nessa democracia, sem lideranças, sem vanguardas e sem elites, é que continuamos a lutar para que todas as lésbicas se expressem e lutem por seus direitos. À maneira de cada uma. Acreditando em nossa autonomia individual, mesmo que participando dos mais diversos grupos. 
E acrescenta a perspectiva contracultural da politização do cotidiano ainda bem presente no início do movimento:
A militância pela democracia não se restringe aos trabalhadores, seus sindicatos e seus partidos políticos, mas se estende ao cotidiano: às ruas, aos bares, às escolas, ao trabalho, às camas, aos jardins, aos mercados. Em suma, ao dia a dia mais "corriqueiro e banal" de todas(os) cidadãs(ãos). 
Por fim, Vanda fala da repercussão do happening político para o GALF e do papel das lésbicas na luta pelas mudanças sociais:

A repercussão do “happening” político do Ferro’s abriu espaços sociais para o GALF em dois sentidos. Entre as lésbicas, muitas vieram participar do grupo. As que ainda não querem militar já leem nosso boletim com outros olhos e discutem mais conosco.  
 
Nessa luta em constante movimento e transformação, as lésbicas têm um papel importante a desempenhar. Desde Safo - poetisa grega que fez alguns dos mais lindos versos de amor pelas mulheres e que, vivendo na ilha de Lesbos deu origem a palavra com qual orgulhosamente nos denominamos - as lésbicas não tiveram voz e foram oprimidas. O resgate dessa história, dos versos perdidos em livros malditos, dos beijos que nunca puderam ser dados à luz do dia, do amor que nunca pode ser declarado à amiga com medo de perdê-la para sempre. Tudo isso e muito mais faz hoje nossa alegria de viver e de lutar.
Fazendo Poesia (p. 4) 

Em Fazendo Poesia eu convocava as leitoras a escrever para a seção a fim de mostrar como era bonito, sensual, gostoso, ótimo amar uma mulher.

E, nesta edição, as moças fizeram jus à convocação com versos super-românticos como:
"faça dos teus olhos sempre meu espelho/deixe que a noite traga uma canção/deixe que eu te guarde no meu coração. (Ana Marina)
Ou no poema "Canto à Mulher" onde a autora compara a amada à própria vida em suas contradições de alegria e tristeza, paz e ira, amor e ódio e termina traduzindo-a como "Tu és o movimento. A vida."

Ou nos versos de Maria Estella: 
E eu amando./Você existe./E na minha vida existe seu sorriso, seu jeito, seu tudo.

Ou em versos levemente eróticos e irônicos, como no meu poema Flor de Lírio, já que a flor de lírio, embora também ligada ao romantismo, ao amor puro e inocente, é igualmente usada, em forma de chá, como uma droga potente. 

Ou dos versos em tom blasé de Vange Leonel, em Rocha Kármica, onde ela declara que apesar de ter sido uma pedrinha em seu sapato a musa merecia agradecimento:
Eu agradeço a você por você ter sabido ser uma grande pedra/Eu agradeço a você por você ter gravado e sangrado a obra/eu agradeço desobrigada e feliz.

Por fim, contrastando com as outras poesias, o poema Máscara, onde a autora lamenta, em boa síntese, a dor de não ter coragem de amar as mulheres que tanto queria amar. 

Autonomia (p. 5 a 8)

Se Freud e Marx vivessem hoje em dia

Neste texto, que ilustrei com a charge "Se Freud e Marx vivessem hoje em dia", Rosely Roth aprofunda algumas das declarações feitas por Vanda Frias, em seu texto sobre a manifestação do Ferro's, quanto à autonomia dos movimentos sociais em relações aos partidos políticos e à politização do cotidiano, sendo a questão da autonomia tema importante do MHB em seus primeiros anos, como já relatei. E a questão da politização do cotidiano outro tema importante trazido pela Contracultura que, mesmo em seus últimos suspiros, ainda influenciava bastante os grupos homossexuais do período, não por menos o ciclo do nascimento do MHB até 1984 ser chamado de "ciclo libertário".

Vale lembrar que a Contracultura foi um enorme guarda-chuva de movimentos, ideias e manifestações, onde o neorromantismo e o socialismo libertário tiveram destaque, com grande questionamento do chamado sistema: estado, escola, família, Igreja, partidos, academia, tecnocracia, militarismo. A política tradicional de esquerda, focada na luta de classes, tomada de poder, ditadura do proletariado, também sofre enorme questionamento da Contracultura, pois, além do óbvio autoritarismo, não abordava as questões pulsantes da época: os direitos de mulheres, negros, homossexuais, muito menos o ambientalismo, o filho dileto da Contracultura. Frases nos muros das ruas de Paris, durante o icônico Maio de 68, feitas por estudantes influenciados pela Internacional Situacionista, exemplificam o que digo:
"Abaixo o realismo socialista. Viva o surrealismo."; "Autogestão da vida cotidiana."; "A arte está morta, liberemos nossa vida cotidiana." "Teremos um bom mestre desde que cada um seja o seu".

Esses dois temas, a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos e o da politização do cotidiano são onipresentes no texto de Rosely e norte do GALF do período. Sobre o tema da autonomia em relação aos partidos políticos, ela vai questionar a chamada "dupla militância", muito comum no movimento feminista do período, mas não tanto no de gays e lésbicas. Interessante observar que a matriz do MHB é puramente contracultural enquanto a do Movimento Feminista do período, embora tingida pelas cores da contracultura, era híbrida, já que muitas de suas pioneiras vinham da esquerda tradicional, inclusive gente remanescente da luta armada. Essas mulheres se alinharam ao PMDB e ao PT da época, e as disputas político-partidárias entre elas travavam o encaminhamento das questões específicas das mulheres. No caso do MHB, houve um rechaço praticamente total aos elementos da Convergência Socialista que tentaram desde os primeiros momentos do movimento atrelá-lo a suas teses e ao incipiente partido dos trabalhadores.

Sobre a dupla militância, Rosely afirma em seu texto: 

Existe uma posição, bastante difundida, de que não há nada demais em se estar ao mesmo tempo em um partido e num grupo autônomo e de que uma coisa não exclui a outra. Várias defensoras desta posição acham que estar nos partidos, não as impede de serem "autônomas” e de pregarem a autonomia para o movimento de mulheres. Elas colocam que devemos separar os objetivos do movimento de mulheres daqueles dos partidos aos quais as mulheres se incorporaram. Isto na prática mostrou-se inviável, já que as mulheres se dividem, se enfraquecem por causa das suas posições partidárias, como ocorreu antes e durante as eleições de novembro (isto acontece ainda hoje). Como se daria esta separação entre os objetivos do partido e os do movimento? Nos partidos exercer-se-ia a política tradicional e nos grupos se tentaria questionar esta política e reinventá-la? Outras colocam que se não levarmos para os grupos as posições partidárias, tudo se ajeita. Mas um partido tem um programa e um projeto para quase todas as questões.

Sobre os partidos, a politização do cotidiano e os movimentos sociais como novas formas de fazer política, não apenas como lobbies de reivindicação de direitos para grupos discriminados, ela declara:

A experiência histórica dos países socialistas demonstrou até agora o fracasso dos partidos, da ditadura do proletariado ou sobre este. O que ficou claro é que um canal que reproduz valores opressivos não pode construir uma sociedade não opressiva. [...]
É neste sentido, como consequência desta desilusão, que surgiram os movimentos alternativos em 70. Foi uma desilusão positiva, pois o descrédito quanto aos partidos não gerou alienação, inércia, morgação, mas propostas como a da organização de grupos de mulheres homossexuais e ecologistas: cujas discriminações (juntas com as dos negros), até então tinham sido consideradas menores pela política oficial dos sindicatos e dos partidos legais e clandestinos. Estes grupos tinham, como proposta inicial, procurar reinventar a política. A política tradicional, até então, separava o privado do público: o presidente de um partido poderia se considerar altamente revolucionário e ser um ditador com a mulher e os filhos. (“Aquele que fala de revolução sem mudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver” —inscrição de Strasbourg durante maio de 1968.) Uma revolução radical deve começar no nosso cotidiano, já que cada ato executado envolve uma parte da nossa concepção e perspectiva de vida, cada ato pode conter também relações de poder.
Penso que os grupos surgiram como alternativas políticas, tentando não reproduzir em seu meio a política tradicional. Isto significou trazer a questão das mulheres, dos homossexuais, negros e ecologistas, como questões políticas diretamente ligadas aos valores e padrões patriarcais, ao funcionamento opressivo da sociedade. O orgasmo, o prazer, passaram a ser conquistas a serem feitas no dia a dia. A revolução deixou de ser mito, algo para poucos iluminados de uma vanguarda, mas passou a ser algo que deve ser construído no cotidiano.

Outra questão importante é que os partidos visam a tomada do poder. Tomar o poder para exercê-lo de forma diferente. Creio que toda autoridade (título dado a algumas pessoas que, segundo a educação por nós recebida, devem ser respeitadas e aceitas passivamente) é ridícula, mitos de nossas inseguranças, transferências para outro do que nós mesmas podemos fazer e não fazemos. A questão não é tomar o poder e sim dispersá-lo, descentralizar, para que não haja o poder de uns sobre outros. A autogestão política, econômica, social e cultural da sociedade, feita por todos os seus membros. Mas para isso acontecer é necessário que uma grande parte da população acredite na sua própria capacidade de decisão e não delegue a sua vida para outros. Os partidos também são formas de se delegar as coisas.
Vale salientar que Rosely era, de todas as integrantes do GALF, a que mais tinha formação libertária, tendo inclusive participado de coletivos anarquistas antes da militância lesbofeminista. Embora me considere libertária até hoje, tanto do ponto de vista moral (desde que não afetem a vida alheia, os indivíduos têm o direito à autodeterminação de suas vidas) quanto político, no aspecto de quanto menos estado mais poder para os indivíduos, não tive participação em grupos anarquistas. Fora isso, o texto de Rosely é pertinente não só como um manifesto político de suas ideias, que não permitem ligá-la à política tradicional muito menos a partidos, como também como um retrato das ideias ainda presentes no movimento homossexual do período. Sem falar que sua visão sobre os partidos permanece atualíssima (ver aqui ou no original). Infelizmente, toda a preocupação com a autonomia do MHB se perdeu progressivamente nos anos 90, com o movimento se descaracterizando e virando inclusive correia de transmissão da velha esquerda.

Obviamente, esse período histórico é totalmente distinto da realidade atual. Naquela época, predominava ainda a mentalidade libertária, inclusive porque estávamos saindo de um regime de exceção, e as palavras de ordem eram "pelas liberdades democráticas", "Diretas Já", pelo fim da censura. Hoje, vivemos às voltas com reciclagens tanto das velhas extremas esquerda e direita e suas ideias mofadas quanto da mentalidade autoritária inclusive entre os movimentos sociais agora pautados nas irracionalidades da esquerda pós-moderna, identitária, e sua fragmentação da humanidade em categorias cada vez mais estanques, em eterno conflito, e numa aversão à liberdade de pensamento, de expressão e até de reunião e associação. Tristes tempos.

Depoimento 3 (p. 9 a 10)

No boletim CCC 3, tivemos os depoimentos de Rosely Roth e Célia Miliauskas, este último referido pela autora como peça publicitária do GALF. Neste CCC4, foi a vez de Elisete Neres, recentemente falecida, contar sobre suas idas e vindas ao grupo e sua dificuldade em se assumir como lésbica. E também de convidar outras lésbicas a integrar o grupo sobre o qual tece vários elogios. Interessante observar como a palavra lésbica era estigmatizada naquele período.


Elisete deixou o grupo para tentar se entender com a própria sexualidade.


O afastamento, no entanto, não a ajudou a resolver seus conflitos, e ela retornou ao GALF:


Duro foi se aceitar como lésbica:



Encarando seus receios, Elisete passou a assumir o GALF com afinco:


Elisete termina fazendo elogios ao grupo (destaco um pedacinho) e dizendo que esperava que seu depoimento ajudasse outras lésbicas, como Sandra Mara Herzer (que se suicidara em 1982) e outras lésbicas que tinham dificuldades em se assumir.

Elisete Neres faleceu em outubro de 2021 devido a problemas do coração. Além de ter atuado no GALF e participado do happening do Ferro's ainda fundou o Grupo Gaúcho de Lésbicas-Feministas que, como todos os poucos grupos lésbicos da década de 80, teve vida breve.


Fim de caso (p. 11 a 14)

Entrevista do GALF, com o diretor Tom Santos e a atriz Inês Maria, sobre a peça Fim de Caso, transcrita por Maria Luiza que, posteriormente passaria a assinar como Luiza Granado, em sua primeira contribuição para o CCC.

Nesta entrevista, o GALF questiona incisivamente o diretor e a atriz da peça por apresentarem apenas casais de mulheres estereotipados, onde as relações reproduziam o casal heterossexual tradicional (homem dominante-mulher submissa), relações de exploração entre mulheres e casais problemáticos.

É preciso situar historicamente esta análise. Em 1983, a visão da sociedade brasileira sobre as lésbicas era ainda bem negativa e sensacionalista. Lésbicas apareciam na mídia, na imprensa marrom, fundamentalmente em registros de mortes passionais. Aliás, o happening do Ferro's marca uma das primeiras abordagens positivas das lésbicas na mídia de então. Em filmes e peças de teatro, sempre as relações lésbicas eram muito sofridas, problemáticas e não raro terminavam na morte de uma das integrantes do casal. Obviamente, as relações entre mulheres podem conter todos esses elementos negativos, como quaisquer outras relações humanas, mas, no caso das lésbicas, só essas visões apareciam, reforçando o caráter de marginalidade da homossexualidade no período.  

Isso explica o intenso questionamento que o grupo fez da peça junto a seu diretor e uma de suas atrizes. Em outro contexto, talvez da década de 90, por exemplo, quando outras imagens menos estereotipadas das lésbicas começaram a surgir, a pegada dessa entrevista fosse mais leve. Ao final da entrevista, Maria Luiza destaca:



A função do homossexual na sociedade (o porquê da repressão) (p. 15)

Texto de Célia Miliauskas sobre a heterossexualidade obrigatória. Nele, a autora apontava que o preconceito e a discriminação contra homossexuais derivavam da ousadia de gays e lésbicas em romper com o padrão mais forte e enraizado na sociedade: a heterossexualidade normativa. Ruptura maior ainda das lésbicas, por sua dupla discriminação como mulheres e homossexuais, que negavam a centralidade do falo para procurar a felicidade erótico-afetiva com outras mulheres. Segue o trecho:

Hoje esse discurso é tão recorrente que já se tornou indigesto, mesmo porque misturado até paradoxalmente com a reprodução de papeis de gênero, viga mestra de sustentação do patriarcado. Em 1983, porém, era pra lá de inovador. E considerado radical pelo feminismo de período.

Informes

"Informes" era a seção de notícias curtas sobre as atividades e conquistas dos movimentos homossexual e feminista de então. As notícias eram baseadas nas cartas e publicações que recebíamos do Brasil e do exterior, me demandando um especial trabalho de edição e tradução. Posteriormente, renomeei essa seção como "Em Movimento", título que permanecerá inclusive nas publicações que editei posteriormente como o boletim e a revista Um Outro Olhar.

Neste número, ressalta-se a mudança de mentalidade da sociedade brasileira sobre a homossexualidade que começa a não ser mais vista como doença. 

Movimento Feminista e Saúde das Mulheres

Tentando rearticular o MF, lesado pelas disputas político-partidárias de 1982, feministas paulistas vinham, desde maio de 1983, se reunindo para debater o recém-criado Conselho Estadual da Condição Feminina e outras questões voltadas para os direitos das mulheres. Em agosto, reunidas na Assembleia Legislativa, elas apresentaram um resumo de várias propostas sobre saúde das mulheres desde a puberdade a menopausa. Essas propostas abrangiam programas governamentais, propostas de leis e perspectivas de luta de curto e médio prazo.

Saúde das Lésbicas

Entre os documentos apresentados na reunião dos grupos feministas, citado acima, constava um documento do GALF sobre saúde lésbica e sobre o parágrafo 302.0 que rotulava a homossexualidade como desvio e doença mental. Registrei que era a primeira vez que a saúde lésbica era contemplada num documento sobre a saúde da mulher. Segue trecho:


Contra o 302.0

Nota sobre as articulações da deputada estadual (PMDB) Ruth Cardoso e da vereadora Irede Cardoso (PT) para aprovar moções de repúdio ao parágrafo 302.0 da Classificação Internacional de Doenças que rotulava a homossexualidade como desvio e doença mental e ainda era aplicado no Brasil. As articulações para retirada desse parágrafo, em 1983, já abrangiam outros estados e colhiam milhares de assinaturas por seu fim. Na prática, o código ainda era aplicado para possibilitar a internação de gays e lésbicas em clínicas psiquiátricas para supostas curas. 

Debate na Associação Paulista de Medicina (APM)

Participação do GALF e do Outra Coisa em mesa redonda da APM sobre o tema "Homossexualismo: diagnóstico médico ou não" com médicos, psiquiatras em particular, psicólogos, sociólogos, antropólogos e jornalistas. Como resultado, os dois grupos ficaram de preparar documento sobre o já citado 302.0 a fim de enviá-lo a Associação Brasileira de Psiquiatria que deveria se pronunciar sobre o assunto. Entre os participantes desse debate, todos consideram o citado código uma aberração.

Debate com a Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (ASEP)

Em 13 de agosto, integrantes do GALF (6) e do Outra Coisa (2) participaram do debate "Discriminação e Violência", na USP, promovido pela ASEP. Como saldo, a coordenadora do debate Tereza de Augusto Marques Porto se comprometeu a aprofundar os pontos debatidos junto à associação e a passar a chamar as ditas minorias pelo verdadeiro nome: grupos discriminados.

Deu na Imprensa

Registro da nota do jornal feminista Mulherio sobre a manifestação do Ferro's Bar e sobre carta do GALF, respondendo a texto preconceituoso de Marta Suplicy, intitulado Gay Feminino que foi publicada na edição de 04 de setembro de 1983 do Suplemento Feminino da Folha de São Paulo.

Homossexuais informam sobre a AIDS

Nota que dá conta da chegada da AIDS entre os gays brasileiros. Dois integrantes do MHB, Cacá e Antonio Carlos, produziram um texto explicativo de 10 páginas sobre a síndrome, com aval da médica Valéria Petri, onde também constavam endereços onde as pessoas poderiam se consultar em São Paulo. O texto estava sendo divulgado pelo Outra Coisa. Importante registro dessa epidemia que muito contribuirá, junto com a discussão bizantina sobre a identidade homossexual, para o grande refluxo do MHB, levando os gays para os grupos de prevenção à Aids que iriam se formar nos anos seguintes.

ADÉ-DUDU convida

Grupo de gays negros ligados ao Grupo Gay da Bahia (GGB) que informava sobre encontro que pretendia organizar em Salvador, em outubro de 1983, para discutir a crise do MHB. Nessa nota, eu informo que seria melhor o encontro ser adiado para janeiro de 1984, época de férias, o que possibilitaria a ida de mais integrantes do GALF e do Outra Coisa para o evento. Como já disse em vários resgates que venho fazendo da história do movimento, a partir da perspectiva da organização lésbica, o MHB que começara tão promissor, a partir de 1979, começa a declinar já em meados de 81 e foi minguando a ponto de os grupos poderem ser contados nos dedos de uma mão até 1985. Em São Paulo, o canto do cisne do ciclo libertário será a manifestação do Ferro's que reuniu, pela última vez, remanescentes do Somos. inseridos no GALF, Outra Coisa e no Somos pós-racha. Logo em seguida o SOMOS fecha as portas e, no início de 84, também o Outra Coisa. 

Pintando um novo grupo

Reprodução de carta de um pessoal do Rio Grande do Norte que buscava formar um grupo de defesa de direitos de homossexuais em Natal e solicitava nossa orientação. Enviamos material para eles. 


Cartas

Nas cartas dos leitores, duas se destacam pelos dados históricos que apresentam.

Primeira, a de Huídes, integrante do GGB, informa que, segundo o grupo feminista Brasil Mulher, o GALF era um dos únicos grupos de lésbicas no país e mais articulado. No segundo semestre de 1983, O GALF já era provavelmente o único. As cartas são referentes ao CCC3


A outra, de João Antonio Mascarenhas, que viria a formar o Triângulo Rosa, elogiando o boletim CCC e meu texto sobre a história do GALF.


Mascarenhas também questiona meu uso do termo "bicha" no masculino. Na minha resposta digo que tem a ver com o fato de gays serem homens de qualquer forma, mas a razão principal era mesmo o fato de os gays do Somos se autodenominarem "os bichas" como forma de esvaziar a conotação negativa que a palavra tinha à época. Eles assim se chamavam e, por um bom tempo, nós adotamos o termo. Depois, o período jocoso foi embora, e o termo desapareceu.

Notas e avisos (p. 10 e 14)

Esta edição do CCC conta também com uma nota e um aviso. A nota se encontra na pág. 14 e é a reprodução de um poema da Sara Mara Herzer que se suicidara em 82. A reprodução do poema, tirado de seu livro A Queda para o Alto, foi uma homenagem, como escrevi, a sua vida desesperada e cheia de rebeldia. 

O aviso se encontra à página 10, convidando as lésbicas brasileiras a participar de uma antologia de relatos de mães lésbicas para, entre outras coisas, combater a ideia de que mães lésbicas não existiam. Segue trecho:

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