Míriam Martinho e Rosely Roth barradas no Ferro's Bar em 19/08/1983 |
Há 40 anos, oficialmente no dia 17 de outubro de 1981, eu fundava, com Rosely
Roth e colaboradoras, o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF),
estatutariamente sob o codinome de Grupo Ação de Liberação Feminista. O registro do grupo como feminista, preservando a
sigla “GALF”, visava evitar problemas com os cartórios (que costumavam
dificultar o registro de grupos de gays e lésbicas na época) e pragmaticamente
atender nossas necessidades de abrir conta em banco, ter uma caixa postal,
receber dinheiro via vale postal e outras formalidades. Visava também
proteger as lésbicas que nos escreviam
(a maioria no armário), caso tivessem que escrever o nome do grupo por extenso.
O grupo ficaria incomunicável, entre a maioria das sapatas da época, se usasse
a palavra lésbica para esses trâmites institucionais. Outros grupos do período
encaravam o registro no cartório até como parte da luta homossexual, mas nós
avaliávamos que, na relação custo-benefício, não valia o custo. Além disso,
para uma organização que vendia um boletim com o nome “Chanacomchana”,
assumir-se no cartório era o de menos.
Neste resgate, retomo partes do texto 19 de agosto: há 38 anos o GALF invadia o Ferro’s Bar,
onde já abordara a trajetória do GALF, mas trazendo novos dados e
esclarecimentos sobre a hoje histórica e muito mistificada sigla. Neste
texto, busco em particular desconstruir um pouco essas mistificações. Para tal,
entre outras coisas, divido a trajetória do GALF em dois períodos: do início em
outubro de 81 até meados de 1985 e de meados de 1985 até seu final em 1989
(oficialmente em março de 1990).
O período inicial do GALF (10/81 a 08/ 85) corresponde à fase em que a organização
adota o histórico do coletivo que o precedeu, o Grupo Lésbico-Feminista(05/1979-06/1981),
divide sedes com o grupo gay Outra Coisa de Ação Homossexualista e inicia a
produção do boletim ChanacomChana a partir de dezembro de 1982, além de
promover a hoje célebre invasão do Ferro’s Bar. Também é o período em que o
grupo tentou sem sucesso fazer com que o Movimento Feminista incorporasse a
questão lésbica à sua agenda oficial.
O segundo período, de meados de 1985 a 03/1990, corresponde ao fim da
identificação do GALF com seu predecessor LF (pela constatação de que de
fato não houvera uma continuidade real entre os dois coletivos); à perda
das sedes públicas (as reuniões do grupo passaram a ocorrer em meu apartamento);
à maior divulgação do grupo, em particular pelas aparições de Rosely Roth na
mídia impressa e televisiva, à aproximação com o incipiente movimento lésbico
internacional, à participação em encontros lésbicos internacionais e ao
progressivo distanciamento do movimento feminista que culminaria com o fim da
própria organização.
Nos seus primeiros 3 anos e meio aproximadamente (de outubro de 1981 a meados
de 1985), o GALF vai adotar a trajetória do Grupo Lésbico Feminista (LF),
coletivo que o precedeu, fato observável nos históricos que eu mesma redigi nos
boletins ChanacomChana até sua oitava edição (agosto de 1985). Como hoje
existe muita fabulação sobre o GALF, com gente se dizendo integrante do mesmo
sem nunca ter sido, vale aprofundar esse tema, esclarecendo a parte que
possivelmente nos toca nessas mistificações.
A incorporação da trajetória do
Lésbico-Feminista ao histórico do GALF, em seus primeiros anos, se deveu a uma
somatória de fatores, entre simplórios e surreais, que criou uma ilusão de
continuidade em nossas cabeças: a sede que Rosely encontrara, no centro de São
Paulo (Praça da República), onde também nos conhecemos, ter sido pensada para o
lésbico-feminista (que morreu na praia); eu e Rosely termos vindo, a partir de
momentos distintos, desse coletivo; o tempo que separava o fim do LF do início
do GALF ter sido ínfimo (em torno de 4 meses) e, sobretudo, nossa decisão de continuar
com um grupo específico de lésbicas em vez de submergir nossa identidade em
alguma identidade feminista genérica (lero muito em voga na época). Fora também
algum sentimentalismo barato pelo fim do coletivo
anterior.
Vendo em perspectiva, deveríamos ter deixado o Lésbico-feminista morrer em paz
em vez de ter-lhe dado uma sobrevida artificial de três anos e meio. Deveríamos
ter fundado um outro grupo lésbico-feminista, mas com nome bem distinto do
anterior, já que eu e Rosely estávamos também iniciando uma interação (não
estivemos juntas no LF). De qualquer forma, o GALF só vai ter três assinaturas
e uma única identidade: a do cartório, Grupo Ação de Liberação Feminista, Grupo de Ação Lésbico-Feminista
(como aparece nos dois primeiros números do Chana, 82-83) e Grupo Ação
Lésbica-Feminista de maio de 1983 em diante (como pode ser constatado nos editoriais e pequenos expedientes dos boletins Chanacomchana e Um Outro Olhar.
(CCC 3, p.1-2) |
Só a partir de meados de 85, nos cai de vez a ficha de que a suposta
continuidade entre os dois coletivos não só nunca existiu de fato como, ao
contrário, na verdade, o que houve foi ruptura entre ambos, ruptura e
abandono. A maioria das lésbicas que participou do lésbico-feminista ou
deixou a militância ou se meteu no armário do heterocêntrico movimento
feminista do período, algumas inclusive agindo paradoxalmente como agentes de
invisibilização lésbica. Em consequência, já nos ChanascomChana de 9 a 12, cessam
os históricos do GALF, onde aparecia incorporada a trajetória do LF (nos
números 11 e 12 do Chana
desaparece inclusive o logo LF), processo que continua nos boletins Um Outro
Olhar, do número 1 ao número 10, também publicados pelo GALF.
Vale salientar outros aspectos distintivos entre os dois coletivos como o contexto
em que se desenvolveram e sua composição. O Grupo Lésbico-Feminista, surge, a
princípio, como um subgrupo do grupo Somos, em maio de 1979, e sofre grande
influência deste em seu perfil. Vai ser, em seu breve tempo de existência, um
grupo fundamentalmente de socialização e
pegação com um núcleo de militância. Nesse sentido, chegou a ter umas 30
mulheres circulantes, mas com no máximo 10 delas tendo algum ativismo real. Vai
emergir no momento de ascensão do primeiro ciclo do movimento homossexual no
Brasil, de 79 a 80, ainda sob os
eflúvios contraculturais, e desaparecer com o início do refluxo desse movimento
em meados de 81. As polêmicas que enfrentou foram relativas a seu posicionamento
no racha do Somos (Lampião, n. 25, p. 8), ao tema da autonomia do movimento homossexual frente às
tentativas de cooptação da esquerda ortodoxa (Convergência Socialista) e ao
impacto de sua entrada no heterossexista movimento feminista do período. Era um
coletivo mal alinhavado, muito anárquico, que não conseguiu adquirir
consistência para sobreviver mais do que dois anos. Apesar de haver mantido uma
única identidade natural, Grupo Lésbico-Feminista (LF), caracterizou-se por ter
mais assinaturas do que tempo de vida, incluindo uma que excluía o termo
lésbico (sic). Foi logo absorvido pelo movimento feminista.
A propósito da questão da assinatura sem o termo "lésbico", no texto Ai, que São Paulo gostoso..., de Leila Míccolis, publicado no Lampião da Esquina 22 (03/1980), p.3, sobre a segunda reunião organizadora do I Encontro Brasileiro de Homossexuais (03/02/1980 em SP), lê-se o seguinte:
Com exceção do BEIJO LIVRE (Brasília) e do GAAG (Rio), todos os demais grupos se fizeram representar: ATUAÇÃO FEMINISTA/SP (Déa e Conceição) AUÊ/ RIO (Leila e Marcelo). EROS/SP (Luis Antônio e Luzia). LIBERTOS/GUARULHOS (Magal e José). SOMOS/RIO (João Carneiro e Yone), SOMOS/SP (Emanuel e Jimmy). SOMOS/SOROCABA (Hilário e Fran).
No mesmo artigo, Míccolis também explica quem era o tal Atuação Feminista-SP, ninguém mais do que o camaleônico Grupo Lésbico-Feminista em mais uma de suas inúmeras assinaturas.
No domingo, o tempo de uma hora estipulado para o almoço teve de ser um pouco ampliado, pela demora de atendimento nos barzinhos da 14-Bis. Eu e algumas pessoas do Auê ficamos com a turma da Atuação Feminista. ex-Lésbico Feminista (tiraram o "lésbico" por repercutir de forma muito violenta entre as pessoas).
〰
O GALF, por outro lado, já começou como um grupo autônomo, tendo seu registro em cartório como ponto de partida. Vai se desenvolver no período de esvaziamento do movimento homossexual que se inicia em meados de 81 e se mantém por toda a década de 80. Sempre foi um grupo pequeno, com uma média de 5, 6 integrantes durante sua longa trajetória, e com um perfil fundamentalmente de estudo e militância. Nada do clima “relações abertas, sexo, drogas e rock’n´roll” característico do LF, ainda que também tenha formado namoradas em seu tempo de existência. Perto do LF, o GALF era careta, felizmente. Conseguiu obter a consistência necessária para sobreviver cerca de longos 8 anos e meio, sobretudo em função da produção e venda dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar. Como desafios, enfrentou o questionamento da identidade lésbica-homossexual que levava inevitavelmente à desmobilização política, o heterossexismo do movimento feminista que hostilizava a politização das questões lésbicas, a perda das sedes públicas, no início de 1985, e o esvaziamento do movimento homossexual. Foi um coletivo de resistência e vanguarda (num contexto particularmente adverso) que o movimento feminista nunca conseguiu deglutir. E, como já dito, teve apenas uma identidade fundamental: Grupo Ação Lésbica Feminista.
Destaques da linha do tempo da primeira fase do
GALF (10/81-08/1985):
Com o Movimento Homossexual do período, sobretudo na
parceria com o grupo gay Outra Coisa, o GALF desenvolveu várias atividades, com
destaque para:
jun. de 82 (com o Outra Coisa): “Viva a Homossexualidade” (debates sobre
feminismo e lesbianismo e política e desejo; exibição dos filmes “O homem que
deu cria” e “Trotta” na sede dos dois grupos. E debate sobre “homossexualismo e
partidos políticos” no Teatro Ruth Escobar).
ago. de 82: encontro com o psicanalista e filósofo Félix Guattari na
sede do GALF-Outra Coisa.
05 de abril de 1983: Encontro com o Secretário de Segurança de São Paulo, Manoel Pedro Pimentel, onde reivindicou um tratamento menos preconceituoso das forças de segurança em relação a gays e lésbicas, repetindo a reivindicação já feita ao governador.
23 a 29/05/1983: Debate sobre Autonomia e os Grupos Alternativos com representantes de grupos homossexuais, de feministas e negros. Mostra de arte gay e lésbica; exibição dos vídeos “A Dama do Pacaembu” e “A Mulher de Barba”, de Rita Moreira, e do filme alemão “Henrique”. Festa no Teatro Ruth Escobar
Integrantes do GALF que participaram da manifestação do Ferro's Bar (exceto Liete e Maria Rita) |
Elisete Neres foi uma das integrantes do GALF que participou da manifestação do Ferro's Bar e acaba de partir. R.I.P. |
Agosto de 1983
Com o Movimento Feminista do período, o GALF participou de várias atividades, tais como:
março de 1982 – participação no 8 de março, Dia Internacional da
Mulher, com venda de camisetas, distribuição do tabloide ChanacomChana 0 e um
texto sobre a data. Também interferimos para que se colocasse uma cena sobre a
violência contra lésbicas no teatrinho que o grupo SOS-Mulher apresentou no
evento.
início de maio de 1982 – participação no intitulado “happening” do
Ibirapuera, onde o grupo montou uma barraquinha para vender camisetas, livros e
frutas anunciadas com plaquinhas que diziam “coma uma frutinha para transar com
sua vizinha” ou “o enrustimento mata“.
julho de 1982 - participação no IV Encontro Nacional Feminista,
Campinas, São Paulo
abril de 1983 – Intervenção
num debate sobre Sexualidade e Violência, do grupo SOS Mulher, ocorrido no
Sindicato dos Jornalistas, onde entramos de máscaras, para simbolizar a
situação da mulher homossexual, e distribuímos o texto intitulado Sobre
Violência, onde conclamávamos o movimento feminista a também defender as
lésbicas.
Destaque do GALF não relacionado diretamente ao movimento homossexual ou feminista (vale salientar que a participação do GALF em encontros, congressos, simpósios, etc., foi intensa. Aqui registrei só alguns eventos).
ChanascomChanas: produzi e editei neste período 8 edições do ChanacomChana, a saber:
Dez. 82 - publicação do CCC 1
Fev. 83 - publicação do CCC 2
Maio 83 – publicação do CCC 3
Set. 83 – publicação do CCC 4
Maio 84 – publicação do CCC 5
Nov. 84 – publicação do CCC 6
Abr. 85 – publicação do CCC 7
Ago. 85 – publicação do CCC 8
GALF segunda fase (08/85 até 1989): Separando o Joio do Trigo, tornando-se nacional e internacional
"Não sofra calada", Míriam Martinho, 08/07/1982 - Crítica ao grupo feminista SOS-Mulher |
“Do palco aos bastidores – O SOS-Mulher (SP) e as PráticasFeministas Contemporâneas”, p.143 |
Outras que haviam deixado o lésbico-feminista e sumido do mapa, como as citadas
Marisa Fernandes e Vilma Monteiro, embora não fossem hostis à organização
lésbica, como as do finado SOS-Mulher, também aderiram ao “clube das comadres
feministas homossexuais do armário político” e faziam de conta que a questão
lésbica não era mais com elas.
Como poderia então o GALF que pregava postura exatamente oposta à dessas
mulheres ter algo a ver com elas? Algo de errado não estava mesmo certo, e
vimos que era hora de acertar os ponteiros do relógio. Num histórico sobre o
Chanacomchana, provavelmente do final de 86 (pois Rosely começara a aparecer em
programas de TV, no final de 1984), enviado às associadas do GALF, eu dizia:
[...] Nos últimos dois anos, em consequência da divulgação do trabalho do GALF,
através da televisão e de alguns jornais, o ChanacomChana vem se tornando mais
conhecido das lésbicas brasileiras, tendo se expandido para outros estados além
de São Paulo. Por meio de sua publicação, temos podido conhecer mais da nossa
própria realidade, enquanto lésbicas, e podido reorientar nossas abordagens
para melhor adequá-las a nossas vivências.
No início desse histórico do Chana, eu afirmava,
fazendo a já bem atrasada retificação:
ChanacomChana foi publicado, pela primeira vez, em janeiro de 1981, como um
pequeno jornal, pelo coletivo que compunha o Grupo Lésbico-Feminista
(1979-1981). Nesse mesmo ano, também foram feitas outras tentativas de editar
um novo número do jornal, então com a participação de mulheres de outros
grupos, mas a divergência de ideias quanto à linha de publicação a ser seguida
levou ao abandono do projeto. Ainda em 1981, o próprio Grupo
Lésbico-Feminista desmobilizou-se, sendo que a maioria de suas integrantes
deixou de atuar politicamente. Das que continuaram militando, algumas partiram
para atividades em outros grupos feministas enquanto outras, entre as quais me
incluo, decidiram dar continuidade a um trabalho especificamente lésbico.
Demos o nome de Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) a essa nova fase de atuação
onde passamos a enfatizar mais a leitura de textos e a desenvolver ações
voltadas também para lésbicas não-feministas.
Destaques da linha do tempo da segunda fase do GALF
(08/85 até 1989):
segundo semestre de 1985
Aproveitando a abrangência que o grupo adquiriu, graças a sua divulgação pela
mídia da época, o GALF iniciou seu sistema de associação, forma de arrecadar
fundos junto às lésbicas oferecendo informativos com serviços de correspondência
pessoal, guia de bares e boates, históricos do CCC e do GALF, endereços de outros
grupos de gays e lésbicas, indicações de livros (cópias do mesmos inclusive) e
programação de eventos públicos da organização. Nesse momento, o CCC ainda era
vendido separadamente da associação, o que mudará em 1988.
Manifesto pelo Asilo Político de Lésbicas de todos os países - ILIS |
Abril de 1986 – Segunda participação de Rosely Roth no programa da Hebe Camargo para debater “homossexualismo feminino” em 29/04/1986.
7-8 de agosto de 1986 – Participação no 8º Encontro Nacional Feminista com uma oficina sobre lesbianismo que foi a mais concorrida do encontro. 92 mulheres apareceram ao evento, apesar da oficina “misteriosamente” não constar da programação do encontro no dia previsto para sua realização. As lésbicas presentes à reunião solicitaram reuniões só de lésbicas para próximas oficinas, o que nos pareceu importante com vistas à criação de uma futura rede lésbica nacional, o que poderia levar a encontros estaduais e nacionais na perspectiva da criação de um movimento lésbico autônomo.
O GALF terminou em função do esgotamento de seu ciclo de ativismo junto ao Movimento Feminista. Ficou claro para suas integrantes o quanto era contraproducente levar as lésbicas para o feminismo e, ao mesmo tempo incentivá-las a sair do armário, quando o próprio Movimento Feminista impunha a despolitização das vivências lésbicas empurrando-as para o terreno do privado, da chamada “opção sexual”. Nada incomum, no período de existência do GALF e até na década de noventa, encontrar grupos feministas formados majoritariamente por lésbicas, mas exclusivamente referentes às chamadas questões de gênero, ou seja, questões voltadas para a resolução dos problemas das mulheres heterossexuais em seus relacionamentos com homens. Não havia mais porque manter um grupo lésbico-feminista nesse contexto.
Novembro de 1989 - No boletim Um Outro Olhar de número 9, como já
mencionado no início, fiz um balanço da primeira década da organização lésbica
no Brasil, intitulado 1979-1989- Dez Anos de Organização Lésbica no Brasil, onde
resgato sobretudo as atividades do GALF, por ter sido o único grupo lésbico a se
manter atuante por toda a década de 80. Registro também a passagem de
outros grupos e publicações lésbicas da década que, apesar de vida efêmera, não
deixaram de ser uma tentativa válida de organização sapatã. Termino o artigo
dizendo o seguinte:
Este artigo, onde procurei fazer um apanhado da mobilização lésbica na última década, encerra também o capítulo do
GALF, com quem tanto aprendemos e sonhamos, e que será substituído pela REDE DE
INFORMAÇÃO LÉSBICA UM OUTRO OLHAR a partir do início de 1990.
Com ela, esperamos
poder aprimorar os acertos do GALF e eliminar seus erros, tornando-nos uma
organização mais abrangente e participativa. Esperamos, acima de tudo, poder
compartilhar a próxima década, que se anuncia como uma década de volta a
valores mais cooperativos e humanos, com, pelo menos, algum outro grupo
lésbico brasileiro”.
Sigo listando os grupos que DE FATO atuaram pela
questão lésbica na década de 80, fora o lésbico-feminista e o GALF
“OUTROS GRUPOS E
PUBLICAÇÕES
Temos registro dos seguintes grupos e publicações
lésbicas, durante a década de 80:
. Terra-Maria, Opção Lésbica (SP);
. Grupo Libertário Homossexual (BA);
publicava o boletim Amazonas;
. Iamaricumás publicava o boletim de mesmo nome (RJ);
.Terceira Dimensão (RS);
. Grupo Gaúcho de Lésbicas Feministas
(RS);
. Boletim Xerereca (RJ).”
Inclusive listaram, na cartinha surreal, nomes do "clube das comadres feministas homossexuais no armário" como gente que teria feito (sic) a história da organização lésbica, gente que, em sua grande maioria, nunca sequer eu ouvira falar e uns três nomes de integrantes do extinto grupo lésbico-feminista que, como relatei, igualmente se meteram no closet feminista e ainda ficavam nos atacando por não seguirmos seu exemplo alienado. Tiveram inclusive o desplante de colocar o nome da Rosely, que tanto fez em seu breve tempo de vida, ao lado de gente que nunca fizera nada ou quase nada pelas lésbicas. Parece que as bonitas achavam que o fato de treparem com mulheres e militarem no movimento feminista as transformava automaticamente em ativistas lésbicas, mesmo se opondo à politização da lesbianidade.
Cito esse episódio porque, primeiro, ele foi o embrião das tentativas de usurpação e reescritura da história da organização lésbica brasileira que vai aumentar, de 1993 em diante, se desenvolver nas décadas seguintes e continuar até hoje, sempre com o mesmo cinismo, oportunismo e leviandade da tal cartinha das comadres in closet ávidas por receber aplausos pelo que não viveram e não fizeram. Segundo, porque também esse episódio de grosseira leviandade será reciclado posteriormente em desdobramentos cada vez mais sórdidos que também resgatarei em momento oportuno dada a sua importância pra mim e para a História e a organização lésbicas brasileiras.
De passagem, porém, observo que esse pessoal repete um certo padrão de comportamento que vale salientar. Primeiro, tentam destruir o que não lhes agrada ou não lhes convém na base do vale tudo para obter seu intento, incluindo difamar e caluniar as pessoas. Se não conseguem, passam para a tentativa de usurpação do que antes combatiam. Um bom exemplo disso é o dia do orgulho lésbico, 19 de Agosto, que combateram durante décadas, porque viam como uma ameaça ao dia da visibilidade, e agora que ele reemergiu, tentam usurpar, colocando-se até como protagonistas do que antes combatiam.
ChanascomChanas e Um Outro Olhar: produzi, editei e publiquei, na
segunda fase do GALF até março de 1990,
4 edições do ChanacomChana e 10 do Um Outro Olhar, a saber:
Dez.-fev.1985/6 -publicação do CCC 9
Jun.-Set. 1986 - publicação do CCC10
Out.-Jan. 1986/7 -publicação do CCC 11
Fev.-Maio 1987- publicação do CCC 12
Set.-Dez. 1987 - publicação do UOO 1
Fev.-Mar. 1988 -publicação do UOO 2
Abr.-Maio 1988 - publicação do UOO 3
Jun.-Jul. 1988 - publicação do UOO 4
Ago.- Out. 1988 - publicação do UOO 5
Fev.-Mar. 1989 - publicação do UOO 6
Jun.-Jul. 1989 - publicação do UOO 7
Ago.-Out. 1989 - publicação do UOO 8
Nov.- Jan. 1989/1990 - publicação do UOO 9
Fev.-Abr- 1990 - publicação do UOO 10
Uma das questões polêmicas que o GALF enfrentou, nos seus primeiros anos, foi o
questionamento da identidade gay e lésbica trazido por ex-colunistas do Lampião
da Esquina, como o antropólogo Peter Fry, o cineasta Jean-Claude Bernardet, o
artista plástico Darcy Penteado, e outros acadêmicos como Edward MacRae (em
menor grau) e a feminista Maria Luiza Heilborn. Resgatei alguns textos desses
autores aqui
para ilustrar sobre o que falo.
A questão da identidade (das identidades) é complexa e geralmente polêmica. A
sociedade patriarcal conservadora, racista e heterossexista nos divide a partir
de externalidades como sexo, etnia, orientação sexual e nos compartimentaliza nessas
categorias estanques. Para romper com as opressões várias sofridas pelos
discriminados por essas coletivizações forçadas, estes acabam tendo que se
valer da identidade que lhes foi imposta a fim de criar um sujeito político inteligível
pela sociedade em geral. Trata-se de uma faca de dois gumes porque se útil de
um lado, na conquista de direitos civis, pode realmente ferir seus portadores a
depender do manejo da arma.
O grande líder negro, Martin Luther King, tinha um discurso universalista e transcendente
resumido na frase “Eu tenho um sonho de que meus quatro filhinhos, um dia,
viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele e sim pelo
conteúdo de seu caráter.”, ou seja, que viessem a ser julgados como
indivíduos independentemente do coletivo negro em que foram compartimentalizados.
Entretanto, para proferir seu célebre discurso “Eu tenho um sonho”, onde se
encontra essa frase, King não ficou apenas na Igreja dando sermões aos fiéis,
mas foi à luta pelos direitos civis dos negroes, termo hoje considerado
pejorativo. Foi com base nessa identidade que King conquistou direitos civis
básicos para os negros americanos. Teria conseguido algo se se abstivesse de
lutar por considerar a divisão entre brancos e negros falsa – já que somos
todos seres humanos – e, portanto, afirmar uma identidade negra seria limitadora
da potencialidade dos indivíduos? Parece piada, não?
[...] Através
da ideologia do “assumir-se’, indivíduos com forte gosto para relações sexuais
com membros do mesmo sexo são pressionados a encarar tais desejos como sintomas
de uma condição que devem “assumir” publicamente. As relações homossexuais
existem, “ergo” os “homossexuais” existem. Ao pressionar as pessoas a seguirem
determinadas carreiras sexuais, corre-se o risco de desempenhar o papel de
eliminar a anomalia e a ambiguidade na vida da sociedade e do indivíduo. (Peter
Fry)
[...] Na verdade, não existe nem heterossexualidade nem homossexualidade.
Existe, sim, a sexualidade, com grandes nuances, grandes variações, com um
grande leque onde há inúmeras opções. Mas já que estamos conversando sobre uma
coisa que afirmo que não existe, temos que determinar, de uma vez por todas, o
enterro dessas classificações. Somos seres sexuais. Ninguém é heterossexual e
ninguém é homossexual. (Darcy Penteado)
[...] A afirmativa de que a declaração explícita da orientação homoerótica
não é considerada necessária, e sobretudo, é entendida como limitadora das
potencialidades dos indivíduos desperta suspeitas com frequência atribuídas ao
medo do estigma, à covardia diante das convenções sociais, a uma estratégia
calculista de anonimato, ou ainda à falta de solidariedade para com seus
"iguais". (Maria Luiza HEILBORN)
[....] Desde meados de 1979, têm existido no Brasil, com níveis de atividade
variável, grupos dedicados a mudar a forma preconceituosa com que são encarados
os homossexuais e combater a sua marginalização. Mas da mesma forma que os
outros movimentos reivindicatórios, como o feminista e o negro, que privilegiam
a questão de identidade mais do que a de classe, o movimento homossexual tem
sofrido uma série de questionamentos acerca de sua validade. Uma das
dúvidas frequentemente levantadas concerne o resultado possivelmente opressivo
que pode ter a atitude de seus ativistas de aceitarem e até exibirem com
orgulho o rótulo “homossexual”. (Edward MacRae)
Recomendo a leitura do PDF
onde resgatei parte dos textos de onde extraí as citações acima. Acho que os
questionamentos sobre identidade feitos lá nos anos 80 seriam bem proveitosos
nos dias de hoje quando os movimentos sociais passaram a usar as identidades não
como meio, mas como fim, dando um caráter essencialista às mesmas, muito no sentido dos perigos identitários vislumbrados pelos autores que citei.
Basta ver o circo de letrinhas que virou o antigo movimento LGBT, com uma
infinidade de identidades inclusive conflitivas e ironicamente até antihomossexuais.
Mas, nos anos 80, quando
gays e lésbicas estavam começando a dar seus primeiros passinhos para fora da
marginalidade, essa discussão era simplesmente bizantina, embora tenha se tornado bem
influente, junto com a chegada da epidemia da AIDS, na desmobilização política
do movimento homossexual do período. Para o heterocêntrico movimento feminista então,
às voltas com a homofobia das organizações de esquerda, de onde a maioria das
feministas provinha, esse discurso caiu como uma luva no sentido de deixar as bonitas
à vontade a fim de reivindicar a volta das lésbicas para o armário. Agora elas
tinham uma justificativa “intelectual” para dizer que a lesbianidade era apenas
uma preferência sexual, a ser vivida no privado, uma particularidade a mais das
vidas das sapatas que não precisava ser politizada, que bastava se lutar contra
a subalternidade da mulher (no singular) que tudo se resolveria. Serto.
Eu respondi a essa conversa bizantina de outrora com textos, charges e tirinhas,
tais como A Negação da Homossexualidade (CCC
2, p. 2) e Ser ou Estar, Eis a
Questão? (CCC
5, p. 3). Em texto enviado aos grupos homossexuais da época, quando da
discussão da crise do MHB, eu também alertava para o fato de que essa
discussão, que valia sim para reflexão, estava levando, contudo, as pessoas a
questionarem a necessidade da existência do próprio MHB. Da forma como foi
colocada, essa era a consequência lógica aliás. Pessoalmente, sempre vi as identidades
como meramente funcionais, mas imprescindíveis. No decorrer dos anos 80, contudo,
acabou prevalecendo, no MHB, a visão essencialista das identidades homossexuais,
inclusive porque os críticos dessa perspectiva se ausentaram do debate.
De qualquer forma, mesmo hoje, quando os questionamentos sobre a esquerda
identitária se fazem cada vez mais
presentes e necessários, ainda resta a pergunta de como garantir direitos civis
para grupos discriminados sem denominá-los de alguma forma. Não seria o fato de
ter se perdido a perspectiva universalista de Luther King que entornou o caldo?
Fábulas sem nenhuma moral
Como apontei no início desse resgate, busquei
em particular desconstruir um pouco das mistificações em torno do GALF e agora me
detenho em algumas mais diretamente. Acima, resumi
um pouco da história do GALF e a linha do tempo da organização com destaques de
sua atuação ao longo de cerca de 8 anos e meio. Este é o GALF real, não aquele
impressionantemente mistificado que rola por aí. As mistificações a respeito do
grupo chegam a ser folclóricas, como, por exemplo, a história de que ele teria
surgido em 1977 contada pela feminista Amelinha Teles em entrevista para o site Sul 21, de nov. 2013, por ocasião do lançamento de um seu livro “Da
guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no
Brasil (1975-1980)”.
O Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF) foi criado em 1977, em São Paulo, e
elas atuavam muito com a gente nas manifestações. Esse foi o alicerce do
feminismo, que cresceu e passou a todo o território brasileiro.
Em 1977, nem o Somos existia quanto mais o GALF. Além de errar na data de surgimento da
organização lésbica no país, Amelinha ainda aponta uma integração inexistente
entre ativistas lésbicas e feministas que, apesar dos estranhamentos, teria se
feito valer desde a década de setenta. A verdade é que o movimento feminista cooptou
e absorveu as lésbicas do Grupo Lésbico-feminista (LF), repetindo, ao mesmo
tempo em que despolitizava a questão lésbica. As feministas homossexuais
criaram uma espécie de clube de comadres homossexuais dentro do armário lilás
do movimento feminista. Nada além. Em termos políticos, o movimento só
oficializou seu apoio à causa homossexual em geral e à lésbica em particular
durante a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, em Brasília,
dos dias 6 a 7 de junho de 2002. E no que diz
respeito às lésbicas, só porque eu estava lá para garantir um destaque,
inserido no preâmbulo da Plataforma Feminista da citada conferência, sobre a
inestimável colaboração das mulheres homossexuais em apoio à causa das mulheres
em geral, pelo direito ao próprio corpo, pela livre orientação sexual, etc.
Dando um salto temporal,
em 2019, num artigo sobre visibilidade lésbica, li o seguinte:
Em 1980, importantes pioneiras do movimento, como
Rosely Roth e Míriam Martinho, decidiram criar o Grupo de Ação Lésbica Feminista
(Galf), que atuou fortemente contra as prisões e torturas durante a Ditadura
Militar. Além disso, as lésbicas do Galf criaram a revista
"ChanacomChana", em 1983, e sofreram duras críticas do regime. As
ativistas do Galf costumeiramente se reuniam no Ferro's Bar, no centro de São
Paulo, para protestar e se organizar politicamente.
Essa autora então viajou na maionese mesmo, misturando alhos com bugalhos
fartamente. O GALF nunca teve nada a ver com luta contra prisões e torturas
durante a Ditadura Militar e nunca sofreu críticas do regime. O boletim ChanacomChana
surge em dez. de 1982 e, não, a gente não costumava se reunir no Ferro’s.
Correlata a essa fábula, rola a história do ChanacomChana como símbolo de
resistência à ditadura militar. Cabe, então, esclarecer: nem o Movimento
Homossexual, nem o Grupo Lésbico-Feminista nem o GALF surgiram como resistência
à ditadura militar. Existia um único grupo, a Fração Gay da Convergência
Socialista (SP), que queria envolver aquele incipiente Movimento Homossexual do
período na chamada luta maior contra a ditadura. Sua proposta, contudo, não
encontrou eco entre os grupos de gays e lésbicas da época, zelosos da autonomia
do recém-formado movimento. O Movimento
Homossexual nasce como uma insurgência contra outra ditadura, esta sim
praticamente totalitária na época, a ditadura da heterossexualidade obrigatória.
Contra essa sim o ChanacomChana pode ser considerado um símbolo, símbolo contra
uma ditadura presente na esquerda (com exceção da contracultural), na direita,
no movimento feminista, na sociedade em geral.
O GALF e o Chanacomchana não foram uma resistência contra a ditadura militar e sim uma insurgência contra a praticamente hegemônica ditadura da heterossexualidade compulsória.
31/10/1975 - Participei da Missa Ecumênica de 7 dias, na Catedral da Sé, em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog que foi assassinado pelos agentes de repressão da ditadura.
1977 - Participei de várias manifestações de rua em protesto contra a ditadura organizadas pela UNE que tentava se rearticular (lembrando que a UNE fora proscrita pelo regime desde 1965)
22/07/1977 - Fui presa na tristemente histórica invasão da PUC-SP, quando novamente participava de manifestação em frente ao teatro da universidade (TUCA), pelo famigerado coronel Erasmo Dias. Fui levada para o Batalhão Tobias de Aguiar, na Av. Tiradentes, bairro da Luz (centro de São Paulo) onde passei a noite e fui fotografada, fichada, sendo liberada pela manhã.
Coquetel de supostos triângulos amorosos com questões políticas
E, falando em viajar na maionese, não poderia deixar de citar uma tese, ainda
da década de 80, de fato sobre o grupo lésbico-feminista, mas que, na velha
história de quem conta um conto aumenta um ponto, acabou virando uma história
sobre o GALF. Como essa tese meio mirabolante é campeã de reprodução nas teses
do pessoal do “copia e cola”, vale a pena analisá-la mais atentamente inclusive
porque ela traz, além de grossa fabulação, a questão da identidade homossexual de
que falei anteriormente e que ocupou boa parte das discussões da década de 80,
principalmente nos primeiros anos.
Trata-se de uma tese sobre o SOS Mulher, o grupo para qual migrou boa parte do
coletivo que compunha o Grupo Lésbico-Feminista (LF) e que pregava a
despolitização da questão lésbica reduzindo-a à opção sexual. A autora da tese,
intitulada “Do palco aos bastidores – O SOS-Mulher (SP) e as PráticasFeministas Contemporâneas”, Heloísa André Pontes, faz o maior samba da
pesquisadora doida, misturando personagens e eventos desconexos no tempo e no
espaço e supostos triângulos amorosos com questões políticas. Tive acesso a
essa tese na própria década de 80 e a apelidei de tese-fofoca porque é disso
que se trata ao menos no que diz respeito às lésbicas.
O tal SOS-Mulher surgiu, em outubro de 1980, de uma comissão de luta de combate à
violência contra a mulher, formada a partir de uma frente feminista da qual o Grupo
Lésbico-Feminista fez parte. No conto de Pontes, o Grupo Lésbico Feminista
teria rachado porque Teca – “uma das fundadoras do LF e sua principal líder” – tendia
para “a necessidade política de se dissolver
a identidade lésbica no interior de uma identidade feminista mais geral” e
outra parte do grupo não concordava com isso.
Segundo Pontes, tal
processo de segmentação teria sido acompanhado pela eclosão de conflitos
pessoais, pois Z (Teca) estaria rompendo uma ligação amorosa de dois anos com L
(Míriam), militante lésbica. Por minha vez, eu estaria namorando M (Rosely) que
também era integrante do grupo. Vou reproduzir o texto-piada-fofoca na íntegra:
Este triângulo amoroso foi vivido de uma maneira
extremamente conturbada tanto pelas suas protagonistas como pelas demais
militantes lésbicas. Algumas, revoltadas com o comportamento e com a forma de
condução do novo romance, aliaram-se a Z (Teca); outras a
M(Rosely). Em ambos os casos, as alianças e dissidências apareceram revestidas
por concepções políticas distintas, relativas a maneiras divergentes de
qualificar as preferências sexuais.
As que romperam com Z (Teca), aglutinaram-se em
torno de M (Rosely) e se desvincularam do SOS. Para elas, o lesbianismo não se
constituía apenas em uma opção sexual, sendo tratado, antes de tudo, como um
problema de identidade social e política. Em torno dessa preferência sexual
construíam uma prática centrada na necessidade tanto de atribuir ao lesbianismo
uma dimensão político-cultural como de ampliar a luta homossexual em São Paulo.
Entendiam que o lesbianismo devia ser “assumido” como uma identidade por todas
as mulheres que o praticavam. Não punham, portanto, em “questão os fundamentos
da taxinomia que divide o mundo em ‘heterossexuais’, ‘homossexuais’ e
marginalmente, ‘bissexuais’.
Ao contrário, as que se aliaram a Z (Teca), retiraram-se
do LF e passaram a recusar a identidade lésbica enquanto uma identidade política.
Essa recusa, em certa medida, era legitimada pelos artigos do antropólogo Peter
Fry, escritos para o jornal Lampião da Esquina, lidos por várias delas. Ao
romperem com o LF, privilegiaram a identidade feminista, pois entendiam que o
fato de praticarem o lesbianismo como preferência sexual era uma particularidade
a mais de suas vidas e não a marca definidora de suas identidades. Antes de
tudo, se reconheciam como mulheres e, como tal,
pressupunham a vivência de uma condição estrutural de subalternidade
baseada em gênero.
Lamento informar ao
pessoal do “copia e cola” (Crtl C + Crtl V), mas essa história é totalmente
inventada. Pontes deve ter escutado um monte daqui e de acolá no tal SOS e
misturou as fofocas que ouvia com a tal questão da identidade que nunca foi
tema de discussão no LF mas sim do SOS (vide o trecho que reproduzi dela falando de como o SOS diluía a questão lésbica). E o pior é que os e as que têm copiado
esse conto ainda o atribuem a um suposto GALF que teria surgido quando o LF
deixou o Somos, outra fabulação cabeluda em voga atualmente e criada pela turminha
dos eternos literatos frustrados travestidos de historiadores e antropólogos. Nesse
particular, porém, Pontes não inventa: ela fala do grupo lésbico feminista (LF) e
não do GALF, correspondendo aos fatos portanto.
E vamos a eles. Como eu disse, Pontes misturou personagens e eventos desconexos
no tempo e no espaço para criar essa fábula. Houve de fato um racha do
lésbico-feminista em outubro de 1980, mas esse racha precede a existência do
SOS-Mulher que acabara de nascer. E esse racha do LF nada teve que ver com
supostos triângulos e questões de identidade. O lésbico-feminista entrou em
crise, após o encontro de Valinhos, em função de problemas pessoais entre as
integrantes do grupo (no caso da Vilma Monteiro) e por interesse em outro tipo
de projeto (no caso da Teca - ver entrevista abaixo). Nesse racha de outubro, saíram Teca, para ajudar a
fundar o tal SOS-Mulher, e Vilma para fundar o Terra Maria, Opção Lésbica. Não
houve nessas desistências nenhuma questão político-ideológica de permeio
apimentada por triângulos amorosos.
Entrevista de Teca ao Mulherio (n. 9, set./out 1982) |
Marisa Fernandes, uma pinóquia profissional. Montagem de Míriam Martinho sobre foto de Roberto Navarro/ALESP |
Neste tópico sobre as
fabulações envolvendo o GALF, não poderia deixar de citar a
ex-integrante do Grupo Lésbico-Feminista (LF), Marisa Fernandes, que, aliás,
foi quem fechou a porta e apagou as luzes desse coletivo em meados de 1981. E a
cito pelo papel de produtora de fábulas mil sobre o LF/GALF. Antes resgato sua
trajetória na década de 80.
Neste período, tivemos
raros contatos, apenas de cunho social, exatamente porque nossas vidas seguiram
caminhos distintos: ela deixou o ativismo lésbico e eu continuei atuando no
GALF. Como a maioria das integrantes do extinto LF, Fernandes nunca demonstrou
qualquer interesse pelo GALF ou qualquer outra militância lésbica após sua saída do LF. Nunca
demonstrou interesse sequer por escrever algum texto ou depoimento para o ChanacomChana
ou o Um Outro Olhar nos anos 80, o que pode ser constatado pela simples leitura
dessas publicações onde não se vê nenhum escrito por alguma Marisa (lembrando
que as pessoas usavam seus reais prenomes nos textos).
Fora a participação na
reunião informal que os GALF peruano e brasileiro fizeram durante o Encontro
Feminista em Bertioga, como já relatei, a única outra aparição de Fernandes a
ver com militância foi durante a estadia das integrantes holandesas do ILIS, em
meu apartamento, em setembro de 1987.
Não lembro como soube da presença das holandesas, só sei que apareceu para
espiar a cara das ditas, saiu sem comprar o Chanacomchana, dizendo que uma das
gringas fazia meu tipo e que não havia como se organizar lésbicas no Brasil.
A próxima vez que a vi foi em 1988, num encontro pessoal mais prolongado,
quando rapidamente me vi envolvida em mais um de seus históricos barracos
(nisso sim ela é histórica). Na ocasião, dei-lhe um chega prá lá, o que parece
ter ferido sua masculinidade tóxica, pois, desde então, mantém uma vendeta patológica
contra mim. Até parece que a gente não tem o direito de escolher com quem quer conviver, né mesmo? Nesse entrevero, saiu dizendo que eu era vagabunda por atuar
na militância lésbica e manter publicações a respeito.
Posteriormente, já em
1990, recebi carta da feminista Maria Otacília Bocchini me dizendo que formara
um coletivo de feministas lésbicas, com a Marisa Fernandes, para levar a
questão lésbica estritamente no movimento feminista, indicando que
Fernandes já tinha mudado de ideia sobre militância lésbica ser sinônimo de
vagabundagem. Como não mais frequentava o MF, só fui ver o referido coletivo de
feministas lésbicas em meados de 1993, quando fiquei sabendo, pra minha surpresa,
que feministas estavam tentando organizar o III Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-americano
e do Caribe com reuniões na sede do Centro Informação Mulher (CIM), próximo à igreja da
Consolação. Na ocasião, já como integrante da Rede de Informação Lésbica Um
Outro Olhar, fui espiar, com Luiza Granado, do que se tratava tal milagre e lá
encontramos Fernandes e outras integrantes do CFL, mais Míriam Botassi do CIM e
sua companheira. Como também estávamos organizando o VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais, aproveitamos a deixa para solicitar a utilização
da sede do CIM para a comissão organizadora desse evento. Assim ficamos em
tese em duas comissões organizadoras, mas, de fato, só na do encontro de gays e
lésbicas. Este encontro estava sob tiroteio pesado porque nós, da Rede e o
grupo Deusa Terra, mais uma militante independente, com apoio dos gays da
comissão organizadora, queríamos mudar o nome do encontro, incluindo a palavra
lésbica para nos sentirmos representadas, e grupos como o GGB e o Triângulo
Rosa não queriam. Consultamos os grupos de todo o país, conseguimos aval para
mudar o nome, realizamos um bem-sucedido encontro e inauguramos o movimento de
gays e lésbicas no Brasil. O CFL de Fernandes, mudando sua diretriz de não
trabalhar com gays, porque eram sexistas, machistas, misóginos, etc., aderiu
ao encontro de última hora.
A partir desse
encontro, Fernandes já inicia sua trajetória de mitômana em tempo integral, no
movimento de gays e lésbicas, dizendo-se militante histórica que atuara por toda
a década de 80, sem dizer onde. Não foi a única a inventar uma militância lésbica
inexistente na década de 80, mas, sem dúvida, a que mais tem fabulado a
respeito com o objetivo de se autopromover pelo que não viveu e não fez.
Por minha vez,
deixei a militância grupal em 2009, com síndrome de burnout, mantendo apenas
páginas na Internet, onde comecei a resgatar a história da organização lésbica
no Brasil. Eis que, devido aos 40 anos do Movimento LGBT em 2018, fui contatada
por um bocado de gente para entrevistas, as quais atendi bem pouco por estar às
voltas com outras questões pessoais, de saúde em particular. Nesse ano, porém, fui
avisada de que Marisa Fernandes estava se dizendo editora do Chanacomchana e
integrante do GALF (1981-1990). Comecei
a pesquisar sobre o assunto e descobri que já fazia alguns anos que a mitômana
estava nessa velhacaria. Andei fazendo retificações dessa informação falsa
onde pude e ouvindo algumas desculpas esfarrapadas de que não tinha sido
Fernandes que havia dito que era editora do Chana, que havia sido erro de não
sei quem. E por aí vai.
Encurtando a
conversa que já vai longa, recentemente, porém, ela teve um lapso de
honestidade e revelou umas meia-verdades numa entrevista para a tese Trajetória Da Imprensa Lésbica No Brasil
(1981-1995), de Paula Silveira Barbosa (2019).
Segue um trecho:
Paula: Agora, o LF, que depois se tornou GALF, teve várias fases, mas
você disse que só participou no início. Depois que sai aquela edição especial
do Chana, em 81, acontece um hiato. Ele só volta em dezembro de 82, já
em formato de boletim. O que aconteceu nesse meio tempo? Foi a partir daí que
você se afastou?
Marisa: É, é. (Risos). Acompanhei até o grupo conseguir uma sede própria na rua Aurora. Depois, eu precisei me afastar, por questões de saúde. Minha questão de saúde era uma desintoxicação mesmo. Eu tava abusando de substâncias psicoativas e álcool. Enfim, tudo o que tinha. Para segurar tanta energia, tanto trabalho, porque eu era bastante ativa. Então, eu estava muito intoxicada e resolvi sair de São Paulo, para fazer essa desintoxicação.
Parei com o ativismo em coletivos, em grupos. Mas quando eu
retornei para São Paulo, eu nunca deixei de ir, por exemplo, às reuniões
organizativas do 8 de março, mas eu era autônoma.
P: E quando você volta?
M: Ah, que pergunta difícil! Não
tenho muita memória. Mas, eu me desliguei de coletivos. Por quê? Porque a gente
fazia as reuniões bebendo, fumando e cheirando. Quando a gente saía, sempre
tinha alguém que falava: “vamos tomar uma?”. Ou você se desliga um pouco desse
social que te leva a tanta dependência ou você faz o seu caminho muito mais
difícil. Então, foi uma questão de saúde mesmo, uma escolha que eu tive que
fazer. Saí do ativismo coletivo, mas me mantive de forma autônoma. (p.209)
P: É, mas em 90, vem o CFL. E você
é uma das fundadoras.
M: Aí já era outra coisa. [...] Bom, aí nós colocamos o nome do nosso grupo de
Coletivo de Feministas Lésbicas de São Paulo. Quando a gente foi registrar o
grupo, uns quatro anos depois, foi muito engraçado. Por exemplo, o oficial lá
do cartório de registro se recusou porque era a contra a moral e os bons
costumes.
P: Em 90?!
M: É. Em 1994, em São Bernardo do Campo. (p.210)
Bem, não foi o LF que entrou na sede da Aurora (inaugurada em julho de 1981). Somente eu e Rosely que havíamos sido do LF entramos naquela sede e ficamos na situação insólita de ter espaço e não ter grupo, no limbo, na esperança de que alguma ex-LFana se animasse pelo menos a produzir outro Chana, o que não aconteceu, como já relatei. O GALF surge exatamente quando o registramos no cartório em outubro de 81, com outras lésbicas que nada tinham a ver com o LF. Mas o importante aqui é que Fernandes reconhece que não participou do GALF real, né mesmo? Porque ela agora inventou um GALF que teria surgido após a saída do LF do Somos. É mole? Quanto a ela ter ido se desintoxicar é outra piada. Bem pelo contrário, continuou se intoxicando por toda a década de 80, como constatei no entrevero que tivemos em 1988.
Não obstante ter dito, na entrevista acima, que deixara o LF (que ela chama de GALF) quando este conseguira sede própria, em outro texto "Ser Lésbica na ditadura: vida e militância sob estado de exceção", do livro Mulheres de Luta: feminismo e esquerdas no Brasil
(1964-1985), Cristina Scheibe Wolff, Jair Zandoná, Soraia Carolina de Mello (Organizadores.), também de 2019, lá está
ela se colocando como integrante do GALF de novo, que agora, na nova fabulação,
teria surgido em 1980. Segue o trecho onde a mitômana é apresentada:
As mulheres entrevistadas foram Carmen Lucia Luiz,
enfermeira, ex-conselheira nacional de Saúde2; Marisa Fernandes, historiadora,
uma das primeiras ativistas lésbicas do Brasil, cofundadora e integrante do
LF (Lésbico-Feminista-1979) e da Galf (Grupo de Ação Lésbica Feminista – 1980-
1989), coorganizadora do livro História do Movimento LGBT no Brasil,
lançado em 2018; Carmen Silvia Rial e Miriam Pillar Grossi, ambas antropólogas,
professoras e pesquisadoras da Universidade Federal de Santa Catarina. Elas nos
concederam testemunhos acerca do que observaram e do que viveram como mulheres
lésbicas num contexto ditatorial... (p. 188)
Quanto ao
ChanacomChana, na entrevista que ela deu para a tese Imprensa Lésbica, afirmou:
P: Então, nem desse primeiro número você participou? Porque tem uma Marisa no
expediente do jornal. Eu achei que era você.
M: Não. Tinha três
Marisas no grupo. Eu não me lembro de fazer essa entrevista. Não me faz
pergunta minuciosa assim. Aquela época era muito doida, muita correria. Não
lembro de tudo (risos).
Neste ponto, ela reconhece
que nem do ChanacomChana tabloide participou, embora não entenda onde a
entrevistadora tenha visto um nome Marisa no expediente da publicação. Consta
uma Marisa na entrevista com a Angela Roro, mas de fato o Grupo
Lésbico-Feminista teve 4 Marisas. Não dá pra saber de que Marisa se trata. Então,
se ela própria diz que não integrou nem essa publicação feita pelo grupo LF do
qual de fato foi integrante, como poderia se dizer editora do boletim
ChanacomChana, se afirmou antes que deixara o grupo quando ele entrou na sede da Aurora em meados de 1981? O Chanacomchana só passa a ser produzido cerca de um ano depois da entrada do GALF na referida sede em dezembro de 1982.
Marisa Fernandes...outra integrante do GALF à época (sic), comentando o impacto: “Milhões de lésbicas estavam vendo e recebemos milhares de cartas que diziam ‘não vou mais me matar, porque sei que não estou sozinha’, cartas emocionadíssimas. Todas foram respondidas”.
Integrantes do Somos-SP, GALF e SOS Mulher na sede do GALF-Outra Coisa no evento Viva a Homossexualidade (jun/83). Acervo Rede de Informação Um Outro Olhar. |
Atribui-se falsa identidade, fazendo-se passar por fundadora do que não foi e editora de publicação alheia (falsa identidade, artigo 307);
Ao se atribuir a organização ou edição do Chanacomchana, como já fez várias vezes, Fernandes também comete plágio (no plágio sempre haverá a lesão a direitos da personalidade do autor, especificamente o direito à paternidade, bem como haverá a apresentação de conteúdo de obra alheia como se fosse própria. Assim, pode-se dizer que o plágio não ocorre apenas em virtude da reprodução de uma obra, “mas porque os créditos não foram atribuídos ao responsável original e ainda são conferidos ao plagiador". Notas sobre o plágio e a contrafação. Leonardo Estevam de Assis Zanini).
Também pratica difamação e calúnia, inclusive em tese acadêmica, ao afirmar, que eu teria sido responsável pelos transtornos psiquiátricos de Rosely Roth e posterior suicídio por ter me separado dela (sic). Fiquei sabendo dessa canalhice por intermédio da historiadora Rita Colaço que me enviou cópia da tal tese, dizendo-se profundamente indignada com a sordidez do escrito e me sugerindo denunciar a autora da tese em sua universidade a fim dela inclusive perder o título de doutora e, claro, me aconselhando a processar a nefasta Fernandes. Eu e Rosely continuamos próximas até seu último momento nesta vida.
E bem que ainda pode figurar nos ilícitos de invasão de privacidade e stalking.
Como último exemplo da mentirobrás permanente da pinóquia Fernandes (tenho um dossiê de exemplos), quando o dia do Orgulho Lésbico foi lançado em 2003, o pessoal do dia da visibilidade ficou histérico, porque conviver com diferenças não é de sua natureza, e lançou uma campanha violenta contra essa data histórica. Nessa época, grupos e militantes usavam as listas de discussão, e Fernandes saiu dizendo em e-mail que a data era mórbida porque homenageava uma pessoa que havia se matado. Tentaram de todas as formas eliminar o 19 de agosto do mapa. Mas algo não deu certo, o dia reemergiu, e agora Fernandes diz que admira a Rosely, que o 19 de agosto é um reconhecimento merecido da luta da moça. Coitada da Rosely, deve se revirar no túmulo tanto quanto meu estômago revira diante de tanta hipocrisia. 😖
Agora, qualquer pessoa que faça uma pesquisa séria sobre as falas de Fernandes, ao longo do tempo, poderá atestar as inúmeras mentiras e contradições presentes no que diz. Basta não ser acadêmico-militante, tentando encaixar os fatos em narrativas ideológicas distantes da realidade, parafraseando o antropólogo Antonio Risério, que se consegue esse objetivo sem muito esforço.
Arte @oribs / @designativista (em FB mídia ninja) |
Mitômanos não são nada
incomuns na sociedade brasileira, em geral de moral bem baixa. Tivemos
inclusive presidentes e ministros, tanto de esquerda quanto de direita, mentindo
até em currículo acadêmico. A cientista Joana D'Arc Félix de Souza que se dizia formada por Harvard
foi pega na mentira porque a famosa universidade negou que a tenha tido como
aluna. Mas essas figuras de maior destaque têm a grande imprensa a investigar a
veracidade do que dizem. Em movimentos sociais, é fácil para mitômanas como
Marisa Fernandes proliferarem porque não contam com a mesma vigilância e tem inclusive
apoio de outras e outros como ela. Como Fernandes é pau pra toda obra escusa, fraudulenta e não raro caso de polícia, quem tem afinidades com ela costuma apoiá-la à revelia de qualquer sombra de decência e de justiça.
Por exemplo, alguns anos atrás, me enviaram fotos de um prêmio que Fernandes recebera por sua suposta luta contra a ditadura militar. Acontece que Fernandes não teve qualquer luta contra a ditadura militar, a não ser que se considere participar de algumas manifestações de rua contra o governo militar, como luta contra a ditadura. Luta contra a ditadura militar teve o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns que, ao longo dos anos, desenvolveu inúmeras atividades de oposição aos governos militares, em especial no tocante às violações contra os direitos humanos. Fernandes era uma típica representante da geração contracultural predominante na década de 70 no Brasil, chamada de desbundada, cujos slogans eram "paz e amor, sexo, drogas e rock'on'roll". Embora consciente da problemática macropolítica do país, essa geração estava mais preocupada em pôr o pé na estrada, viajar para a Bahia, viver em comunidade em alguma casa no campo, expandir a mente através das drogas e fazer a revolução sexual. Psicanálise também estava muito em moda na época. Como convivi com Fernandes nesse período, posso afirmar que ela seguia a rotina comum aos jovens de então: tinha um emprego formal na prefeitura de Santo André, transava com uns e outras e tomava todas as drogas possíveis e imagináveis. Não me parece que isso tenha a ver com luta contra a ditadura. Deve ser também por isso que a figura tem essa bronca patológica contra mim: eu a conheço de velhos carnavais e sei bem quem de fato é.
Enfim, cumpro então um
pouco o papel de agência de checagem, pois inclusive tenho sido vítima dessa velhaca por muito tempo, e porque, mesmo quando
falar a verdade tem um alto custo, é nossa obrigação moral dizê-la. Cumpri mais uma vez minha obrigação.
Por que existem tantas fabulações
sobre a organização lésbica brasileira? A contribuição acadêmica
As razões para a existência de
tantas fabulações me parecem derivar de uma mistura de vários “ismos”, nenhum
deles interessante: sexismo, heterossexismo (lesbofobia), corporativismo,
partidarismo, comadrismo e compadrismo, até nepotismo sapatão e a decadência
das chamadas ciências humanas que, cada vez mais, produz acadêmicos-militantes
em vez de pesquisadores minimamente responsáveis.
Abordei anteriormente a tese de Heloísa
Pontes sobre o LF, fonte matrix do "copia e cola" de outros pesquisadores que, por
sua vez, também na base do quem conta um conto aumenta um ponto, traduziram o
LF de Pontes para GALF.
O livro Na Trilha do Arco-íris do Movimento Homossexual ao Lgbt,
de Regina Facchini e Júlio Simões é exemplo desse "copia e cola" combinado com sexismo
e heterossexismo, fora um pouco dos outros “ismos” que citei. Quem lê o livro
acaba tendo a impressão de que o movimento pelos direitos homossexuais no
Brasil foi feito 99,9% por gays. As lésbicas só são citadas de passagem,
personificadas apenas quando do exterior, e sua participação secundarizada.
Gays são citados com nome, sobrenome e preferências pessoais. Nem parece que
foram lésbicas que organizaram a manifestação homossexual mais expressiva da
década de 80 e que tenha sido uma lésbica a se destacar na mídia do período
mais do que muitos gays. Nem parece que esta lésbica que lhes escreve foi a
produtora do hoje tão cobiçado boletim ChanacomChana, pioneira publicação do
período sobre lésbicas e direitos homossexuais. Nem parece que tenha sido uma
lésbica, novamente esta que lhes escreve, apoiada por outras lésbicas da Rede
de Informação Um Outro Olhar, do Grupo Deusa Terra, além de independentes, que
simplesmente refundou o antigo movimento homossexual e o redefiniu para
movimento de gays e lésbicas durante o VII Encontro de Lésbicas e Homossexuais
em 1993. Nem parece que tenham sido lésbicas que organizaram sozinhas
outro encontro, o XIX Encontro de Gays, Lésbicas e Travestis, no início de
1997, que resultou na primeira passeata de rua em São Paulo desde 1980 e que
serviu de embrião para a primeira parada GLT do país. Isso sem falar de
realizações de outras lésbicas de outros grupos, igualmente secundarizadas.
No texto de Regina Facchini e Júlio Simões, só se dá um maior destaque às
lésbicas para falar não de seus feitos mas sim de picuinhas afetivas que
seguiriam um suposto “padrão organizativo” dos grupos lésbicos, inclusive de
parte do GALF. Já adianto que, ao contrário desse pessoal, não costumo falar
daquilo que eu mesma não pude constatar de uma forma ou de outra. Não sei dos bastidores
de outros grupos lésbicos e do resultado que rupturas amorosas tiveram para o
fim dessas entidades. De qualquer forma, não deixa de ser estranho que, em vez
de falar do que essas entidades fizeram, tenham escolhido falar do que
supostamente ou não as levou ao fim. No caso dos grupos dos quais fui cofundadora,
posso afirmar taxativamente que o citado padrão organizativo não ocorreu. Mas como
é do GALF que se fala um monte de abóboras, então, vamos contestá-las mais uma
vez.
Cito as páginas 114, 115, 116 do livro de Facchini e Simões, onde rola o famoso "copia e cola" da tese de Pontes, que apelidei de tese-fofoca, sobre um suposto GALF do qual nem Pontes fala. Após o trecho citado, copio inclusive trechos da tese da antropóloga para ilustrar o que digo. Deve ter sido Facchini quem escreveu o seguinte:
O GALF passou por várias crises, que envolviam tanto as dificuldades materiais
para tocar projetos quanto o rompimento de relações amorosas entre suas integrantes. Rupturas pessoais e
divergências políticas influenciavam-se mutuamente nesses episódios. Analisando
a relação entre lésbicas e feministas dentro do SOS-Mulher de São Paulo, a
antropóloga Heloísa Pontes descreveu a dissidência ocorrida no GALF por ocasião
do fim do relacionamento de duas integrantes, que passaram a seguir caminhos
distintos, atraindo cada qual um conjunto de aliadas. Essa separação marcou
diferentes posicionamentos seguidos pelo grupo no começo dos anos 1980. Uma ala
se retirou do GALF, privilegiando a atuação junto ao movimento feminista,
argumentando que sua prática lésbica seria uma particularidade a mais e não a
marca definidora de suas identidades pessoais. Outro ala optou por manter o
GALF e se retirar do SOS-Mulher, sob a justificativa de que as lésbicas
deveriam assumir sua identidade social e política, para não submergir na luta
feminista".
A respeito dessas e de outras dissidências semelhantes,
a pesquisadora Gláucia de Almeida observou que uma característica marcante de
muitos grupos lésbicos brasileiros, especialmente até meados dos anos 1990, era
a origem a partir de um casal fundador" que agregava outros casais ou
amigas para o empreendimento político. Desse modo, divergências políticas
associavam-se estreitamente a rupturas amorosas, que trouxeram consequências
para a capacidade organizativa do movimento, visto que os grupos tendiam a
desaparecer junto com a separação e suas protagonistas. Como ela comenta:
Uma vez que a relação afetiva/sexual se esgotava (o que
ocorria algumas vezes com rupturas violentas), o grupo se dissolvia ou se
fragilizava pela permanência de apenas uma das integrantes do casal, que nem
sempre estava preparada ou encontrava condições para manter o grupo
"ativo".[...] Uma das integrantes do casal fundador de um grupo
extinto contou que, com a saída de sua ex-companheira e a sua, outras pessoas
assumiram a liderança provisoriamente, mas não conseguiram manter o grupo
ativo. Ela, a partir daí, perdeu o controle sobre o grupo e sobre o que foi
feito do precioso acervo documental de que o grupo dispunha, inclusive um rico
conjunto de cartas (algumas centenas) enviadas por lésbicas de todo o Brasil.
O GALF não fugiu a esse padrão organizativo, mas
conseguiu evitar seu desaparecimento. Foi único dos grupos paulistas da primeira onda que continuou ativo ao
longo dos anos 1980 e chegou aos anos 1990 como Rede de Informação Um Outro
Olhar, nome que passou a usar a partir do momento em que adotou o formato
institucional de organização não-governamental-outra das novidades das décadas
seguintes, como veremos seguir.
Mas, então, vejamos primeiro sobre quem Pontes realmente fala:
Inicialmente, o SOS surgiu (conforme relatei ao historiar a sua formação) sob a
forma de uma comissão de luta contra a violência, formada a partir de uma
"frente" feminista. Esta frente era composta de representantes de
todos os grupos feministas atuantes em São Paulo, no ano de 1980. Entre eles,
encontravam- se membros do grupo Lésbico-Feminista. (p.
117)
[...]
Seus pronunciamentos (de Teca) contavam com o apoio de
uma parte das militantes lésbicas,
mas não produziam uma visão consensual a respeito da necessidade política de
dissolver a identidade lésbica no interior de uma identidade feminista mais
geral (sic). O que acabou por resultar em uma segmentação do grupo Lésbico-Feminista. (p. 118)
Passei um pente fino na tese de Pontes e, em momento algum, se vê o tal de
GALF citado pela dupla Facchini/Simões. Aqui os autores fizeram dois "copia e cola", o já citado do triângulo amoroso fictício da Pontes e o tal GALF
vindo da obra de outro inventivo antropólogo, Edward MacRae (depois me ocupo
deste). De fato, a única sigla que Pontes utiliza é LF, e o nome do grupo a que
ela se refere é Grupo Lésbico-Feminista, com as variantes Ação Lésbico-Feminista
ou grupo de Ação Lésbico Feminista (da famosa coleção de assinaturas do LF).
Além disso, nem o LF nem o GALF
começaram em torno de um casal fundador nem terminaram em função de rupturas
amorosas. O LF surgiu em maio de 1979, como subgrupo do Somos, pelas mãos de
várias participantes dessa organização, tornou-se um grupo independente em maio
de 1980 e terminou em junho de 1981 por simples desinteresse de suas
participantes em sua continuidade.
O GALF foi fundado por mim e Rosely mais algumas colaboradoras do grupo em
outubro de 1981, mas nós não éramos namoradas na ocasião. Também não foi o fim
de nosso relacionamento que se deu em 1987 que determinou o encerramento do
grupo que só terminará no início de 1990. Nem a doença de Rosely, que abalou as
estruturas do grupo, determinou seu fim. O GALF se encerrou porque não víamos
mais sentido na manutenção de um grupo lésbico-feminista, já que era
contraproducente viver às voltas com o heterocêntrico movimento feminista do
período sempre disposto a nos envolver em suas baixarias mil.
E como a dupla também avança sobre a história até da Um Outro Olhar, cabe
esclarecer que esta foi registrada estatutariamente em abril de 1990, da mesma
forma que o GALF o fora em outubro de
1981. A Um Outro Olhar teve a mesma estrutura do GALF, em seus primeiros 5 anos,
e continuou com o mesmo estatuto quando passou a receber verbas governamentais
a partir de 1995. Qualquer organização pode ter um estatuto, independente de
suas características e finalidades.
E a fábula do LF que virou GALF após a separação do Somos?
Faz pouco tempo que descobri essa nova invenção do LF
que virou GALF após a separação do Somos e passei a pesquisar sobre o assunto.
Ao que tudo indica, a principal origem dessa história são os textos do
antropólogo Edward MaCRae. Em seu livrinho com Peter Fry, O Que é
Homossexualidade, MacRae afirmava, em 1985:
... aproveitando o ensejo de uma briga entre os homens que já começava a
ameaçar a coesão do grupo Somos, as lésbicas deste grupo resolveram optar por
uma total autonomia. Fundaram o Grupo de Ação Lésbico Feminista (aqui ainda
lésbico-feminista) em maio de 1980. (p. 28).
Nesse livro também, surge a história de que as lésbicas haviam encontrado uma forte
relutância inicial à sua presença, publicamente homossexual, no Movimento
Feminista, mas que essa relutância havia sido superada. (p. 101/102). Deve ter
sido na mesma realidade paralela onde a feminista Amelinha Teles disse que o MF
abriu os braços para as lésbicas desde 1977.
O financiamento do aluguel da sede sempre foi problemático e eram muitos os expedientes usados para arrecadar o dinheiro necessário. Organizavam-se festas, bingos e churrascos, mas o lucro proporcionado frequentemente não era suficiente e, em última instância, algumas militantes, em melhores condições financeiras, acabavam ajudando a pagar o aluguel com seu próprio dinheiro. Porém, como se pode imaginar, isto era causa de muitos problemas, pois, em um grupo em que todas deveriam ser iguais, a contribuição desproporcional de algumas inevitavelmente introduzia um elemento de desigualdade depoder. Além do aluguel, outra despesa grande era a edição esporádica do jornal Chanacomchana, no qual eram publicadas notícias e entrevistas relacionadas com o lesbianismo. Também neste caso, quando o dinheiro proveniente da vendagem não era suficiente, algumas integrantes cobriam a diferença do seu próprio bolso.
Como eu sou boazinha e compreensiva, até admito que o fato do GALF, o real, ter incorporado o histórico de seu antecessor, o LF, num primeiro momento, possa ter alimentado essa confusão toda entre os dois coletivos. E inclusive assumo que possa inadvertidamente ter culpa nesse cartório. Mas, convenhamos, o Grupo Ação Lésbica Feminista (o GALF real) vai percorrer praticamente toda a década de 80 e terminar no início de 1990. E nenhum desses pesquisadores veio falar com alguém do GALF em quase uma década, mas se achou no direito de escrever historinhas mil sobre a organização? Nem veio falar com ninguém da Um Outro Olhar mesmo afirmando que o GALF teria chegado aos anos 1990 como Rede de Informação Um Outro Olhar? Em outras palavras, em 40 anos de história, esse pessoal não teve tempo de consultar as pessoas que fizeram parte do GALF sobre a história do grupo?
História oral é a prova definitiva da inveja que a História tem da Literatura
Essa frase, um chiste, aliás, não é minha e sim de um professor de literatura
brasileira, especialista em Barroco, com quem tive aulas na Letras da USP umas
três décadas atrás. Muito culto e irônico, sua aulas estavam mais pra stand up literário
do que pra aula propriamente dita, e ele adorava zoar o pessoal das ciências
humanas, em especial os historiadores, vizinhos do prédio da Letras no campus
da capital. Para nossa diversão, dizia que, certa feita, tinha enviado um texto
literário para os colegas historiadores, pedindo confirmação, no entanto, se se
tratava de um documento histórico, e que obteve essa confirmação. Daí concluía
que historiadores não sabiam distinguir um texto de ficção de não-ficção e que,
por isso, teriam inventado a história oral, a prova definitiva da inveja que a
História tem da Literatura. Aproveitava também para zoar todas as outras ditas
ciências sociais, afirmando que se tudo tinha virado ficção, o certo era decretar
a obsolescência de antropólogos, historiadores, sociológicos et caterva
e deixar a análise da realidade para os críticos literários.
O professor antecipava a discussão atual sobre as fake news e as narrativas ideológicas com as quais as militâncias tentam encaixar a realidade na moldura conceitual de suas fantasias. Mas a História Oral até começou com boas intenções, em meados do século passado, com o advento dos aparatos tecnológicos de gravação (gravador de fita) e objetivando dar voz aos excluídos da historiografia tradicional focada nos grandes eventos e grandes vultos. A partir da coleta de testemunhos e depoimentos com participantes ou testemunhas de acontecimentos do passado e do presente buscava também ampliar a reconstrução dos eventos sob pesquisa.
Entretanto, como depoimentos orais são fontes subjetivas, relativas à falível
ou fantasiosa memória individual (sem falar na possível má fé de alguns
depoentes), buscava-se estabelecer mais precisão e confiabilidade ao relato
oral desenvolvendo-se um diálogo entre a documentação escrita já existente e a
fonte oral ou mesmo se confrontando a fonte oral com outros tipos de
documentação. Propunha-se que o historiador buscasse o máximo de isenção
possível, amparando-se em diversas fontes de pesquisa, consciente de que a
fonte oral não substituía a fonte escrita, mas a complementava e vice-versa.
Daí o chiste do meu saudoso e sarcástico professor de literatura brasileira ao
dizer que a História Oral era a prova definitiva da inveja que a História tinha
da Literatura. Porque a Literatura é livre para criar até mesmo quando produz
romances históricos, baseados em personagens e eventos reais. A História (outras
ciências sociais também), por outro lado, precisa se aproximar do
acontecido, utilizando documentos e fontes
relativos a ele e comprovando sua veracidade com métodos de testagem,
comparação, cruzamentos. A História depende inclusive desses documentos e
fontes (em particular da matéria escrita) e dos métodos de aferição da confiabilidade
desses materiais para a manutenção de seu estatuto de cientificidade. Em outras
palavras, o historiador não é livre para criar como um romancista. Ilustro essa
falação com trecho do texto Why historians should write fiction? do romancista e historiador Ian
Mortimer, (Por que historiadores
deveriam escrever ficção.):
Gostaria de esclarecer desde o início
que sou tanto um romancista (sob o pseudônimo de James Forrester) quanto um
historiador (Ian Mortimer) e que escrevo livros de História para o público em
geral bem como artigos acadêmicos. Como romancista, eu conto mentiras. Das
grandes. Todos os romancistas históricos contam. No meu caso, eu faço
personagens históricos como Sir William Cecil e Francis Walsingham dizerem e
fazerem coisas que eles nunca disseram ou fizeram. Atribuo causas para a morte de algumas pessoas
que, de fato, morreram de outras coisas, faço-as falarem em linguagem atual embora
no contexto de outros tempos, e mudo seus nomes verdadeiros. Como
historiador, eu não conto mentiras. Observo escrupulosamente as fontes
primárias e secundárias.
Bem, acabei enveredando por essa
discussão sobre a História Oral, sobre a qual li alguns textos, porque comecei esse tópico perguntando as
razões para tantas fabulações a respeito dos primórdios da organização lésbica
no Brasil, em particular sobre o GALF, e apontei alguns exemplos da
participação de acadêmicos na construção dessa mitologia. Acho que em sua
versão pura, onde até depoimentos imaginários são validados, sob pretexto de
que subjetividades
também deveriam ser objeto de estudo da História, a HO abre uma avenida de
possibilidades para as fabulações que, no entanto, ganham estatuto de
veracidade porque veiculadas por pesquisadores.
Em 2021, cansei de ver depoimentos orais sendo usados anacronicamente, em teses
inclusive: ativistas da década de 90 sendo instadas a depor sobre a década de
80 que não viveram, sobre o GALF do qual não foram interlocutoras; gente querendo
fazer perfil da Rosely Roth junto a pessoas que sequer a conheceram, mas sendo
colocadas como se tivessem conhecido e supostamente tido de lidar com o problema
de sua doença individual e coletivamente (sic), inclusive mantendo supostas
mágoas sobre o assunto (como alguém pode ter mágoas do que não sofreu é que são
elas). Vale lembrar que não havia grupos lésbicos no Rio de Janeiro, onde
Rosely faleceu, em 1990, sequer ativistas independentes. Para ver depoimentos
de época sobre a Rosely, de pessoas que de fato a conheceram ou mantiveram
contato com ela via GALF, vale ler a edição número 12 do boletim Um Outro Olhar
acessível por este link.
Gente querendo fazer documentários sobre a manifestação do Ferro’s com gente
que não esteve no evento. Gente tentando dissociar, em teses, meu trabalho da
minha pessoa. E não só em teses. Gente me difamando e caluniando inclusive em
teses para me desacreditar como protagonista da minha própria história e
produção (quando a gente quer reescrever a História tem que tentar desacreditar
quem de fato foi protagonista e testemunha ocular da História, né mesmo?). Textos
do CCC e UOO e até mesmo meus desenhos sendo usados para referendar coisas que
nada tiveram a ver com eles. E, mesmo fora da produção acadêmica, gente
inventando supostos arquivos lésbicos para fazer perfil falso de velhas e novas
comadres a fim de inventar histórias lésbicas das carochinhas mil.
Pesquisadores que assim agem não podem ser levados a sério, como explanei acima
na breve passagem sobre a História Oral. Depoimentos orais, desde que
submetidos a contraprovas e em diálogo com outros tipos de documentação de época, enriquecem
as pesquisas, podem trazer inclusive informações e perspectivas indisponíveis
de outra forma. Caso contrário, só servem de instrumento para gente de má fé (e
até criminosa) e para os mitômanos de plantão (mesmo só os compulsivos e não psicopatas).
Cada vez mais
frequentemente, contudo, vê-se acadêmicos abdicando de sua função essencial de analisar
e buscar explicar a realidade atual ou de resgatar o passado de forma mais
fidedigna para querer interferir nos acontecimentos, reescrever a História, viver
de narrativas ideológicas, sobretudo na área sociopolítica e cultural. Não se
trata de cobrar suposta objetividade científica de pesquisadores ou dizer que
não podem se posicionar politicamente, mas sim de questionar essa visão da atividade
intelectual como mero instrumento de militância política.
Não tenho dúvidas de que jogos da estratégia e da paixão, da aliança e da
disputa, caem melhor no espírito de torcidas organizadas de algum tipo de
esporte, em assembleias estudantis ou na micro ou macro política rasteira de
nosso país. E o talento para criação de narrativas e historinhas ficcionais cai
melhor na área da Literatura ou da escrita ficcional em geral. Ou então,
como no chiste do meu saudoso e irônico professor de Literatura, se querem tudo
ficção, o certo é deixar a análise da realidade para os críticos literários (a
propósito, fiz análise literária por anos a fio, ok?).
Ah, e antes que me esqueça, ninguém sabe mais do meu trabalho, de com quem
namorei ou deixei de namorar (e quando) do que eu mesma. Por isso, posso
rebater de cátedra toda essa fabulação, em particular sobre o GALF. Mas não deixo de fazer pesquisa para fundamentar o que digo porque a memória se esgarça com o passar dos anos e é importante refrescá-la com documentos de época.
Um desagravo ao Grupo Lésbico-Feminista- LF (05/1979-06/1981)
"A música, que ecoou por rádios de todo o país, catapultou o nome de Vange Leonel, que anos mais tarde assumiria publicamente sua homossexualidade. Na mesma época, Vange viria a fortalecer seu vínculo com a militância LGBT, que começou ainda em 1981, quando ela fez parte do grupo LF (Lésbico Feminista), uma dissidência do SOMOS."
Uma das últimas atividades do Lésbico-Feminista (em grifo), foi participar da Semana de Luta Homossexual, de 9 a 12 de junho de 1981, com dois debates e uma manifestação em frente ao Teatro Municipal, como se observa na filipeta abaixo:
É fato que o LF também assinou uns dois folhetos como Grupo de Ação Lésbica Feminista, por exemplo, mas não após o racha do Somos, e continuou assinando e se reconhecendo como Lésbico-Feminista até o seu final em meados de 81. Nos últimos documentos relativos ao grupo, como observa-se também num folheto do I Encontro Paulista de Grupos Organizados, de 25 a 26 de abril, também aparecia a assinatura Grupo de Ação Lésbico-Feminista, provavelmente a última assinatura a prevalecer, tanto que será o primeiro nome não-oficial que o GALF vai utilizar no seu primeiro 1 ano e meio de vida (vide a história do GALF acima). Inventar, portanto, que o LF virou GALF após sair do Somos e acoplá-lo ao GALF que fundei em outubro de 81 com Rosely (vide a ata de fundação do GALF) é destruir metade da história do já breve primeiro coletivo de lésbicas ativistas do país e deturpar a história do segundo.
Os grupos são conformados pelas pessoas que os compõem a despeito de siglas. No Peru, houve dois GALF, exatamente a mesma sigla, mas nenhum deles procurava se fazer passar pelo outro. É da interação entre suas integrantes que surge a real identidade dos grupos desembocando em ações específicas. Os coletivos do Lésbico-Feminista e do GALF foram bem distintos, pois mesmo eu e Rosely, que passáramos pelo LF, iniciamos uma interação totalmente nova com o GALF. Todas as outras integrantes do GALF que se juntaram a nós, ao longo da década de 80, nada tiveram a ver com o coletivo do LF. Por isso, a trajetória dos dois grupos foi bem distinta também, seu espírito e sua produção idem. Mas ambos precisam ter suas histórias respeitadas.
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