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Poeta pernambucana Ágnes Souza lança livro onde se aprofunda nas relações lésbicas explícitas

segunda-feira, 25 de maio de 2020 0 comentários

Ágnes Souza e capa de Pouso. (Foto: Divulgação)
Ágnes Souza e sua poesia sáfica

A poeta pernambucana Ágnes Souza está lançando o livro Pouso (Editora Moinhos), sua segunda publicação após a estreia com re-cordis (2016). Na obra, a artista se aprofunda nas relações lésbicas de forma explícita, saindo do lugar da neutralidade, além de dar mais espaço para a própria escrita, que ganha poemas mais longos. Em pré-venda desde abril, a obra foi oficialmente lançada após a realização de uma live com a poeta e o editor da Moinhos, Nathan Magalhães, na terça-feira dia 19/05.
Esse processo não foi proposital. É fruto de muita pesquisa e leitura que acabou desembocando nos meus textos”, conta a autora, que se inspirou bastante no conceito de "infraordinário", cunhado por Georges Perec e utilizado pela poeta carioca Marília Garcia.
O infraordinário coloca luz sobre o que não é extraordinário na vida, sobre o que é pequeno e mínimo mas que ainda assim faz parte do nosso dia a dia e, por isso, também é passível de poesia", explica Ágnes.
O cotidiano guia toda a poesia do livro, que fala sobretudo sobre o passar dos dias, jogando luz sobre aspectos corriqueiros da nossa rotina. Seja exercício de escrever um poema, as relações cotidianas, uma conversa de bar, uma pessoa fumando um cigarro, o metrô, um olhar profundo sobre alguém ou até o que se sente ao olhar um corpo apaixonado.

Pouso traz, em sua maioria, poemas direcionados a outras pessoas. Muitas dessas, mulheres, que são “fotografadas” sob os vários ângulos que existem num relacionamento entre uma mulher e outra. Por vezes, esse ângulo é mais fechado, se debruçando sobre uma parte pequena de um corpo, como um umbigo.
Muitos desses poemas são dedicados a amigos, romances, personagens de filme... Eu gosto de lembrar de um verso da poeta Bruna Beber que diz que 'todo poema carrega um rosto e nele um susto que nunca passou', as minhas dedicatórias são esses rostos", explica a escritora.
Serviço
Quanto: Livro por R$ 40, no site da editora
Clipping Poeta pernambucana Ágnes Souza lança livro com temática LGBT, Diário de Pernambuco, 19/05/2020

Falando de autoras lésbicas na literatura

sexta-feira, 21 de julho de 2017 0 comentários

Virgínia Woolf

Mulheres invisíveis: por que precisamos falar de autoras lésbicas na literatura?
Historicamente esquecidas, autoras lésbicas foram deixadas de lado na literatura, mas leitoras também lésbicas reafirmam importância da representatividade e de lembrar de grandes nomes como Virginia Woolf

A Literatura é considerada uma das mais altas formas de cultura, entretanto, seus maiores cânones ainda estão ligados à figura masculina. Em um momento em que tanto se fala na questão da representatividade, autoras mulheres ainda não são a primeira opção para a maioria das pessoas. Enquanto há centenas de homens considerados como notáveis nessa área, quantas mulheres são consideradas pilares da literatura? Quando se propõe, ainda, uma intersecção com a sexualidade a figura torna-se ainda mais defasada. Onde estão as autoras lésbicas da literatura? 

Reflexão e representatividade

A invisibilidade das autoras lésbicas se manifesta em duas faces: ou seu trabalho por serem de mulheres ou sua sexualidade foi ocultada, como é o caso de Virginia Woolf, escritora inglesa que teve seus principais trabalhos publicados durante a década de 1920.
A lesbianidade era algo visto com tal desprezo que ela teve que reprimir isso por muito tempo”, comenta Beatriz Canale, leitora da obra de Woolf.
Para Tainá Oliveira, o principal ponto que lhe fascina nos trabalhos da inglesa é que, mesmo em um meio hostil, a autora tinha na literatura um refúgio para seus sentimentos.
Eu a admiro pela resistência que foi necessária em sua própria vida particular enquanto mulher e lésbica”, disse.
Ao longo dos anos diversas autoras se abriram sobre sua sexualidade e transformaram vivências pessoais em obras escritas que tocaram outras mulheres que, assim como elas, tiveram de enfrentar o que é ser homossexual em um ambiente que ainda lhes é hostil. Lídia Bizio ressalta esse caráter presente no quadrinho “Você É Minha Mãe?” de Alison Bechdel, que aborda o conflito entre a autora e sua família que tem dificuldades em aceitá-la.
Ela faz uma grande reflexão sobre o que é ser lésbica na nossa sociedade [...] uma lésbica lendo esse livro pode se perguntar ‘qual o meu papel na sociedade? Qual a minha relação com meus progenitores?’”.
Em um universo heteronormativo em que as narrativas dificilmente contemplam o amor entre duas mulheres, o casal de autoras lésbicas brasileiras Karla Lima e Pia Pêra também converteram suas experiências como casal em romances que por mais simples que pareçam tem um grande impacto para as mulheres que os leem, como aponta Thayanne Martins, leitora dos livros do casal.
Me sinto bem representada porque não força a ideia, como se fossemos totalmente diferentes [...] me vejo bastante nelas e a gente acaba vivendo a histórias delas”, conta sobre sua visão.
A visibilidade da literatura feminina está sendo a cada dia mais debatida como reflexo da efervescência do feminismo, mas, mesmo assim, o trabalho das autoras lésbicas nesse ambiente continua relegado ao segundo plano – e, como para qualquer outro tópico, a representatividade é fundamental.
Virginia Woolf, com certeza, inspirou muitas gerações de lésbicas perdidas que não encontravam qualquer referência na literatura – e eu fui uma delas”, encerra Beatriz Canale.
Fonte: Por Verônica Maluf , iG São Paulo | 19/07/2017


Eva Green e Gemma Arterton viverão a história de amor entre as escritoras Virginia Woolf e Vita Sackville-West.

quinta-feira, 23 de março de 2017 1 comentários


Escaladas atrizes que viverão casal em filme sobre Virginia Woolf

As atrizes Eva Green (O Lar das Crianças Peculiares, Penny Dreadful, 300: A Ascensão de um Império) e Gemma Arterton (Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo) foram escolhidas para protagonizar o filme Vita & Virginia, que vai tratar da história de amor da romancista Virginia Woolf com a escritora e designer de jardim Vita Sackville-West. As informações são do site do jornal britânico The Guardian.

Eva como Virginia

Eva Green vai interpretar Virginia e Gemma ficará com o papel de Vita. O filme será dirigido por Chanya Button (Burn Burn Burn) com base em uma peça de teatro escrita por Eileen Atkins, chamada Vita and Virginia, que estreou em 1992. O roteiro do longa foi escrito pela própria Eileen em 2000.

Gemma e Vita

O relacionamento entre as duas escritoras começou em 1922 e durou por cerca de uma década, apesar de elas terem continuado amigas até a morte de Virginia, em 1941. O livro Orlando – Uma Biografia (publicado no Brasil pela Companhia das Letras), lançado por Virginia em 1928, foi dedicado a Vita.

“A princesa e a costureira”, um conto de fadas nacional com protagonistas lésbicas.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015 0 comentários


São Paulo, SP – Era uma vez uma princesa chamada Cíntia, que havia sido prometida em casamento para o príncipe Febo, do reino vizinho. Perto da data da cerimônia, vai fazer seu vestido – e descobre que, na verdade, o amor de sua vida é a pobre costureira Isthar.

Após se abrir para os pais, a princesa é presa em uma torre. Sua amada, então, tem de convencer o rei a lhe dar a mão de Cíntia.

Esse é o enredo de “A princesa e a costureira”, livro infantil que a psicóloga Janaína Leslão lança, em dezembro, pela editora Metanoia. Voltado para crianças e pré-adolescentes a partir dos dez anos, é o primeiro conto de fadas nacional com protagonistas lésbicas.

No exterior, livros com a mesma temática causaram polêmica recentemente. Em agosto deste ano, a prefeitura de Veneza, na Itália, proibiu que as escolas públicas adotassem os livros “Piccollo uovo” (pequeno ovo), que traz um pinguim com dois pais e “Jean a deux mamans” (Jean tem duas mamães), por considerá-los nocivos à família.

Janaína conta que decidiu escrever um livro que falasse sobre homossexualidade depois de perceber que não havia material para que os pequenos tivessem contato com o assunto.

Assim surgiu a história de Cíntia e Isthar, que Leslão escreveu em 2009 e só conseguiu publicar agora. “Procurei umas 20 editoras, mas só recebi recusas”, conta. “Sou uma escritora desconhecida e a história é ousada; era encarada como difícil”.

Fonte: Gazeta de Alagoas, Conto de fadas traz questão de gênero, Angela Boldrini (FolhaPress), 29/11/2015

Fundada a Hoo Editora especializada em ficção LGBT

quarta-feira, 21 de outubro de 2015 0 comentários

Juliana Albuquerque, cofundadora da Hoo Editora

Casal cria editora especializada em livros LGBT e mira grande mercado

Nos quase dez anos de carreira no mercado editorial —atuando em grandes editoras, como Ática e Saraiva—, uma sensação incômoda tem acompanhado Juliana Albuquerque: livros com temática LGBT são coisa rara nas livrarias.
Entre em qualquer grande loja e pergunte ao vendedor se ele tem algum título de literatura LGBT. Ele indicará, no máximo, uns três títulos", diz.
De olho nessa lacuna, ela e o marido, Marcio Coelho, fundaram, em setembro, a Hoo Editora, casa voltada exclusivamente à ficção LGBT –mas não exatamente uma editora de nicho, como afirma a publisher.
O que queremos é que a temática LGBT esteja na história não como exceção, mas, sim, de maneira natural, como na sociedade", diz. "A vida não é heteronormativa. A vida é muito mais diversa que isso".
Segundo Juliana, nas obras os protagonistas não serão sempre gays, as cenas de amor não envolverão obrigatoriamente pessoas do mesmo sexo e os relacionamentos nem sempre serão homoafetivos. "Queremos elementos do universo LGBT nas histórias, independentemente de serem histórias sobre gays, escritas por gays ou algo assim."

A proposta da nova editora atraiu a atenção de escritores. Quatro dias depois de um post público em seu perfil no Facebook, em setembro, a Hoo recebeu oito originais; com uma semana, o número subiu para 15. "Até o momento recebemos 50 propostas", diz Juliana.

Os planos da nova editora são audaciosos: a Hoo lança em novembro os dois primeiros títulos —"Nicotina Zero", romance de Alexandre Rabelo, e "Torta de Climão", HQ de Kris Barz (R$ 29,90 cada um). Depois, quer colocar no mercado um novo livro por mês até junho de 2016.
Os livros terão tiragem inicial de 3.000 exemplares", diz Juliana. Uma quantia similar à média praticada no mercado, mas incomum para títulos LGBT —que geralmente têm tiragens mínimas e obras vendidas apenas on-line. "As grandes lojas do varejo apostaram na nossa ideia e pedem, em média, 300 exemplares cada", afirma.
Juliana diz que, entre os próximos lançamentos, há títulos do gênero "young adult" (um infantojuvenil sem ingenuidade). Pode surgir aí um "A Culpa é das Estrelas" na versão LGBT.
Se o best-seller de John Green trouxesse um casal gay, provavelmente receberia mais holofotes, mas não de maneira positiva", afirma.
Fonte:  FSP, Ilustrada, por Rodolfo Viana, 20/10/2015

No livro infantojuvenil A Bela e a Adormecida, quem beija a Bela é Branca de Neve

quinta-feira, 15 de outubro de 2015 0 comentários

'A Bela e a Adormecida': Em adaptação de Neil Gaiman, princesa é acordada com beijo de Branca de Neve
No livro infantojuvenil A Bela e a Adormecida, a protagonista Bela Adormecida não é resgatada por um príncipe – quem a acorda do sono com um beijo é Branca de Neve.

A nova releitura dos clássicos contos de fadas foi escrita pelo mestre da fantasia Neil Gaiman e desenhada por Chris Riddell, ilustrador de livros infantis e cartunista do jornal The Observer.

Nesta nova e sombria versão, uma jovem rainha prestes a se casar parte em uma jornada, na companhia de três anões, até um reino distante em que, segundo boatos, uma princesa enfeitiçada dorme o sono eterno.

Em entrevista ao Telegraph, o escritor disse:
Não tenho paciência com histórias em que mulheres são resgatadas por homens. Você não precisa ser salvo por um príncipe".
Gaiman é conhecido por roteirizar a história em quadrinhos   nas décadas de 1980 e 1990, além de ter escrito bestsellers como O Oceano no Fim do Caminho (2013), O Livro do Cemitério (2008) e Deuses Americanos (2001).

Riddell tem extenso trabalho como ilustrador e é conhecido pela trilogia Otolina no Mar (2010), Otolina na Escola (2008) e Otolina e a Gata Amarela (2007), por exemplo.

A Bela e a Adormecida chega às lojas pela Rocco Jovens Leitores em 7 de novembro, custando R$ 49,50. A tradução é de Renata Pettengil.

Fonte: Brasil Post,  por Caio Delcolli, 14/10/2015


O aparelho de dentes

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012 0 comentários

Beija-lhe as partes todas e no seu regaço, banhado de prazer,
mergulha os dedos cúpidos, a língua voraz.

Por Stella Ferraz

A última visita despediu-se já noite alta, agradecendo uma vez mais o convite para o sarau. Ao retornar, a dona da casa passou pela sala recolhendo os derradeiros copos, os cinzeiros cheios, indagando aos gatos quem a haveria de ajudar. Na cozinha, empilhados os pratos à espera da água e do sabão.

Toca a campainha. Uma, duas vezes com urgência.

Quem seria? Se pergunta a dona. Uma esquecida decerto, que de tudo se esquecem em sua casa. Como aquele aparelho de dentes que a empregada, bissexta no arrastar dos móveis, achou sob o sofá. De quem seria?

“Já vai”, diz a dona da casa, falando de dentro. Entre o tocar a campainha e o abrir o portão vai toda a distância de um quintal comprido, alumiado por tochas e transbordante de plantas. “Já vai”, avisa a dona. Não com um grito, mas num sussurro escancarado, porque é noite alta e a vizinhança dorme. Lá no céu daquela sexta-feira, 13 nos dias do mês e segunda nas feiras de sexta, impera alta e cheia a lua.

Aberto o portão, atrás da folhagem densa e vasta que encobre a entrada, uma figura jovem, elegante e muito branca se apresenta.

“Vim buscar meu aparelho de dente”, demanda sem aspereza, numa voz que é mais um pedido de doce exigência.

A dona da casa que aqui dispensa o nome, porque é sabidamente a dona, por termo passado e lavrado em cartório, olha incrédula a figura atraente que tem por diante. Não se recorda de sarau que a jovem houvesse frequentado, poema que houvesse lido, música que tocasse ou palmas que batesse emocionada.

“Meu aparelho de dente”, insta a jovem de olhos súplices postos na dona da casa, que vencida pelo rogo, se esquece de inquirir o básico, qual seja: quem seja que lhe bate à porta. Começa por lhe abrir o portão, depois leva-la à porta, introduz à sala, encaminha pelo corredor e com ela adentra o quarto onde jaz sobre o criado mudo calado e aguardante o aparelho de dente.

A jovem se lança sobre o objeto com a sofreguidão de quem há muito o procura.

“Preciso dele para que meus dentes fiquem direitos” confessa num sorriso tímido a mostrar magnífica a dentadura sem falhas, os dentes, os de cima e os de baixo, alvos, circundados pelos caninos, domados dentro da branca fileira.

Com cuidado a jovem envolve o aparelho num guardanapo que solícita lhe oferece a dona da casa. E guardado o objeto, à dona da casa volve sua atenção. Os olhos antes tímidos transmudam-se em sedução e brilho como se só agora pudessem notar a dona em cuja casa estava. E a anotar cada traço de sua tez, os olhos doces, a pele pálida, jamais tanto quanto a sua, as mãos pequenas, as covinhas graciosas no rosto.

Num gesto delicado, passa-lhe a mão pela face, desce-a pelo pescoço, acaricia-lhe a nuca, que essa dona de casa é especial, não somente por lhe entregar seu aparelho, mas por guardá-lo com apreço longe da poeira.

O gesto delicado, falou-se em delicado?, delicado fora, pois agora se reveste de um calor intenso que seduz imperioso a dona da casa, lhe inunda a fronte, umedece as mãos, desce por entre os seios, tropeça no umbigo e se instala fremente e pulsante entre as pernas. A dona da casa sente arder em si o desejo de que algo aconteça e em acontecendo se faça sempre e mais e fundo.

A jovem a toma nos braços, nos seus roça os lábios, beija-lhe os cabelos, suspira resignada junto ao pescoço, tenro e saboroso, por onde vê pulsar quente e desavisada uma veia. Freme o desejo de si e de seus dentes que um dia ainda hão de ser magníficos e contundentes, por obra e graça do aparelho.
Despe-lhe à dona da casa o suéter e com dedos vorazes e língua cúpida ganha seu colo, diverte-se em saborear os mamilos escuros e doces, tesos de querer mais. Com eles brinca os dedos, confere sua leveza e seu ardor e desce, desce sempre, gozando das delícias da forma, do veludo da pele, do latejar da carne, desnudando, retirando à dona da casa o pouco que lhe resta até restar à dona tão nua e ardente apenas o seu muito querer.

Beija-lhe as partes todas e no seu regaço, banhado de prazer, mergulha os dedos cúpidos, a língua voraz. E beija e mordisca, e lambe e abraça, arredonda nos lábios o que de mais caro há para a dona da casa que em tremores de gozo se abre por inteira. E geme e chora e pede sempre mais, até saciar-se num cansaço prazeroso.

E aí e então entra por uma fresta o primeiro raio de sol. O abraço caloroso se esvaece e se transforma abrupto num ruído de asas a bater-se contra a janela até achar um canto por onde fugir dos gatos que se aproximam ameaçadores. Mas a dona da casa nada vê, pois, saciada e quieta, dorme o sono de quem sabe cuidar dos objetos dos outros.

Stella C. Ferraz é autora dos romances lésbicos Preciso te ver, A Vilas das Meninas e Pássaro Rebelde, publicados pela ed. Brasiliense.  Originalmente publicado no site Um Outro Olhar e 25/10/05.                  

Cate Blanchett e Mia Wasikowska vivem romance em Carol

sexta-feira, 18 de maio de 2012 2 comentários

Mia Wasikowska e  Cate Blanchett viverão romance nas telas

Adaptado, por Phyllis Nagy (Mr. Harris), do best-seller O Preço do Sal (The Price of Salt), da célebre escritora lesbiana Patricia Highsmith, e dirigido por John Crowley (Intermission, Boy A), o filme Carol  trará Cate Blanchett e Mia Wasikowska como duas mulheres bem diferentes que se apaixonam na Nova York dos anos 50.

Uma delas é uma garota (Wasikowska-Therese), na casa dos 20 anos, que trabalha em uma loja de departamentos e sonha com uma vida melhor; a outra (Blanchett-Carol), uma esposa em processo de separação de um casamento sem amor e lutando por manter a ligação com a filha. As duas se encontram na loja de departamentos, quando Carol vai comprar um presente de Natal para a filha, e iniciam um romance improvável mas que acaba em final relativamente feliz. Relativamente porque o marido de Carol, ao descobrir o relacionamento sáfico da ex-esposa, vai à Justiça a fim de tirar-lhe a custódia da garota. 

Patricia Highsmith
Patricia Highsmith 
Patricia Highsmith se celebrizou por seus contos de mistério, violência e assassinatos, alguns levados às telas por mestres do suspense como Alfred Hitchcock, entre outros diretores. (Lembram, a propósito, de O Talentoso Mr. Ripley, do diretor Anthony Minghella?). Em O Preço do Sal, contudo, decide abordar o o tema dos relacionamentos entre mulheres de uma perspectiva positiva. O livro, escrito por Highsmith, em 1952, sob pseudônimo de  Claire Morgan, causou escândalo à época, porque, além do tema, ao contrário do usual, não condenou as amantes ao desprezo da sociedade e à tragédia, embora tenha imposto um custo elevado para Carol. Foi naturalmente um hit entre as sapatas americanas do período.

Co-produzido pelas empresas Number 9 Films e a Film4, Carol começa a ser rodado  a partir de fevereiro de 2013 em Londres e Nova York. Tem tudo para voltar a ser hit da sapataria agora globalizada e dar o que falar como o seu original escrito. No MediaFire é possível baixar uma tradução do livro para Word.

Os versos lesbianos de Manuela Amaral

terça-feira, 1 de maio de 2012 4 comentários


Manuela Amaral
Manuela Amaral (1934-1995) é uma poetisa portuguesa contemporânea cuja obra é marcada pela temática do amor entre mulheres. Quando publicamos a primeira edição das poesias que seguem abaixo, em meados de 2008, havia poucos dados online sobre ela.

Hoje há um pouco mais, contudo, preferimos deixar como referência o site Manuela Amaral In Memoriam de uma leitora, Tergon, que diz ter conhecido a poeta pessoalmente. Suas poesias são eróticas e belas.  Confira abaixo.


MODELAGEM
Moldei meu corpo
à tua forma nua
e de nós duas
nasceram madrugadas

AMOR GEOMÉTRICO
Angulosamente ternas
goticamente nuas
somos a geometria do amor.

TERRA VIRGEM
Terra virgem onde desbravei caminhos
Terra aberta onde lancei sementes
Terra incendiada
Vulcão
Cratera
Terra-de-hoje
Símbolo de outras eras
Terra de ninguém que me pertence.

APOGEU
Mulher em minha cama
Mulher quase animal
Mulher que se transborda
que me sobra
e chega
Mulher deitada no meu corpo insónia.

MULHER DE MIM
Mulher secreta
direita ao meu encontro
Meu espasmo de infinito
Meu canto
quase grito
Mulher só-minha
inventada em espanto

PARA ALÉM DO AMOR
E muito mais importante do que o nosso orgasmo
é a ternura-depois
o ficarmos abraçadas
o não dizermos nada
o tomarmos um uísque
às cinco da manhã.

ACTO CRIADOR
Com gestos pagãos
dou forma-mulher
à tua estatura
e faço escultura
ao longo das mãos

Num golpe de mestre
renasço-te virgem
em obra criada
Já não és mulher
És só o fluido
que escorre de mim
ideia
vertigem
Depois uma fúria qualquer
começa a alastrar-se
em todo o teu corpo
Um vento selvagem
possui os teus braços
as pernas
o ventre
Um grito demente
percorre-te a voz
E és volúpia
o espaço
e a noite

POEMA VERTICAL
Abrimos os corpos. Rasgámos silêncios.
Na mesma vertigem nós fomos o espaço
Nós fomos a sede
Nós fomos a fonte
Abrimos distâncias. E tudo inventámos.
A vida e a morte num gesto de febre
subiam em compasso
em tempo de espera
 E a luta
 E a raiva
 Nas nossa artérias um sangue mais quente
 e o teu movimento em ritmo louco
 E a minha renuncia de não ser mais eu.
 De ser o teu corpo. De ser a tua carne
 Baloiço de membros
 de pernas e braços
 Mulher que eu embalo
 que guardo em meu ventre
 que bebe de mim
 a quem eu me dou
 de quem me alimento
 Mulher incarnada
 na minha loucura
 Um grito. Uma pausa. Um gesto mais lento.
 E a vida a esvair-se
 num estertor da morte
 Depois o cansaço no espasmo da noite
 E nós renascidas
 E livres no tempo.

AUTO DE FÉ
Não me
arrependo dos amores que tive
dos corpos de mulher por quem passei
a todos fui fiel
a todos eu amei

Não me arrependo dos dias e das noites
em que o meu corpo herói ganhou batalhas
A um palmo do umbigo eu fui primeira
a divina
a deusa
a verdadeira mulher - sem rival

Amei tantas mulheres de quem nem sei o nome
eu só me lembro apenas
de abraços
de pernas
de beijos
e orgasmos
E no amor que dei
e no amor que tive
eu fui toda mulher - fui vertical.
Eu fui mulher em espanto
fui mulher em espasmo
fui o canto proibido e solitário
Só tenho um itinerário Amor-Mulher

Cordéis contra o preconceito

segunda-feira, 9 de abril de 2012 1 comentários

cordel
Salete Maria
Entrevista com Salete Maria, do blog Cordelirando, sobre seus cordéis inovadores que atacam a homofobia

UOO: Salete, primeiro fale um pouco de você: sua idade, etnia,  sua profissão, formação, cidade onde vive, se é casada ou solteira, etc.
Salete Maria (SM): Sou Salete Maria, cordelista, brasileira. Moro em Juazeiro do Norte, Ceará, cidade considerada a Meca do Sertão em face da figura mítica do Padre Cícero Romão Batista. Nasci em São Paulo por força de um problema social muito sério: o desemprego que, agravado pela seca, assolou o nordeste do país e tangeu meus pais, assim como seus conterrâneos, para o sudeste em busca de “uma vida melhor”. Toda minha ascendência é nordestina. Sou bisneta de romeiros pernambucanos, neta de cearenses analfabetos e filha de resistentes sociais. Meu pai é um lavrador que em São Paulo virou pedreiro e minha mãe é uma camponesa que em São Paulo foi faxineira. Vim ao mundo em 1969, mais precisamente no dia 7 de março. Tenho cinco irmãos e uma filha. Sou advogada, professora universitária e militante de direitos humanos.  Por conta da minha história de vida, desenvolvi a compreensão de que o direito se constrói nas lutas sociais, com muita peleja e poesia. Defendo o pluralismo jurídico e literário e coloco minha formação e minha arte a serviço das causas dos excluídos e marginalizados. Sou solteira e atualmente desenvolvo estudos sobre gênero e direito, em nível de doutorado, na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Escrevo contos, poemas e, sobretudo, cordéis.  

UOO:  Fale um pouco sobre o cordel: sua origem, suas características, seus principais expoentes. 
SM: Eu não conheço consenso acerca da origem da literatura de cordel. Muitos afirmam que é de origem européia. Todavia, já ouvi “vozes sábias” dizerem que esta literatura já existia  desde a época dos povos conquistadores de origem greco-romana; havendo chegado, por volta do século XVI, a península ibérica, mais precisamente a Espanha e Portugal. Nestes lugares este tipo de literatura recebia o nome de “pliegos sueltos”, “folhas soltas” ou “volantes”. Aqui no Brasil o cordel chega com os colonizadores e se instala, primeiramente, na Bahia, em Salvador, e depois se expande para o resto do nordeste.

Muitos sustentam que a característica fundamental do cordel é o fato de ele ser uma espécie de poesia popular, impressa e divulgada em folhetos ilustrados com xilogravura. Todavia, já existem controvérsias sobre isto, uma vez que este “popular” é bastante discutível, sendo também possível a utilização de outras formas de ilustração, tais como desenhos e clichês grafados em zinco, por exemplo.

Dizem que o cordel ganhou este nome porque os folhetos eram expostos amarrados em cordões, estendidos em pequenas lojas de mercados populares ou até mesmo nas ruas, em Portugal.  O  custo do cordel, tal como foi e ainda é produzido, é bastante baixo, comparado com o custo de outras literaturas. Ademais, geralmente estes folhetos são vendidos pelos próprios autores. O cordel ainda goza de um certo prestígio em estados como Pernambuco, Ceará, Alagoas, Paraíba e Bahia. Dizem que tal sucesso é atribuído ao baixo preço e ao tom jocoso presente na narrativa da maioria dos trabalhos. Em geral, os temas tratam de fatos que vão desde a vida cotidiana até grandes fenômenos como secas, cangaço, religiosidade, heroísmo, milagres, festas, política, disputas, etc. Todavia, já existem cordelistas no Brasil discutindo e re-significando este tipo de literatura, inclusive propondo uma crítica ao cordel tradicional, como é o caso da Sociedade dos Cordelistas Mauditos, da qual eu faço parte.

cordelQuanto ao modo de apresentação, ainda é possível se encontrar cordéis sendo acompanhados pela viola em recitais públicos, porém em menor quantidade.
Quanto aos ditos expoentes, pode se dizer que os livros e pesquisas sobre cordel, em consonância com outras formas de historiografia, confere maior visibilidade aos poetas homens, uma vez que a maioria dos entendidos e experts neste campo só destaca os grandes vates, dando a entender que não existem mulheres cordelistas no mundo do folheto. E isto também se reproduz na fala e na prática de muitos amantes do cordel ou até mesmo de respeitados e reconhecidos  produtores deste gênero literário. Uma prova disto é o fato de que a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, sediada no Rio de Janeiro registra entre os “imortais” ocupantes das 40 cadeiras, apenas seis mulheres, cuja produção, no meu entender, se apresenta num tom bastante favorável à manutenção deste status quo; valendo destacar que no estatuto desta Academia, apenas 25% de suas cadeiras estão reservadas a não-moradores da capital carioca, ou seja, não há apenas um desequilíbrio na representatividade feminina, há também uma exclusão de ordem geopolítica que impossibilita o ou a cordelista da margem de ser reconhecido pelo cânone.

Sobre os grandes nomes, se você perguntar a qualquer pesquisador ou mesmo cordelista “bem informado”, vão dizer que o poeta da literatura de cordel que fez mais sucesso até hoje foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), que deve ter escrito mais de mil folhetos. 

No entanto, existem muitos poetas por este Brasil afora, mormente no nordeste do país, com excelentes produções, porém ainda sem oportunidade de apresentar seu trabalho. 

UOO: O cordel é uma expressão artística tipicamente nordestina, mas também se encontram cordelistas em outras partes do Brasil. Quais seriam e quem são os artistas mais conhecidos.SM: No Brasil, realmente, o cordel tem sido mais produzido no nordeste, onde ele chegou primeiro, se instalou e encontrou um ambiente fértil para sua expansão e apreciação. Pernambuco, Paraíba e Ceará se destacam entre os estados onde sua presença é mais forte. No Ceará, a região do Cariri, onde eu moro, é um verdadeiro celeiro de produção de literatura de Cordel. É na cidade de Juazeiro onde ainda existe em pleno (porém difícil) funcionamento a Gráfica Lira Nordestina, grande patrimônio e rico legado da produção de cordel no país.

Por outro lado, e sobretudo por conta do êxodo, das diásporas às quais já me referi, o cordel segue sendo apreciado e confeccionado em outros cantos do país. Em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas é possível encontrar cordel em espaços e feiras de produtos nordestinos.

Como disse, são mais conhecidos os cordelistas homens, havendo sempre o destaque nas diversas obras sobre a temática para poetas como Leandro Gomes de Barros (1865-1918) e João Martins de Athayde (1880-1959), enquanto precursores. As obras em geral e a imprensa oficial têm dado destaque ainda, dentre tantos, aos seguintes nomes: o baiano Antonio Teodoro dos Santos (1916), o pernambucano Apolônio Alves dos Santos (1926); o cearense Arievaldo Viana Lima (1967); o paraibano Cícero Vieira da Silva (1936); o pernambucano Caetano Cosme da Silva (1927); o alagoano Enéias Tavares dos Santos (1932), o paraibano Francisco das Chagas Batista (1882); o pernambucano Francisco de Souza Campos (1926); o paraibano Francisco Firmino de Paula (1911); o paraibano Francisco Sales de Arêda (1916), o pernambucano Inácio Carioca (1932), o pernambucano Jota Barros (1935), o baiano João Damasceno Nobre (1910); o sergipano João Firmino Cabral (1940), o alagoano João Gomes de Sá; o cearense João Lucas Evangelista (1937); o paraibano João Melchiades Ferreira da Silva (1869); o paraibano Jose Camelo Resende, o pernambucano José João dos Santos, conhecido como mestre Azulão, o pernambucano Zé Pacheco, o pernambucano Manoel Monteiro, o baiano Minelvino Francisco Silva, o paraibano Silvino Pirauá, dentre outros. Eu, particularmente li e bebi muito nestas fontes e tenho muito apreço e devoção por Patativa do Assaré. 

Todavia, já existem importantes estudos acadêmicos sobre a produção feminina na literatura de cordel, merecendo destaque a pesquisa da professora da Universidade Federal do Ceará, campus Cariri, Francisca Pereira dos Santos, (Fanka) que também é cordelista e tem  trabalhos publicados sobre  esta questão. Esta pesquisadora já cataloga mais de 30 mulheres produtoras, sendo que a maioria delas mora no nordeste do país. Em sua obra intitulada Romaria de Versos sobre mulheres cearenses autoras de cordel, ela destaca as poetisas Arlene Holanda, Mana, Josenir Lacerda, Maria Anilda, Maria do Rosário, Maria Ivonete, Maria Luciene, Maria Matilde, Maria Vânia, Bastinha e eu. 

Com vistas também a provocar um debate sobre este problema há um cordel meu intitulado MULHER TAMBÉM FAZ CORDEL, que pode ser acessado em nosso blog. Neste cordel contamos a história do início da produção escrita de cordel pelas mulheres no Brasil, mostrando que a primeira a publicar um folheto teve que assinar com pseudônimo masculino, nas primeiras décadas do século passado. Todavia, como as maioria das mulheres fora condenada ao analfabetismo por muito tempo, isto não quer dizer que elas não faziam poesia. Minha avó mesmo, como já disse, sempre recitou e sempre criou, porém no campo da oralidade, já que este era o seu único e possível lugar de manifestação.

cordel
 Existem muitas mulheres escrevendo cordel hoje no Brasil, dentre as quais eu me incluo e sou apresentada como um diferencial, mas não apenas por ser uma mulher escrevendo cordel, mas por ser uma mulher que escreve cordel sobre temáticas femininas, inclusive visibilizando, por este veículo, as mulheres lésbicas.

UOO: Agora nos fale um pouco sobre como se envolveu com cordel.
SM: Bom, eu sou neta de D. Maria José e sobrinha de Zé Alexandre. Ela poeta, cordelista, cega e analfabeta que “dizia” sua poesia e a de outras pessoas que ela escutou durante a toda a vida. Faleceu aos noventa anos, em 2003, sem nunca ter aprendido a ler ou escrever. Foi a primeira mulher a fazer versos que eu conheci. Escutei muito ela recitar. Li muitos cordéis pra ela também.
Meu tio Zé Alexandre mora também em Juazeiro do Norte, é um grande poeta, faz rimas primorosas e muito me influenciou com seus rabiscos e sua sensibilidade poética, já que ele quase não publica. Sempre li para meus parentes da zona rural que, em regra, ou não sabiam ler ou liam muito pouco, e tinham na literatura de cordel uma atividade de deleite ou mesmo um veículo de notícias. Comecei lendo, depois fui produzindo e hoje tenho vários títulos publicados e dois deles premiados.

UOO: Quantos cordéis você já compôs e onde os divulga, além de por seu blog Cordelirando? 
SM:   Tenho mais de quarenta cordéis publicados. Mas tenho muito mais compostos. Nem sempre posso publicar. Nem sempre publico logo que escrevo. Costumo divulgar nos eventos, faço doação para pesquisadores, admiradores e outros cordelistas. Nunca escrevi pensando que as pessoas pudessem apreciar o meu texto porque é um texto muitas vezes polêmico, carregado de paixão e luta, muito intertextual. Através do meu cordel eu dialogo com várias outras literaturas e formas de arte. Escrevo também cordel pensando na música, na cantoria e no teatro, enfim. Tenho o blog intitulado Cordelirando onde publico desde 2007. É um espaço de divulgação.

Mas eu gosto muito também do cordel impresso, da capa, do formato, enfim, da estética real. Recentemente uma grande cantora paraibana, chamada Socorro Lira, resolveu, estimulada por duas grandes amigas em comum, musicar meu cordel intitulado MARIA DE ARAÚJO E SEU LUGAR NA HISTÓRIA (ou a Beata Beat Cult). Este meu cordel trata da história de uma beata lá de Juazeiro do Norte que ao receber a hóstia em comunhão protagonizou um “milagre” que fez com que o Padre Cícero se tornasse o grande taumaturgo do nordeste.

O fato é que a beata fora secundarizada na história, e eu busco narrar o acontecido, num texto teatral irônico, provocativo, dramático, que mistura bendito e embolada, dando visibilidade a esta mulher que era e ainda é um ser marginal na grande história da minha terra. Pois bem. Socorro Lira, ao musicar este cordel, sob a direção da baiana Gal Meirelles, gravou um DVD que vai ser lançado até o final deste ano, junto com uma coletânea de 8 cordéis meus. O projeto recebe o título de dois outros cordéis meus: CORDELIRANDO e MULHER TAMBÉM FAZ CORDEL.

Além disto, atores juazeirenses, tais como Joaquina e André de Andrade têm feito leituras dramáticas do meu trabalho, com apresentação pública em projetos patrocinados pelo Banco do Nordeste do Brasil-BNB. A poetisa potiguar Dath Haak   também recitou e disponibilizou na internet três dos meus cordéis, dentre eles Lesbecause e do Direito de ser gay.  Eu mesma, apesar da timidez, sempre recito em rodas de amigos e às vezes antes de ministrar algumas palestras.

UOO: Qual o tema principal de seus cordéis? E quanto eles se diferenciam dos cordéis tradicionais?
SM:   Veja, no ano 2000 foi criada a Sociedade dos Cordelistas Mauditos, em Juazeiro do Norte. Esta turma é composta por jovens poetas de grande entusiasmo. Integrei esta Sociedade desde o seu nascedouro. Mas antes disto, desde 1996, eu já publicava. Escrevo há bastante tempo. Tenho cordéis sobre variados temas. Na sua totalidade são sobre questões marginais e periféricas. A maioria sobre mulheres, relações de gênero, homossexualidade, cidadania e afins. Também já falei de assédio moral, velhice, analfabetismo, violência, saúde, política, etc. Mas a temática preferencial é a das mulheres e homossexuais. 

Antes de ser da Sociedade, eu já falava das temáticas que os cordelistas mauditos abordam. Pensamos que a diferença entre nós e os ditos tradicionais se dá tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, inovamos com a capa, que além da xilogravura usamos colagens, desenho, foto, etc. E às vezes ilustramos até as folhas internas do cordel. No conteúdo, procuramos abordar de modo crítico, denunciativo, propositivo e emancipatório questões que os cordéis tradicionais tratam no sentido de manter o status quo. Demonstramos a questão da violência contra a mulher, do discurso homofóbico, machista, racista, sexista presente em muitos dos clássicos da literatura de cordel.

Atualmente nossa ‘sociedade’ tá meio dispersa porque os cordelistas precisam trabalhar para sobreviver, mas mesmo assim eu gosto de destacar o valor dos meus colegas. Poetas como Hélio Ferraz, Fanka, Soneca, Batata, Orivaldo, Nicodemos, dentre outros, são os poetas ditos mauditos do Cariri. E são muito bons. Logicamente que de tão mauditos têm divergências entre si, mas isto faz parte da proposta. Eu tenho sido a que mais tem produzido e a que antes da sociedade já tinha este espírito de poesia social e crítica. Fizemos um manifesto que dizia mais ou menos assim: A nossa comunicação se dá através da poesia de cordel, traço da nossa identidade nordestina. Odiamos tecnicistas sem sentimentos literários. Somos contra o lugar comum da globalização que cria signos massificantes e uniformiza o comportamento estético. Nosso movimento movimento pretende, sob uma ótica intertextual, utilizando vários códigos estéticos, redimensionar a literatura de cordel para um campo onde todas as linguagens sejam possíveis. Não somos nem erudito nem popular, somos linguagens. Entramos na obra porque ela está aberta e é plural. Somos poeta e guerreiros do amanhã. A poesia escreverá, enfim, a verdadeira história. Viva Patativa do Assaré e Oswald de Andrade.

De 2000 para cá eu andei revendo algumas questões. Na verdade, não sou exatamente eu ou os mauditos que nos apresentamos como os “diferentes”, são os “iguais” que nos acusaram de não saber fazer cordel, de trair o cordel tradicional. Muitos sustentam que  nós não fazemos literatura de cordel porque nós estamos quebrando tabus e questionando  dogmas do cordel. Mas isto já é tão previsível que meu cordel tem sido acusado de muitas coisas. Eu mesma já sofri ameaça até de morte por causa dos cordéis, já fui ameaçada de processo. Mas eu vou e faço outro cordel ou então parafraseio o poeta Pessoa e indago: viver é preciso? Viver para mim só é possível e só é necessário fazendo poesia, vivendo poesia, dizendo poesia. Enfim, cordelirando....

UOO: Você já compôs cordéis específicos sobre a questão homossexual e lésbica. Quais são?
SM: Compus vários cordéis ditos gays, sim. Falo sobre o que me mobiliza, sobre o que me diz respeito. Tudo que é humano nos diz respeito, disse o filósofo. Os homossexuais, homens e mulheres, dizem que sem eles os direitos não são humanos e eu poetizo: Sem os homossexuais não existe humanidade, não existe poesia. Então, eu escrevo sobre isto, sim.

Meu primeiro cordel ostensivamente gay eu comecei a rabiscar sozinha e aí eu resolvi convidar uma cordelista da sociedade dos mauditos, a Fanka, para produzir comigo, em parceria. O nome deste cordel é A HISTORIA DE JOCA E JUAREZ, que versa sobre um romance que se passou em 1913, na cidade de Juazeiro. Trata-se de um amor proibido entre um zabumbeiro e um jardineiro do Padre Cícero. Procuramos retratar o discurso da igreja, a hipocrisia social e intercalamos personagens fictícias com figuras reais. É um cordel romanceado publicado em 2001.

Mas existem muitos outros que escrevi sozinha, tais como O GRITO DOS MAU ENTENDIDOS que versa sobre uma assembléia de homossexuais, onde eu brinco com personagens do mundo artístico e falo de um evento onde se discute a discriminação e a violência contra gays, tudo intertextualizando com músicas que tem um sentido gay, etc.   Tem outro chamado O QUE É SER MULHER? que não é unicamente gay, mas provoca uma discussão sobre as sexualidades e há uma passagem em que eu pergunto se um homem não pode ser mulher ou se uma mulher não pode amar outra mulher e tal. Tem um outro intitulado DIA DO ORGULHO GAY, no qual eu narro a origem da data do orgulho. Tem um que se chama DO DIREITO DE SER GAY (ou condenando a homofobia) que é próprio para o teatro e que foi recitado pela poetisa Dath Haak.

Tem um que se chama LESBECAUSE onde eu faço uma ode às lesbianas. Tem o que se chama MULHERES FAZEM, onde eu brinco com possibilidades... E, por último, MARIA, HELENA que narra um romance entre duas mulheres do sertão, devotas, simples e lésbicas. Todos estes cordéis podem ser acessados no blog ou então consultados no acervo da cordelteca do SESC de Juazeiro do Norte. 

UOO: Os cordéis têm uma função didática, entre outras. Como tem sido a reação do público hétero aos cordéis de temática homo?
SM: Com efeito, o cordel tem uma função didática, educativa, sim. Para se ter uma idéia, muitas pessoas no Ceará foram alfabetizadas a partir do cordel. A literatura de cordel foi a minha primeira literatura. Todavia, muitos textos de cordel também podem trazer grandes problemas para a formação, para a educação das pessoas. Li, na infância, um cordel chamado A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho. Este cordel reproduz muito preconceito, é baseado em estereótipos de cego imprestável, inútil e de negro sujo, incapaz...   

Às vezes me torno antipática denunciando estes “clássicos” que muitas vezes são enaltecidos até mesmo por acadêmicos, mas que na verdade são textos extremamente nocivos à idéia de respeito às diferenças, etc. Tenho recebido muitos elogios e muitas críticas também não apenas pelos cordéis de temática homossexual. Mas também tenho recebido prêmios e tenho sido alvo de muito interesse por parte de pessoas que acham que faço um trabalho legal. Na verdade a minha literatura, ou o meu “cordelírio”, tem cumprido uma função política muito forte, assumida e declarada.

Eu realmente gosto e me alimento deste tipo de arte que, infelizmente ainda é bastante marginal, secundária, periférica, menor e desimportante nos círculos e circuitos literários. Por meio dela, eu cuido de questões também consideradas ácidas, inconvenientes, incômodas, etc. Porém, alguns pesquisadores no Brasil já estão investigando academicamente, em nível de especialização, mestrado e doutorado o meu trabalho. Ganhei dois prêmios nacionais de literatura de cordel que me foram concedidos pela Fundação Cultural do Estado da Bahia-FUNCEB nos anos de 2005 e 2006, respectivamente. Em Juazeiro, cidade onde moro, os gays recitam meus cordéis antes de abrir palestras, debates, etc. Há artistas dramatizando meus textos, inclusive o cordel DO DIREITO DE SER GAY, que é um monólogo num tribunal do júri.

Muitos dos meus textos são feitos para o teatro. Então, a temática homo tem chamado a atenção do público, sobretudo pelo fato de vir a partir da literatura de cordel.   A Revista Cult, de 2003, salvo engano, traz um dossiê sobre literatura gay, onde se indaga se é uma bandeira política ou um gênero literário. O professor Gilmar de Carvalho, grande conhecedor da literatura de cordel, tem um texto nesta revista onde ele fala da nossa produção, cita inclusive meu trabalho. Então, em geral, tem sido boa, algumas pessoas estão considerando a nossa produção de cordel como um todo e em especial os de temática  gay, lésbica, enfim, homossexual. 

UOO: Além de elaborar cordéis, você desenvolve outras atividades em prol da cidadania LGBT? 
SM: Veja, sou professora do departamento de Direito da Universidade Regional do Cariri-URCA, fiz opção por ser uma advogada popular, com formação em direitos humanos, estudos gênero, feminismos, mulheres, sexualidades. Concluí em 2002, uma dissertação de mestrado intitulada O Princípio da Igualdade Jurídica e a Discriminação contra Homossexuais: ações e omissões dos poderes públicos no Brasil, pela Universidade Federal do Ceará.

Elaborei os estatutos de duas ONGs Gays no Cariri cearense. Dei assessoria jurídica gratuita a estas entidades, ajudando, portanto, a construção da cidadania LGBT numa região onde há um forte componente de machismo e homofobia, mormente em face da tradição religiosa. Realizei inúmeras palestras, participei de muitos debates, escrevi e ainda escrevo textos sobre o assunto, publiquei na Revista Artemis, etc. Procuro dar minha contribuição.

Estive em Cuba dialogando com mulheres lésbicas e heterossexuais sobre gênero, direito, etc. Sou também um ser cuja sexualidade está em permanente construção. Portanto, não dou uma contribuição desinteressada. Eu, de alguma forma, também sou gay, minhas idéias, meu modo de ser e estar no mundo é marginal, é questionador, é periférico, é gay, por excelência.

UOO: Muita gente vem reclamando hoje em dia da burocratização do Movimento LGBT, apontando seu distanciamento da população LGBT e propondo atividades artísticas como forma de fazer política por uma via menos chata. O que você acha disso?
SM:  Eu penso que é por aí. A aproximação e até a própria (con)fusão do movimento LGBT com os partidos e com o poder institucionalizado muitas vezes engessa, sufoca, imobiliza. A realidade tem demonstrado isto. Não sou uma pessoa anti-partido, ao contrário, já fui até candidata ao governo do meu Estado nas eleições de 2006. Aliás, a única a defender publicamente a criminalização da homofobia e a união entre pares do mesmo sexo naquele habitat. Estou, como muita gente neste país, com um pé atrás com esta política que vivenciamos, que nos fora vendida com um discurso e que se nos apresenta de modo torto, obtuso, enfim.   

cordelTampouco faço um discurso da arte pela arte. Penso que  política e poesia é reflexão e ação constante. A discussão de tudo o que interessa aos seres vivos deve ocupar estes espaços. O discurso pela veia artística é um discurso prazeroso. Costumo dizer que faço uma poética-político-exótico-erótica. Não faço nada sem o prazer de fazer e de viver. Não suporto o amordaçamento da criatividade em nome de uma ideologia, de um edital, de uma campanha, de uma candidatura, de uma burocracia que visa domesticar e roubar a radicalidade da luta pelo respeito ao ser humano. Penso que podemos avançar dialogando com todos e todas que desejam um mundo melhor sem nos algemar, sem nos impedir de grita contra toda e qualquer espécie de opressão, institucionalizada ou não.

UOO: Por fim, deixe uma mensagem para nossas leitoras.
SM: Quero dizer que para mim foi um prazer falar para vocês. Quero seguir dialogando. Tenho um texto que diz que Um outro direito é possível. Tento construir um outro olhar sobre o mundo jurídico, e também sobre a arte em geral, sobre a literatura e em especial sobre a literatura de cordel. Ou seja, partilho com vocês da idéia de que é possível lançar UM OUTRO OLHAR sobre tudo, mormente sobre as sexualidades. Então, me encho de entusiasmo com o contato com gente que quer ser feliz, que quer amar e que pensa que a arte pode ser um modo de se publicizar isto. Obrigada por me ajudarem a seguir cordelirando sempre e mais. Um abraço afetuoso para todas.

Publicado originalmente no site Um Outro Olhar em 24/04/09

Perdas, Danos e Afins

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012 3 comentários

Autor(a): Diedra Roriz

Era um lindo fim de tarde ensolarado, ou só parecia? Michelle não sabia. Talvez, comparado aquela sensação de vazio - como se um vácuo a separasse do resto do mundo, como se o peito estivesse repleto de uma presença amputada, sufocada, com gosto escuro, sombrio - fosse realmente um lindo fim de dia.
          Estacionou o carro, soltou e ajeitou os cabelos, se olhando no retrovisor. Era uma mulher bonita, acostumada a chamar atenção. Em dias que não fossem aquele, onde um leve tremor nas mãos e pequenos e incontroláveis calafrios subiam por sua espinha.
          Ficou sentada dentro do carro, esperando. A espera... Era uma coisa que a irritava, enervava mesmo... Mas, em dois anos de casamento e uma semana de separação, já se tornara um hábito esperar por ela...
          Abriu a agenda. Tentou fazer algumas anotações. Impossível. As mãos pareciam incapazes de responder ao simples comando do cérebro. Tinha passado a semana inteira queimando nessa ansiedade febril, incapaz de qualquer coisa produtiva.
           De vez em quando olhava o relógio, tentando disfarçar a inquietude evidente. Viu quando Amanda apareceu. Ela se aproximou calmamente do carro, abriu a porta do carona e se sentou no banco ao lado de Michelle.
 - Oi. – disse simplesmente.
 - Oi. – respondeu Michelle, a voz um pouco falha, evitando se perder nos olhos dela.
 - Tudo bem?
 - Tudo. - falou quase num sussurro, numa última tentativa de não olhar para ela.
 - Eu... queria... eu... Me desculpa, Mi...
          A mão de Amanda pousou suavemente na perna de Michelle, e os lábios se aproximaram perigosamente da orelha dela, trazendo recordações que a fizeram ter um pequeno arrepio. Exatamente o tipo de reação que Michelle esperava conter.
          A última coisa que Amanda queria era ferir Michelle. A amava. Realmente. Se importava, se preocupava com ela. Mas... não tinha jeito. Estava feito. Impossível voltar atrás. E também era impossível prometer que não faria novamente, porque... era algo incontrolável, mais forte do que ela. Algo do qual ela precisava para viver.
          Uma dor enorme a atingiu. Impressa na voz de Michelle, na forma como ela se afastou bruscamente e perguntou:
 - Desculpas? Pelo que?
          Michelle queria ser firme. Precisava esquecer que a boca da outra podia fazer com que ela perdesse a respiração, que até o mais simples contato de pele provocava nela um ardor estranhamente fascinante. Não podia olhar para Amanda. Precisava manter os olhos longe dos dela, ou então.... Seria novamente sugada para o irresistível e incontrolável redemoinho de paixão...
          Amanda abaixou os olhos. Sem conseguir fitar a mulher na frente dela. Arrependida por ter sido pega, mas não pelo que tinha feito. Por quê? Por que não se arrependia? Não sabia... Apenas parecia que para ela era impossível se conter, se negar aos apelos  passageiros da auto-afirmação que encontrava na sedução e no prazer... O efeito estava na frente dela, nos olhos da mulher que amava, e que estavam... enevoados, nublados, esmaecidos...
 - Você sabe.
          Sim, Michelle sabia. Da forma mais dolorosa, humilhante e deprimente possível. Sentiu o rosto ser erguido delicadamente até os olhos encontrarem os de Amanda. Não ofereceu resistência. Na verdade, não conseguiu. Reação inerente à presença inebriante, sedutora, magnetizante da ruiva. Hipnotizada, enfeitiçada pelos olhos profundamente sedutores, que mergulharam, vasculharam, dominaram os dela com uma facilidade inquietante.
          Foi Amanda quem desviou os olhos. Michelle jamais conseguiria.
 - Eu sei que você já sabe, Mi... Mas, eu queria... Te dar uma explicação...
 - Não quero falar sobre isso.
          Amanda suspirou profundamente. No fundo, bastante aliviada. Não tinha realmente o que dizer. Nem como se justificar. Como explicar que com Michelle, se sentia fraca, sufocada, impotente? Tudo era muito sério, pesado, cheio de responsabilidades, expectativas, cobranças, que a faziam se sentir prisioneira. Enquanto que com as outras era tudo fácil, leve, inconseqüente... E por isso mesmo gerava uma satisfação irresponsável que precisava renovar sempre...
          Passou a mão nos cabelos, jogando-os para trás. Da forma que Michelle amava. O charme de Amanda era tão natural quanto respirar. E causava em Michelle arrepios impossíveis de evitar. 
          Percebendo o efeito que uma simples jogada de cabelos causava, Amanda sorriu.  Com a doçura suave, carinhosa e apaixonada que só Michelle conseguia despertar. Mordeu o lábio inferior quando estranhamente, ela não sorriu de volta. Pelo contrário, os olhos de Michelle se tornaram... cubos de gelo. Amanda reparou bem nisso, e teve medo de perguntar:
 - Mi... O que você quer?
 - Quero me separar de você.
          O sorriso de Amanda se distorceu, virando uma espécie de careta que deixava entrever dolorosamente os dentes.
          Dentes ou presas? Amanda já era uma predadora voraz quando a tinha conhecido. Nenhuma dúvida com relação a isso. Mas Michelle inocentemente pensava que ela poderia mudar, poderia... amadurecer?
          Como julgar, como saber quem na verdade era infantil? Amanda, com suas escapadas furtivas? Ou Michelle, que voluntariamente escolhera fingir que nada via? Até o momento em que o odor putrefato das não verdades tinha se tornado insuportável  - como qualquer corpo em decomposição seria. Impossível continuar fingindo que não existia.
          Principalmente depois do telefonema que tinha recebido na véspera. A menina – pela voz, parecia ser muito novinha – tinha ligado para confirmar o que Michelle já sabia. As infidelidades que Amanda – com o apoio tácito de Michelle – escondia.
          Michelle tinha escutado calada. Cada palavra. Cada suspiro. Se afogando. Puxada pelo redemoinho, o buraco negro que se formava e que a fazia perder até a noção de quem era. Precisava de ar. Precisava voltar à tona. A menina parecia apaixonada. Michelle não a culpava. Pelo contrário. Sentia por ela uma óbvia empatia. Amanda, como sempre, fazendo vítimas sem sutilezas nem remorsos,  com maestria.
           Foi Amanda quem finalmente falou. Devagar, cada uma das palavras machucando, doendo, um enorme esforço, porque... estava mentindo. Na tentativa desesperada de evitar o fim:
 - Mi, me perdoa... Foi só uma vez... Tô arrependida... Acredita em mim... Eu errei, eu sei que... É imperdoável... Mas dois anos de casamento pra você não valem nada? Mi, eu  amo você... Como nunca amei ninguém... Você é a mulher da minha vida... Sou sua, só sua, de corpo e alma... Só que nos últimos meses, você ficou tão fria... tão... inalcançável... Sei que não justifica... Mas eu sou humana... Me sentia carente, magoada, sozinha...
          Michelle riu. Uma gargalhada estrondosa, raivosa, agressiva. Jogando a cabeça para trás e fechando os olhos. E foi com os olhos ainda fechados que disse:
 - A culpa é minha então?
          De repente as duas estavam tão próximas que podiam quase sentir os lábios se tocando. Michelle fechou os olhos, querendo que Amanda a beijasse, que as bocas se colassem numa incoerente mistura de salivas, hálitos e almas. Mas o beijo não veio. Amanda não teve coragem. Michelle tinha fechado a alma para ela, parecia inatingível, distante, inalcançável...
          Michelle voltou a abrir os olhos, tentando disfarçar o estranho desapontamento que sentia.
          Impulsionada por um simples e terrível desespero, Amanda deu sua última cartada. Com um sorriso absurdamente sedutor, falou a frase que tinha conquistado Michelle anos atrás:
 - Eu desisto, se você disser que não sente nada por mim...
 Exatamente como da primeira vez. No aniversário de uma amiga em comum. Amanda tinha se aproximado, iniciando uma conversa que na verdade, não passava de um flerte nem um pouco velado. Michelle já conhecia a fama de Amanda, por isso, e só por isso – desde o primeiro momento tinha ficado de quatro – ficou evitando, resistindo ao máximo, apenas para – depois da frase irresistível, bombástica - ceder, derreter, e... se entregar. Completa e absolutamente.
 Lembranças em flash pipocaram vertiginosamente. Uma montanha russa,  um looping de emoções a atingindo como um soco no estômago só de lembrar da doçura dos beijos, das mãos, dos suspiros e gemidos, da forma intoxicante de Amanda fazer amor.
           Recordações que fizeram a resposta de Michelle sair fraca, trêmula. Nem um pouco convincente:
 - Não sinto mais.
          Propositalmente, Amanda ajeitou uma mecha dos cabelos de Michelle, prendendo-a atrás da orelha. Uma pontinha de esperança surgiu quando Michelle estremeceu com o leve toque. Amanda a olhou bem nos olhos ao dizer:
 - Acho que você tá chateada, mas... Ainda me ama, Mi... Não adianta fingir.
          Amarrada numa camisa de força como o grande Houdini. Poderia, como ele, se libertar? Mas Michelle não era a mestra das ilusões, era a paciente sem alta do manicômio mais cruel do mundo: o amor...
           Juntou todas as forças que tinha para gaguejar:
 - Eu... eu não quero mais.
          Os olhos de Amanda cintilaram. Farejando, vislumbrando, intuindo o que Michelle estava sentindo. A voz soou visceral, ardente, intensa, quando olhou Michelle profundamente nos olhos, e disse:
 - Mentira. Você me ama. Me adora. É louca por mim. E eu por você, Mi...
          Vendada e sozinha com um pé levantado na beira de um precipício. Apenas um passo a separava da queda. Um passo, ou o desequilíbrio. Fosse o que fosse, Michelle gostaria de poder se entregar deliberadamente ao abismo. Mas não podia.
 - Eu quero apagar você da minha vida, Amanda... Esquecer que você existe.
          Michelle nunca tinha visto os olhos de Amanda daquele jeito. Absolutamente secos, como se a dor fosse tão grande quanto muralhas que represassem toda e qualquer forma de lágrima.
 - Não fala assim... Por causa de um erro, de um único erro...
          Michelle nunca conseguiria se lembrar do nome de todas as garotas com quem sabia que Amanda tinha saído. Milhares, um monte delas, mesmo sendo casada com ela. E o tempo todo Michelle fingia que nada estava acontecendo... Sofria em silêncio. Sem nada transparecer. No fundo talvez já soubesse o que tinha que fazer a muito tempo. Apenas protelava porque... tinha medo. De ficar sozinha? Não... De que Amanda mudasse, se arrependesse, deixasse de ser daquele jeito com alguém que não fosse ela...
           Michelle riu balançando negativamente a cabeça. Um riso amargo, sarcástico, doído, como Amanda nunca a tinha visto fazer. Um riso que pareceu abrir uma comporta de palavras, que  jorraram furiosamente:
 - Uma única vez? Uma única vez? Tem coragem de dizer que foi uma única vez? Há meses você tava de caso com aquela menina... Fora as outras, Amanda... Muitas, tantas que pra dizer todos os nomes levaria horas... A lista é imensa! Aliás, mais fácil dizer as pessoas com quem você não dormiu nesses dois anos... Essas, minha querida, dá pra contar nos dedos...
          Fechou os olhos, as lágrimas escorrendo dolorosamente. A lembrança que teve a atravessou como um punhal. Rasgou toda e qualquer razão que ainda pudesse ter...
         Uma noite no quarto delas, em que a pouca luz do abajur deitava nos cabelos ruivos de Amanda um efeito etéreo. Ela estava de olhos fechados, e quando Michelle sentou na cama, abriu os olhos e sorriu um sorriso manhoso, meio adormecido. Quando as bocas se tocaram, o efeito de sempre -  como se o mundo, a vida, o universo mudassem, passassem a ter sentido...
          Como se pudesse ler os pensamentos de Michelle, Amanda se aproximou lentamente. Os olhos fixos nos dela. Segurou o rosto de Michelle entre as mãos, e encostou os lábios nos dela apaixonadamente. Por um instante esqueceram de tudo e apenas se entregaram aquele beijo. Desejado, incendiário, intenso... Mas que durou pouco tempo.
           Fazendo um esforço enorme para se controlar, Michelle colocou as mãos nos ombros de Amanda e a afastou. Na mesma hora em que os lábios se separaram teve vontade de puxar Amanda de volta. Segurou o volante com força, como se tivesse medo que as mãos não a obedecessem. Evitou olhar para Amanda, sabendo que se os olhos voltassem a se encontrar, a beijaria novamente.
 - Amanda, eu não tô brincando, muito menos jogando com você.
 - Nem eu.
          Aquela era a terceira vez que Amanda se sentia daquele jeito, como se uma névoa lhe impedisse de enxergar direito. A primeira vez 11 anos atrás, no enterro da mãe. A segunda vez há apenas 4 anos, no enterro do pai. Ambos pareciam pertencer a uma vida passada. E realmente pertenciam, a uma vida antes de Michelle.
          Michelle tinha entrado na vida de Amanda com a fúria de um anjo salvador, afastando todos os demônios do passado. E criando novos demônios, perigosos e desconhecidos. Mais especificamente, a certeza de que nunca mais poderia dar um salto mortal, passar de um trapézio para outro sem nenhuma proteção.
          Mas aceitava, porque toda e qualquer noção de falta de controle parecia pertencer a uma vida passada. E realmente pertencia, a uma vida antes de casar com Michelle. A única válvula de escape que tinha, era sair com outras mulheres.
 - Michelle... Por favor, me perdoa... – a voz de Amanda era sempre daquele jeito insistente, firme, exigindo respostas imediatas. Não como uma britadeira. Mais como uma goteira, que de tanto bater acabava sempre amolecendo a vontade de Michelle.
          Só que naquele momento, o celular de Amanda tocou. Insistentemente. Michelle suspirou profundamente. Antes de dizer:
 - Não vai atender? Por quê?
          Os olhos duelaram, os de Michelle esperando uma resposta. Os de Amanda tentando negar o evidente. Tão absolutamente sem graça, que não precisou de palavras para Michelle saber:
 - Porque é uma das muitas com quem você me trai.
          Se estivesse no lugar de Amanda, Michelle ficaria sem ter o que dizer. Mas não era o caso:
 - Por favor, Mi... Eu amo tanto você... Eu vou mudar, prometo...
          Amanda usou toda a usual sedução que dela emanava. Verdadeiro campo magnético, que sempre dava a Michelle a impressão de que Terra, Sol, Lua, e estrelas giravam única e exclusivamente em torno de Amanda...
 - Tarde demais... Não quero mais você.
          O olhar dela... Quase fez Michelle voltar atrás... Como um animal ferido, perdido, abandonado... E talvez fosse, na verdade. Mas Michelle não agüentava mais.
          Amanda percebeu, mas não conseguia aceitar. Ainda tentou perguntar mais uma vez:
 - É sua decisão final?
          A resposta de Michelle foi assentir com a cabeça. Sem forças para mais nada. Um sentimento de ausência, de morte, de vácuo, a corroendo por dentro.
          Viu quando Amanda abriu a porta e saiu do carro, batendo a porta com força. Viu quando Amanda se afastou em direção à praia, e ficou ali parada observando o sol que aos poucos descia no horizonte. Mas não a chamou de volta, contrariando o desejo mais verdadeiro e profundo que sentia.
          Correr com o vento se deitando na boca, a respiração intensa. O coração martelando acordes, as mãos bailando músicas inteiras. Desejos rasgados da alma arrancados com o fórceps da desilusão, traição, ressentimento...
          Perdas... Amanda as colecionava... Assim como as culpas... E medos... Eram como morcegos que a rodeavam. A arranhando no rosto, a puxando pelos cabelos... Precisava se livrar, espantar todos eles... Pisou na areia sem tirar os sapatos, caminhou até o mar num transe entorpecente. As ondas molharam os sapatos. Atirou a bolsa na areia, entrou na água até os joelhos. O sol foi sumindo, a escuridão tomando conta dela enquanto Amanda avançava, entrando mar adentro.
          Michelle ligou o carro, pisando no acelerador como se pisasse em si mesma. Ainda olhou para trás, tentando vislumbrar Amanda entre as árvores. Mas só conseguiu enxergar a total ausência de luz. Anoitecera. Uma longa noite sem estrelas.

O conto acima ganhou o segundo lugar no Concurso Nacional de Contos Lésbicos em 2008 realizado pelo Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher

Outros contos: O Dia Seguinte  Aquários 

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