Um Outro Olhar
segunda-feira, 25 de julho de 2022
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Dia Internacional da Memória do Holocausto é celebrado todo ano no dia 27 de janeiro
O Parlamento alemão vai homenagear as vítimas do regime nazista que foram perseguidas e mortas por sua orientação sexual pela primeira vez no ano que vem, disse o presidente do Bundestag na sexta-feira.
Em 27 de janeiro, Dia Internacional da Memória do Holocausto, os legisladores alemães colocarão essas vítimas "no centro da cerimônia de comemoração", disse Baerbel Bas ao diário alemão Tagesspiegel.
Desde 1996, a Alemanha celebra oficialmente o Dia da Memória do Holocausto com uma cerimônia solene no Bundestag que inclui o discurso de um sobrevivente e comemorações em todo o país.
Infelizmente não há sobreviventes para o memorial às vítimas LGB — disse Bas, acrescentando que as autoridades parlamentares estão conversando com a Federação Alemã de Lésbicas e Gays (LSVD).
Ativistas trabalham há anos para estabelecer uma comemoração parlamentar oficial das vítimas do regime nazista que foram perseguidas por sua identidade sexual ou de gênero.
Essas vítimas ainda não têm seu próprio memorial. Para tirar as devidas lições de todas as suas diferentes facetas, a história deve ser mantida viva — disse Henny Engels, membro do conselho de administração do LSVD.
Clipping Parlamento alemão homenageará vítimas LGBT+ do nazismo, por Por AFP — Berlim, via O Globo,
Escrevi vários artigos sobre Rosely, ao longo das últimas décadas, tais como Tributo a Rosely Roth, pioneira da visibilidade lesbiana no Brasil, onde resumo sua trajetória como ativista destacada que foi. E é ainda sobre sua militância que quero falar neste 28 de agosto, dia em que nos deixou há 32 anos.
Mas, no caso, mais para falar do que ela não fez ou do que de fato não lhe ocorreu. Com o crescimento do interesse por sua pessoa, em particular por sua participação na manifestação do Ferro's Bar (que vários grupos querem transformar em filme), muita fabulação vem rolando sobre sua vida e morte que vale a pena desmistificar.
Antes, mais algumas informações sobre ela. Fui contatada recentemente por uma jovem integrante de um grupo judaico LGBT que me pediu a filiação de Rosely. A partir dos dados que lhe passei, com ajuda do historiador Paulo Valadares, ela traçou a árvore genealógica dos Roth, trazendo dados bem interessantes. Assim, ficamos sabendo que sua família paterna era de origem húngara (o pai inclusive), e a materna, da Romênia. O pai de Rosely, Estevão Roth, tinha os olhos bem azuis e um sotaque peculiar. Daí provavelmente se explique os olhos esverdeados de Rosely, emoldurados por um cabelo bem preto. Rosely dizia também ter algum grau de parentesco com a Iara Iavelberg, companheira do Carlos Lamarca, mas isso não tenho como confirmar. Vale salientar, porém, que nem Rosely nem a família eram pessoas religiosas. Rosely era ateia e anarquista.
Rosely veio de uma família abastada (o pai herdou até indústria) que, entretanto, foi perdendo o status social devido, até onde sei, às estrepolias financeiras do Sr. Estevão (talvez por incompetência e/ou irresponsabilidade). A mãe, que era o esteio da família, morreu cedo de câncer de mama, e as coisas parecem ter desandado a partir daí para a família. De qualquer forma, cresceu num ambiente de classe média, estudou em bons colégios e se formou, em Filosofia, na PUC-SP, uma universidade particular.
Já em fevereiro de 1985, passou a viver de uma bolsa da CAPES, para desenvolvimento de pesquisa sobre vivências lésbicas, complementando o orçamento com pesquisas de mercado para a empresa de uma sapata. Então, entrando na fase dos reparos contra tanta besteira que leio e escuto por aí e por ali, Rosely não foi expulsa de nenhum emprego por causa de sua participação nos programas da Hebe, de sua visibilidade lesbiana. Rosely não sofreu qualquer repressão por ser uma lésbica pública, pelo contrário.
Eu costumo dizer que Rosely teve uma militância iluminada exatamente porque, contrariando as expectativas da época, nunca sofreu qualquer hostilidade sequer de parte da população que a reconhecia na rua pelos programas da Hebe. Eu mesma presenciei gente que vinha abordá-la em feiras, restaurantes, filas de cinema, sempre de forma positiva. E ela nunca me disse que sofrera qualquer tipo de problema por ser abertamente lésbica. No editorial da edição 12 do boletim Um Outro Olhar, na primavera de 1990, dedicado a sua memória, eu salientava esse aspecto de seu ativismo:
Rosely Roth e Míriam Martinho na sede do GALF/Outra Coisa (junho 83)
Também nem eu nem Rosely tivemos problemas no apartamento em que vivíamos por ela ser publicamente lésbica. Em suma, não foi por causa de qualquer hostilidade ou repressão devido a sua lesbianidade que Rosely teve os problemas psiquiátricos que a levaram ao suicídio. Tampouco nossa separação teve qualquer coisa a ver com isso, pois não foi em nada traumática, tanto que continuamos nos vendo e nos falando até seu último momento nesta vida. Traumática foi a experiência com a doença que a acometeu, não só pela doença em si, suficientemente grave, mas também pela ausência de apoio de sua família, já bem desestruturada à época, pela confusão de diagnósticos sobre seu problema e pela leviandade de quem resolveu fazer politicagem usando sua condição como pretexto (até hoje fazem, mas não perdem por esperar). Escrevi extensivamente sobre a doença que a acometeu em maio de 2021 no artigo: Rosely Roth: ouçam nossas vozes no dia mundial da pessoa com esquizofrenia.
Atualizando esta seção de reparos, cumpre salientar que Rosely foi porta-voz do GALF, mas não sua líder, pois o grupo não aceitava esse tipo de hierarquia, como bem colocado por Vanda Frias em seu texto sobre a manifestação do Ferro's Bar:
Rosely fez discursos em várias cadeiras. É bom deixar claro que ela não é e não quer ser líder do grupo, pois lutamos contra a hierarquia e o poder...
Ainda citando Vanda, o GALF era um grupo libertário e autonomista, que também não aceitava dupla militância não só em grupos e partidos como no grupo e em outros movimentos, embora procurasse manter boas relações com potenciais aliados em pontos comuns.
Por sermos um grupo autônomo, o GALF é aberto às lésbicas dos mais diferentes horizontes políticos. Ao contrário de alguns outros grupos feministas, o GALF não aceita a chamada dupla militância: isto é, batalhar dentro de um grupo e, ao mesmo tempo, dentro de um partido político. Pensamos que a dupla militância foi um dos principais fatores de enfraquecimento dos grupos feministas dos últimos anos particularmente com as eleições de 1982.
Vale ler o texto da própria Rosely, intitulado Autonomia, para ver como ela pensava a respeito do assunto. Importante salientar isso porque hoje tem gente fazendo ligações espúrias entre sua pessoa e movimentos como o atual LGBTQIA+ que nada tem a ver com o Movimento Homossexual dos anos 80 do qual Rosely foi destaque, inclusive porque ligado a partidos de correntes de esquerda com os quais ela jamais concordaria. Fora que ela nunca aceitaria também ser ligada a um movimento que vem corroendo os direitos de mulheres e gays e lésbicas de maneira efetiva e buscando heterossexualizar homossexuais. Deve estar revirando no túmulo com semelhante falsa conexão.
Outro reparo importante, Rosely nunca foi editora do Chanacomchana. Como ela era a única integrante do grupo que se assumia (só comecei a assinar Míriam Martinho na produção do Um Outro Olhar) e andava com o Chana para todo o lugar (inclusive entrevistas), colocaram-na como editora do fanzine em uma ou outra ocasião. Ninguém também ligava muito para essas coisas na época porque no movimento do período não havia ladras e ladrões como no desmovimento de hoje. De fato, Rosely era apenas colaboradora assídua do boletim, nunca teve nada a ver com sua produção. Além de escrever para o Chana, apenas levava seus bonecos para as gráficas. Rosely era boa de discurso, tinha boa presença, falava bem, mas a área de escrita não era sua praia. Todos os seus textos publicados no Chana e no primeiro número do Um Outro Olhar foram revisados e editados por mim que, aliás, era quem revisava e editava os textos de todos os Chanas. Leia aqui sobre o processo de produção do Chana.
Por último, Rosely merece ser celebrada como pioneira da visibilidade lésbica - estranho que tenham levado 30 anos para isso - e pelo que de fato foi e pensava e não usada para projetos de reescritura da História, usurpação de protagonismos e inclusive de direitos. Por exemplo, ela jamais aceitaria ser usada, a não ser em surto, para apagar a história das e dos outros protagonistas da primeira manifestação lésbica contra a discriminação no Brasil que foi lançada em 2003 como Dia do Orgulho Lésbico e tocada a várias mãos. Mas ela está sendo usada para isso porque não pode se defender.
Enfim, Rosely sempre começava suas cartas dizendo "Querida Míriam, amiga do coração!" E, hoje, eu lhe respondo:
Querida, Rosely, amiga do coração, apesar do tanto que fizeram para nos separar e apagar sua memória, eu consegui mantê-la viva na lembrança não só das lésbicas, mas também da História deste país. Hoje as mesmas que só faltaram dar tiro em nossas cabeças, quando foi lançado o dia do orgulho lésbico, dizendo inclusive que a data era mórbida porque você havia se suicidado, estão aí com sua hipocrisia visceral falando do quanto lhe admiravam, participando de homenagens a sua pessoa, homenagens verdadeiras como notas de três reais. Agora tentam inclusive usurpar a manifestação do Ferro's, onde não estiveram, e até o Chana com o qual nunca sequer colaboraram. Faz de conta que a gente não lembra o quanto aprontaram contra nós. Mas continuamos aqui para desafinar do coro dos contentes e permitir que você descanse em paz. Que o céu, para onde vão os puros de coração e os idealistas, continue lhe sendo uma morada acolhedora e terna. Você merece. Um beijo".
Ah, e fique com essa música que sempre me faz lembrar você, principalmente por causa do verso "no tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido":
24 de maio foi estabelecido internacionalmente como Dia Mundial da Pessoa com Esquizofrenia, dia em que o psiquiatra Philippe Pinel, empossado chefe de um sanatório de homens em Paris, contrariando o entendimento daquele tempo (1793), removeu as algemas dos pacientes que ficavam presos às paredes da instituição. Ele também abre a semana de conscientização sobre a doença. Neste período, especialistas e grupos de apoio de amigos, familiares e portadores de esquizofrenia fazem diversos eventos, agora fundamentalmente online, para trazer ao público informações sobre a enfermidade a fim de desestigmatizá-la e a seus portadores. No Brasil, apenas nos últimos 4 anos se passou a celebrar o dia, ainda de forma tímida, mas crescente.
À guisa de contribuição a essa causa, resumo um pouco do que aprendi a respeito do assunto, a partir também da vivência com uma amiga portadora do problema. A esquizofrenia é um transtorno mental grave que afeta cerca de 23 milhões de pessoas em todo o mundo e se caracteriza por um conjunto de sintomas, rotulados de positivos (ou produtivos) e de negativos. Os sintomas positivos ou produtivos são os surtos psicóticos que causam delírios, levando as pessoas a desenvolverem falsas crenças, criarem realidades paralelas, mesmo diante de provas contundentes em contrário, e produzem alucinações, levando as pessoas a ouvirem, verem ou sentirem coisas que não existem. Os sintomas negativos, quando a pessoa não está em surto, são a abulia, falta de vontade, dificuldade até de realizar simples tarefas domésticas, o embotamento afetivo e a alternância de humor, variando da ansiedade à depressão. Em casos mais graves, há inclusive perda cognitiva, de concentração e memória.
A esquizofrenia é considerada uma doença do desenvolvimento
cerebral
O cérebro de uma pessoa com o distúrbio se desenvolve com uma espécie de bug (falha) que passa a dar problema quando o processo de maturação cerebral se conclui a partir do fim da adolescência, início da fase adulta. Por isso, o aparecimento dos sintomas ocorre majoritariamente na faixa dos 20-30 anos, com prevalência, nos homens, na faixa dos 20-25 anos e, nas mulheres, na faixa dos 25 aos 30. A doença atinge mais o sexo masculino, pois, segundo algumas teses, o hormônio feminino, o estrogênio, funcionaria como uma espécie de antipsicótico natural, o que também explicaria o surgimento de sintomas psicóticos em mulheres na menopausa.
Esse bug, por sua vez, tem importante origem genética somada a fatores ambientais como problemas durante a gestação ou parto (acarretando danos ao cérebro do feto/nascituro), traumas na infância, oriundos de abusos e violência, e uso de drogas na adolescência. Pessoas com parentes portadores de esquizofrenia, em particular de primeiro grau, tem quase 15% de possibilidades de desenvolver a doença. Em gêmeos, quando um deles apresenta sintomas psicóticos, o outro tem 50% de chances de desenvolver psicose também. Usuários de drogas igualmente podem ter surtos psicóticos isolados que funcionem, no entanto, como um gatilho para o desenvolvimento da esquizofrenia. Álcool, Maconha, crack e anfetaminas (as populares bolinhas), especialmente esta última por alterar os níveis de dopamina no cérebro, produzem surtos psicóticos bem parecidos com os da esquizofrenia e podem desembocar nela.
A esquizofrenia se expressa por níveis elevados de dopamina no cérebro (sendo a dopamina a substância química que transmite mensagens entre as células via receptores em suas superfícies) e é considerada a causa dos surtos psicóticos quando desregulada. Daí os medicamentos antipsicóticos em geral funcionarem bloqueando certos receptores de dopamina, com exceção das medicações mais recentes, chamadas de segunda geração, que interferem em outras substâncias da química cerebral, como a serotonina, e agem como moduladores da dopamina em vez de bloqueadores, produzindo menos efeitos colaterais. No ano passado, pesquisadores da UNICAMP afirmaram que a doença também está relacionada a uma célula chamada oligodendrócito, responsável pela produção da bainha de mielina, uma espécie de fio condutor das informações no cérebro que, nas pessoas com esquizofrenia, fica meio desencapado, gerando perdas de dados e mau funcionamento cerebral.
O tratamento para a esquizofrenia consiste na medicação (antipsicóticos) para controle dos sintomas produtivos (os surtos), psicoterapia cognitivo-comportamental (para ajudar o paciente a saber lidar com a doença) e a arte terapia, como utilizada pela psiquiatra alagoana Nise da Silveira que abriu um canal de comunicação com seus pacientes esquizofrênicos através da pintura numa época em que pessoas com transtornos psiquiátricos mofavam em horrendos manicômios. Um outro bom filme sobre tema, como o Nise: No coração da Loucura, é o "Palavras na Parede do Banheiro", indicação de uma portadora de esquizofrenia, que está no Amazon Prime Video e no Youtube. Trata-se de um drama adolescente que pega leve com o tema, mas descreve bem os sintomas da enfermidade.
Uma boa definição da doença foi dada pelo Dr. Wagner Gattaz, médico psiquiatra e professor de psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, em entrevista ao portal do Dráuzio Varella.
A esquizofrenia é uma doença frequente e universal que incide em 1% da população. Ocorre em todos os povos, etnias e culturas. Existem estudos comparativos indicando que ela se manifesta igualmente em todas as classes socioeconômicas e nos países ricos e pobres. Isso reforça a ideia de que a esquizofrenia é uma doença própria da condição humana e independe de fatores externos. Em cada 100 mil habitantes, surgem de 30 a 50 casos novos por ano."
Sem dúvida, como causa, a origem da esquizofrenia parece realmente independer de fatores externos, o que já não acontece no que diz respeito aos tratamentos, onde as diferenças socioeconômicas e até ideológicas podem fazer toda a diferença entre uma doença crônica e uma morte anunciada. O vídeo abaixo sintetiza as informações sobre a doença de forma sensível e propositiva.
Psiquiatria versus antipsiquiatria: uma brincadeira de mau gosto à beira do precipício
Durante o período posterior à Segunda Guerra Mundial, o mundo ocidental viu surgir, ao lado de uma grande abundância material, sobretudo nos EUA, a emergência da revolução contracultural que mudou comportamentos e costumes de uma maneira radical. No cômputo geral, ela foi a revolução mais bem-sucedida das esquerdas, mudando de fato as sociedades para melhor, embora nem tudo tenha sido um mar de rosas. Em sua insurgência contra a razão tecnocrática dos impérios americano e soviético em conflito, que ameaçava o mundo com o holocausto nuclear, os contraculturais acabaram jogando o bebê junto com a água suja da bacia descambando para um irracionalismo sem peias, romantizando a marginalidade e a loucura. No bojo dessa visão neorromântica, surgiu a chamada antipsiquiatria que afirma serem as doenças mentais meras “construções sociais”, não passando de rótulos que a medicina psiquiátrica inventou para controlar e adestrar os diferentes e dissidentes da sociedade capitalista.
Como não cabe me estender sobre esse assunto complexo e polêmico neste texto, resumo que os adeptos dessa teoria tiveram o mérito de colaborar para acabar com os tenebrosos manicômios, no que ficou conhecido como luta antimanicomial. Como demérito, com base na ideia estapafúrdia da não existência das doenças mentais (sic), saíram aqui no Brasil e em outros lugares do mundo fechando também os hospitais psiquiátricos e demonizando os médicos psiquiatras. Assentados nos escritos do pai da teoria, o italiano Franco Basaglia, conhecidos como Psiquiatria Democrática, não só manicômios, mas também hospitais psiquiátricos deveriam ser substituídos por atendimentos terapêuticos através de centros comunitários, centros de convivências e tratamento ambulatorial. No Brasil, essa visão ganhou forma de lei (Lei 10.216/2001), em 2001, denominada Reforma Psiquiátrica, mas, como na prática a teoria é outra, acabou foi deixando a população de baixa renda desamparadapor não terem sido construídos substitutos a contento para os hospitais psiquiátricos fechados. Fora outros aspectos discutíveis da lei, tais como delimitar um prazo único para a internação de qualquer paciente, independente de cada caso particular.
As famílias de posses continuam a pôr seus doentes em clínicas particulares, enquanto as pobres não têm onde interná-los. Os doentes terminam nas ruas como mendigos, dormindo sob viadutos.” (Uma lei errada).
Assim como a lei da chamada "psiquiatria democrática" pretende fazer de conta que doença mental não existe e o esquizofrênico é apenas um dissidente, o hospital disfarçado expressaria o mesmo preconceito da sociedade em face da questão.
Mentiras e hipocrisia não resolvem problema algum. Doença mental não é motivo de vergonha, não pode ser estigma para ninguém, trata-se de uma enfermidade como outra qualquer. O cérebro é um órgão do corpo humano como o coração ou os rins e, por isso, pode adoecer como qualquer um deles. Porque uma de suas funções é produzir pensamentos, se passa a funcionar mal, o cara perde o controle do que pensa, ouve vozes ou sofre alucinações.” (Boas intenções não bastam)
Ninguém é a favor de manicômio ou de encerrar uma pessoa pelo resto da vida. Isso não existe há muito tempo. Mas hoje as famílias sem recursos não têm onde pôr seus filhos. Eles vão para a rua. São mendigos loucos, mendigos delirantes. Podem agredir alguém. É imprevisível o que pode acontecer. O Ministério da Saúde tem de olhar isso. O hospital-dia é uma boa coisa. Mas para o doente ir para o hospital-dia ele tem que querer ir. Quando entra em surto, é evidente que não vai querer ir para o hospital-dia. Dizer que os doentes serão encarcerados é terrorismo. (Ninguém aguenta uma pessoa delirante em casa)
Segue abaixo a entrevista do poeta.
Rosely Roth: ouçam nossas vozes
Minha leitura dos textos e da entrevista do poeta Ferreira Gullar à revista Época, em 2009, foram fundamentais para eu vir a falar abertamente, nesse mesmo ano, da vivência de minha companheira e amiga Rosely Roth com a esquizofrenia que, no caso dela, infelizmente culminou em suicídio. Aliás, até hoje, apesar dos grandes avanços no tratamento da doença, que vem permitindo cada vez mais uma vida produtiva aos portadores da enfermidade, o índice de suicídios entre os pacientes ainda é bem alto. Segundo o presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina, Antônio Geraldo da Silva, a esquizofrenia está associada com aumento de dez vezes do risco de morte por suicídio, e 50% dos pacientes esquizofrênicos podem tentar o suicídio em algum ponto do curso da doença, sendo mais comum durante os anos iniciais.
Inspirada nas falas de Gullar, discorri sobre a condição de Rosely no texto 19 de Agosto: Primeira Manifestação lesbiana contra a discriminação no Brasil dizendo o seguinte:
Como a confirmar a máxima pessoana de que morre jovem o que os deuses amam, Rosely brilhou intensamente em sua breve vida, ceifada aos trinta anos de idade pela grave enfermidade que a acometeu. Ao final de 1987, durante o IV Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe (19 e 25 de outubro), no México, Rosely passou a apresentar as alterações perceptivas, tanto auditivas quanto visuais, que caracterizam a esquizofrenia, doença que atinge jovens adultos na faixa dos 28 a 30 anos (no caso das mulheres). Fruto de um desequilíbrio químico-cerebral, de provável origem genética, a esquizofrenia, apesar dos avanços nos medicamentos de controle dos surtos, ainda hoje leva mais de 10% de suas vítimas ao suicídio, inclusive porque a acompanham períodos de intensa apatia e depressão. Após 2 anos e meio lutando com a doença, Rosely se suicidou no apartamento de sua namorada, Vera Lúcia S. de Barros, em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro, no dia 28 de agosto de 1990.
Sua morte provocou grande choque mesmo entre aquelas pessoas que acompanhavam de perto seu calvário e sabiam da possibilidade de um trágico desfecho. Como sempre acontece em casos de suicídio, ainda mais de pessoas de grande potencial humano como Rosely, formou-se uma espécie de tabu sobre o acontecido, como se morrer de uma doença grave fosse motivo de vergonha e não uma simples fatalidade a que estamos todos sujeitos de um jeito ou de outro. Tal tabu inclusive não combina com a memória de uma mulher que se destacou exatamente pela quebra dos silêncios e dos tabus em relação à lesbianidade e cuja trajetória de ativista foi um exemplo de luta contra a insanidade do preconceito e da discriminação. Que ele se desfaça, portanto, não só por Rosely mas também como uma contribuição à desmistificação da doença que a acometeu da qual padecem milhares de pessoas no mundo inteiro.
Tenho pouco a acrescentar ao que disse em 2009, mas cabe trazer mais alguns dados com base sobretudo na questão da disputa surreal entre psiquiatras e antipsiquiatras no manejo dessa condição tão grave e delicada. Quando Rosely teve o primeiro surto psicótico, vendo e ouvindo coisas inexistentes, foi atendida por uma psiquiatra que também participava do IV Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe no México. Essa psiquiatria não teve qualquer dúvida em afirmar que Rosely estava em surto psicótico, prescrevendo-lhe medicação apropriada, e que, ao retornar ao Brasil, precisaria ser internada e se afastar da militância. Quando voltamos a São Paulo, informei à família dela o que me dissera a psiquiatra, mas não parece que tenham levado a sério o diagnóstico. Como se não bastasse, o psicólogo com quem Rosely fazia terapia, provavelmente da turma da antipsiquiatria, disse a ela que sofrera uma violência, por terem lhe prescrito antipsicótico, que ela não tinha nada do que fora dito e mais alguns outros leros. Rosely então suspendeu a medicação, resultando, como não podia deixar de ser, em novo surto, que serviu ao menos para cair a ficha da família da necessidade de internação.
Nos dois anos e 10 meses, para ser mais precisa, em que Rosely lutou contra a doença, sempre houve disputas ideológicas sobre sua condição e confusão de diagnósticos. A gente mesma que acompanhava seu calvário já nem sabia o que pensar, pois não havia Internet na época para sanar as dúvidas (os computadores pessoais haviam acabado de chegar aos lares brasileiros) e se ficava à mercê dos ditos especialistas e suas ideologias, como se não fosse óbvia a condição da moça, à luz do meu conhecimento de hoje sobre o tema. Foram 5 surtos e 5 internações durante esse período, e, já no início de 1990, Rosely se declarava cansada da situação. Quando não estava em surto, sentia-se prostrada, sem forças para nada, sequer cozinhar, lavar roupa, etc., como ela mesma dizia. Mantivemos sempre contato, por carta e telefone. mesmo quando foi morar no Rio. Sua namorada também me ligava sempre, em longos telefonemas. E um desses telefonemas foi exatamente no fatídico dia 28 de agosto de 1990. Vera me ligou desesperada pedindo para falar com Rosely porque não estava encontrando a psiquiatra que tratava dela, e Rosely já havia tentando se jogar pela janela. Falei com Rosely que, entre falas lúcidas e outras meio delirantes, disse que não queria mais viver do jeito que vivia (referindo-se às internações e à doença). Tentei acalmá-la e levantar sua moral, dizendo que haveria melhores dias e que acharia novo sentido para a vida. Conversei então novamente com sua namorada, e desligamos. Cerca de uma hora depois, Vera me ligou desta vez para dizer que Rosely havia conseguido se suicidar. Tive dificuldade de acreditar no fato e pedi que outra pessoa, além de Vera, confirmasse a tragédia, o que ocorreu. Depois só restou avisar a família de Rosely do acontecido.
Moral dessa história: a esquizofrenia não é nenhuma "construção social". Nosso corpo, que inclui nosso sexo, e as doenças que o afligem, estejam no baço, no útero, no cérebro, são realidades materiais, são construções naturais, mesmo que anômalas. Que ninguém mais compre essa ideia contra-iluminista e negacionista de doença mental como construção social. A aceitação do paciente de sua própria condição é essencial para o sucesso de seu tratamento, o que não vai rolar caso, como se não bastasse seu descolamento da realidade, ainda estiver às voltas com gente lhe dizendo que está apenas com algum problema emocional. Palavras, aliás, da socióloga Vera Soares, uma portadora da doença em depoimento, que vale a leitura integral, para a revista Época:
Superar o transtorno não significa estar curada da doença. A pessoa só supera a doença se ela se aceitar. Se não aceitar que é doente, não engaja no tratamento. E, se não trata, não supera. A esquizofrenia é grave. Exige medicação e psicoterapia. Não tem cura, mas você pode aprender a lidar com ela. Viver com esquizofrenia também exige autoconhecimento. Eu sei, por exemplo, que devo evitar situações de estresse para não ter novos episódios de psicose. Já me conheço e sei quais são meus gatilhos de estresse. Evito e tento controlar a situação. Desta forma, lido melhor com a doença.
Os manicômios não vão retornar. Existiam sobretudo porque até a década de 50 não havia antipsicóticos e, portanto, possibilidade dos pacientes conviverem em sociedade. Desde então, porém, ocorreram avanços significativos no controle dos surtos e mudanças radicais no tratamento dos portadores da esquizofrenia e outros transtornos mentais. Nada mais de confinamentos, abandono, maus-tratos. Já na época em que Rosely ficou doente, ela me escreveu de um dos estabelecimentos em que ficou internada, considerado até hoje um hospital modelo para tratamento de doenças da mente, o Instituto Bairral, localizado em Itapira, a 170 quilômetros de São Paulo. Rosely descreveu o local da seguinte maneira (talvez se estivesse ficado por lá ainda estaria viva):
Aqui em Itapira tem piscina. Todas as noites tem atividades: jogos filmes, culto e dança. Leio o jornal todos os dias.
Fechar hospitais psiquiátricos tem tanto sentido quanto fechar hospitais do câncer, do coração e de tantas outras especialidades. Demonizar psiquiatrias tem tanto sentido quanto demonizar cardiologistas, oncologistas, ginecologistas. Médicos não devem ser colocados em altar nem demonizados. É verdade que a medicina psiquiátrica tem um passado muito ruim não só no trato de pessoas com transtornos mentais mas igualmente de gente sem problemas dessa natureza que foi internada em manicômios por ser apenas fora do comum. Não celebramos à toa o 17 de maio, dia da retirada da homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças. Todavia, é preciso lembrar que médicos e cientistas também são filhos de seu tempo e limitados ao conhecimento científico de sua época. Eles também mudam na medida das mudanças sociais e científicas. Uma posição crítica sobre o complexo biomédico farmacêutico, que é fundamental, não pode descambar para a posição anticientificista da "construção social" para tudo, em particular doenças.
A articulação que se faz para fechar hospitais psiquiátricos públicos seria muito melhor empregada na transformação desses hospitais em centros médicos de excelência como o Instituto Bairral. Os médicos e pesquisadores da doença são peças fundamentais no trato adequado dos pacientes e desenvolvimento de novos tratamentos. Recentemente, cientistas paulistas criaram exame capaz de diagnosticar a esquizofrenia e a bipolaridade a partir de amostras de sangue. Mesmo que, como afirmam, ainda levem uns cinco anos para poder aplicar o achado na prática, abre-se aí mais um caminho para maior precisão diagnóstica e novos tratamentos. Seria o caso dos adeptos da esquizofrenia como "construção social" nos explicarem como esse exame pode ser desenvolvido a partir de doenças que não existem. O mesmo vale para os antipsicóticos, principalmente porque não dá pra falar que os pacientes se autosugestionam sobre a eficácia da medicação na maior parte dos casos, né mesmo?
A banda Larking Poe, das irmãs Megan e Rebecca Lovell, fez a música abaixo, Mad as a Hatter (Louco de Pedra), em homenagem a seus avós, vítimas de esquizofrenia e demência. No início da performance, Megan fala que a doença mental é uma daquelas coisas muito difíceis de se comentar, algo desconfortável de se falar, mas uma coisa sobre a qual que deveríamos falar abertamente. #OuçamNossasVozes
I know what time is Time is a thief It'll steal into bed and rob you while you sleep You'll never feel it It pulls off the covers, and rifles through your head Then you'll wait to find you can't remember what you just said It happens to everyone Just like the father of my father, time stole his mind And I can't forget that one fourth of his blood is mine I try not to worry
Please don't come for me I promise I'll be great Just let me keep what's mine Please don't come for me If you must then just please wait and let me have some time Please don't come for me Mind over matter when you're as mad as a hatter
It's hard to draw a clear distinction When you are who you are Through the looking glass, the past and future begin to blur Though I keep playing Well they say the world is what you make it You think, speak and breathe And those rules solidify, stuck in a world of make believe You make the best of what you are given
Off with the head, off with the head Paint the roses, paint the roses
Please don't come for me I promise I'll be great Just let me keep what's mine Please don't come for me If you must then just please wait and let me have some time Please don't come for me Mind over matter when you're as mad as a hatter
No dia 19 de agosto de 1983, em São Paulo, as ativistas do Grupo Ação Lésbica Feminista – GALF (1981-03/1990) – ver resumo do histórico da organização abaixo - fizeram uma demonstração de protesto em frente ao antológico bar da noite paulistana, o Ferro’s Bar, contra os abusos dos donos do estabelecimento que as impediam de vender seu boletim ChanacomChana, dirigido às lésbicas, num espaço sustentado por lésbicas. Com apoio de ativistas gays, feministas e parlamentares do período, as ativistas do GALF conseguiram entrar no bar que lhes estava vetado e obter a promessa de seus donos de que não seriam mais impedidas de vender seu trabalho naquele famoso recinto, como todos os demais ambulantes, artistas e toda a fauna alternativa do período costumavam fazer. Primeira demonstração do gênero no Brasil, foi chamada por publicações homossexuais da época de nosso “pequeno Stonewall Inn”, em referência à revolta de gays, lésbicas e travestis contra a repressão policial em Nova Iorque (28 de junho de 1969) que daria origem ao Dia Internacional do Orgulho Gay.
Em 2003, o 19 de agosto foi lançado publicamente, pelos grupos Rede de Informação Um Outro Olhar e Associação da Parada LGBT de São Paulo, como Dia do Orgulho das Lésbicas no Brasil com novamente grande repercussão na imprensa, como quando da sua realização. Também, em 19/6/2008, os deputados que integravam a Comissão dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa paulista aprovaram o Projeto de Lei 496/2007, do deputado Carlos Giannazi (PSOL), que instituiu o Dia do Orgulho Lésbico no Estado de São Paulo. Para mais informações sobre o 19 de agosto, acesse “19 de Agosto: Primeira Manifestação lesbiana contra a discriminação no Brasil.
Para lembrar um pouco o ambiente do Ferro’s Bar, segue vídeo filmado em dependências do estabelecimento, com música de Gisele Fink e Míriam Martinho, parodiando as relações explosivas dos casais de lésbicas do famoso point.
Fanchitude de Fancha (letra original) (Gisele Fink/Míriam Martinho)
Brigou comigo
saiu aos berros lá do Ferro’s
chamando a atenção do fancharéu.
Bebeu comigo e meio tonta
deixou a conta na qual bem pronta
eu dei o chapéu.
Saí do boteco atordoada
atrás da descarada
e desmaiei no elevador.
Quando acordei
nem sabia onde estava
pois aquela madrugada
foi demais pra minha dor.
Alucinada entrei no apartamento
e naquele momento a pomba gira me tomou.
Peguei a fancha na garganta dei-lhe um tapa
arranquei-lhe a gravata e a coisa toda começou.
Veio o passado das torturas recordando,
a cabeça esquentando resolvi me separar.
Mas quando olhei pros seus olhos de janela – escancarados -
eu lembrei que depois dela outra fancha vou achar.
Fancha por fancha fico mesmo na esperança
de que um dia esta mude e eu possa só cantar.
Fancha por fancha fico mesmo na esperança
por tão pouco é impossível essa vida abandonar.
Grupo Ação Lésbica Feminista – GALF (17/10/1981- 03/1990): Vanguarda e Resistência
Integrantes do GALF que
participaram do 19 de Agosto: Célia Miliauskas, Elisete Ribeiro Neres, Luiza Granado, Míriam
Martinho, Rosely Roth e Vanda Frias. Na foto acima: Maria Rita (ao lado de Rosely) não participou. Na foto abaixo: Liete (à direita,
sentada, não participou).
Fundação
O Grupo Ação Lésbica Feminista foi fundado, em 17 de outubro de 1981, por duas remanescentes do Grupo Lésbico Feminista (LF), Míriam Martinho e Rosely Roth, mais quatro de suas colaboradoras, que queriam manter um grupo especificamente lésbico, em vez de entrar em algum armário feminista ou qualquer outro. Após tentativas frustradas de reunir ex-integrantes do LF e outras feministas homossexuais em torno ao menos da elaboração da segunda edição do tabloide ChanacomChana (1ª ed. 02/1981), Míriam e Rosely decidiram seguir adiante com outras pessoas e nova configuração.
Para o burlar o preconceito da sociedade conservadora de então e o preconceito internalizado das próprias lésbicas, fora evitar problemas com o cartório, as ativistas do GALF adotaram a mesma estratégia criada pelo Grupo Somos, estatutariamente um clube cultural, e registraram seu grupo como um grupo feminista, preservando a sigla “GALF”. O objetivo do estatuto era pragmaticamente atender as necessidades de abrir conta em banco, uma caixa postal, receber dinheiro via vale postal e outras formalidades. O grupo ficaria incomunicável, entre as lésbicas da época, se usasse a palavra lésbica para esses trâmites institucionais.
Publicações: boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar
Foram bem poucas, no entanto, as concessões que o GALF faria à ferrenha heteronormatividade da década de 80. Pelo contrário, o grupo vai se caracterizar como pioneiro da visibilidade lésbica, num período em que inclusive o movimento feminista pregava um armário acolchoado para as lésbicas que o compunham. O mantra era “a necessidade política de se dissolver a identidade lésbica em uma identidade feminista mais geral.” A vivência lésbica devia ser encarada apenas como uma particularidade da vida de algumas mulheres e vivida exclusivamente como opção ou preferência sexual. Politização somente para as vivências heterossexuais.
ChanacomChana n. 12
As ativistas do GALF nunca compraram essa falácia e tinham clareza da importância de as lésbicas politizarem a própria vivência, pois que não faltavam questões específicas a trabalhar e direitos a reivindicar. Assim retomam, entre outras atividades, a publicação do título Chanacomchana, agora em formato de boletim, em dezembro de 1982. Confeccionado e editado por Míriam Martinho como fanzine, a partir de colagens e textos datilografados, o CCC vai reunir produções das integrantes do GALF, sobretudo nos seus três primeiros anos, e posteriormente, com a maior divulgação do grupo, de colaboradoras de todo o país. Foram 12 edições até 1987, abordando questões especificamente lésbicas e da mulher em geral, quando o CCC cede lugar ao título Um Outro Olhar, outro boletim que o GALF publicará até fevereiro de 1990, no total de 10 edições*. Com tiragem média de 500 exemplares, o CCC era rodado em gráficas de universidades e da Câmara Municipal de SP pela cota de parlamentares solidários, como a vereadora Irede Cardoso (então PT), de saudosa memória. Os boletins Um Outro Olhar foram em boa parte xerografados e vendidos fundamentalmente para as associadas do GALF.
Boletim Um Outro Olhar n. 1
*Formalmente, o GALF encerra as portas em março de 1990 com a publicação do número 10 do boletim Um Outro Olhar (fevereiro/abril). Uma de suas últimas atividades foi gestar a Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar, desde os dois últimos meses de 1989, anunciada para abril de 1990 no próprio boletim citado (p. 4).
O Outra Coisa e o GALF em sua sede (maio de 1983) - Acervo Um Outro Olhar
Organização de eventos e participação em encontros e campanhas nacionais do MHB
Na área de militância, a partir de meados de 1982, o GALF começou a dividir sede com o Grupo Outra Coisa de Ação Homossexualista, grupo gay oriundo do racha do Somos, com quem terá uma fecunda parceira até o início de 1984. Em seu espaço comum, conjunta ou separadamente, os dois grupos organizaram reuniões com grupos feministas, candidatos de vários partidos (reivindicando o fim do parágrafo 302.0, que considerava a homossexualidade desvio mental, a custódia dos filhos de casais homossexuais, o fim da repressão policial), mostras de arte como o “Viva a Homossexualidade” e a celebração dos 4 anos do movimento homossexual, além de encontros com intelectuais como Félix Guattari, entre outros. O Outra Coisa também participou ativamente da invasão do Ferro’s Bar, em apoio ao GALF, em particular na pessoa de seu maior articulador, Antonio Carlos Tosta (fundador do Somos, do Outra Coisa, do Movimento Homossexual Autônomo).
O GALF também participou de vários encontros do Movimento Feminista, como, por exemplo, os 8° Encontro Nacional feminista – Petrópolis (7-10/08/1986) e 9° Encontro Nacional feminista - Garanhuns (PE), em 1987,sempre organizando alguma oficina ou debate sobre a questão lésbica nesses eventos, apesar do clima nem sempre acolhedor.
Um evento não tão visível, mas marcante, se deu, em abril de 1982, no Sindicato dos Jornalistas, quando as ativistas do GALF entraram com máscaras em um debate do grupo SOS Mulher, cujo slogan era "o silêncio é cúmplice da violência" e tratava da violência contra a mulher, menos da violência contra as lésbicas, e distribuíram o seguinte folheto, de autoria de Míriam Martinho:
Sobre violência Estamos aqui para expor a nossa opressão. Olhem para nossos rostos e verão máscaras. Estamos aqui para mostrar como temos que viver diariamente: temos que viver assim, com máscaras. Temos que viver mascaradas, nas casas de nossos pais, para não perdermos relações afetivas que nos são caras. Temos que viver mascaradas nas escolas, para não sermos ridicularizadas, humilhadas, agredidas e, até mesmo, impedidas de conseguir um nível mínimo de educação. Temos que estar aqui, mascaradas, porque não podemos denunciar nossa opressão sem máscaras, porque corremos o risco de perder nossas famílias, nossos empregos, nosso direito de estudar sem qualquer tipo de pressão. A sociedade nos impõe a esquizofrenia como estilo de vida e nos deixa num beco sem saída na medida que, praticamente, impossibilita a própria denúncia desta situação. Precisamos romper esse círculo vicioso. Queremos tirar a máscara antes que ela nos cole à face e não possamos mais nos distinguir dela. Queremos que cada mulher tire sua máscara. Queremos propor que o movimento feminista seja um espaço onde as mulheres homossexuais não precisem utilizar nenhum tipo de máscara. Queremos propor que o movimento feminista não reproduza o discurso politiqueiro machista das lutas gerais contra as lutas específicas e que todas as questões referentes a todas as mulheres sejam igualmente prioritárias. Igualmente prioritárias mesmo porque a mulher homossexual também é negra, a mulher homossexual também é dona-de-casa, a mulher homossexual também é prostituta, a mulher homossexual também é operária, a mulher homossexual também está na periferia e calar a respeito dessas múltiplas opressões também nos torna cúmplices da violência".
Igualmente participou das duas principais campanhas do Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) da década de 80:
A campanha contra o código 320 da CID, seguido pelo INAMPS no Brasil, que considerava a homossexualidade uma doença mental. Em São Paulo, em 1982, o GALF reivindicou o fim do código junto ao então governador Franco Montoro. Em 1983, articulou-se com as deputada e vereadora Ruth Escobar e Irede Cardoso para promover a exclusão do código do INAMPS e fez palestra na Associação Paulista de Medicina com o mesmo objetivo. Em setembro de 1984, o GALF conseguiu inclusive passar trechos de um texto sobre saúde lésbica, que também propunha a exclusão do código, num documento feminista apresentado durante I Congresso Brasileiro de Proteção Materno-Infantil no Senado Federal.
Em 9 de fevereiro de 1985, o Conselho Federal de Medicina atendeu a reivindicação do MHB retirando a aplicação no Brasil do código 302.0 da classificação internacional de doenças que definia a homossexualidade como desvio e transtorno sexual. A homossexualidade passa a ser enquadrada como outras circunstâncias psicossociais ao lado do desemprego, desajustamento social e tensões psicológicas que podem levar alguém ao consultório médico.
A campanha pela inserção, no inciso IV do artigo 3º na de 1988 (artigo 153 da Constituição de 1969), da frase “contra a discriminação por preferência ou orientação sexual” conjuntamente com os grupos Triângulo Rosa e Grupo Gay da Bahia. Ainda que a campanha não tenha obtido êxito, valeu pela visibilidade dada à questão homossexual na política institucional, sobretudo pela participação do protagonista da ação, João Antônio Mascarenhas (Triângulo Rosa/RJ), em subcomissões da Assembleia Nacional Constituinte (abril/1987).
Participação em encontros internacionais
Míriam Martinho (ao centro de azul) na 8ª Conferência do ILIS em Genebra (03/1986)
O GALF participou de dois encontros feministas latino-americanos e do Caribe, como sempre levando a questão lésbica para os debates desses eventos. No III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, realizado em Bertioga em agosto de 1985, o GALF realizou com outro GALF (o Grupo de Autoconsciencia de Lesbianas Feministas – Peru, Lima), uma reunião extraoficial que reuniu várias lésbicas presentes no encontro a fim de discutir a então complicada relação das lésbicas com o movimento feminista regional. Participou também do IV Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe em outubro de 1987 na cidade de Taxco, México.
Míriam Martinho em manifestação do IV Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe (México, 10/1987) -Acervo Um Outro Olhar
Os encontros internacionais mais significativos dos quais o GALF participou, contudo, foram os referentes à articulação do movimento de lésbicas internacional em pleno florescimento naquele período. Em abril de 1980, foi criado durante conferência da IGA (Associação Gay Internacional), o Serviço Internacional de Informação Lésbica (ILIS, em inglês), tornado independente em abril do ano seguinte em Turim, na Itália. Encaminhado por grupos europeus, de forma rotativa, a começar por Amsterdam, o ILIS vai ter papel fundamental na ampliação e fortalecimento dos grupos lésbicos em todo o mundo, particularmente em países em desenvolvimento. O GALF contou com o apoio financeiro e logístico do ILIS para participar de sua oitava conferência, em Genebra, na Suíça, de onde surgiram as redes latino-americana e asiática de lésbicas, e do I Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-Americanas e do Caribe, na cidade de Cuernavaca, Morelos, no México, em outubro de 1987. Após 18 anos de serviços prestados à organização lésbica mundial, o ILIS publica seu último boletim em 1998.
Linha do tempo da trajetória do ILIS
GALF - Vanguarda e Resistência
Finalizando, neste breve resumo da trajetória do GALF, cujo extenso inventário de produções e atividades será objeto de outro resgate, vale salientar o papel de vanguarda e resistência representado pela organização durante seus oito anos de existência. De resistência por ter sido o único grupo de lésbicas a permanecer ativo durante toda a década de oitenta, num contexto adverso fosse pela carência de recursos, fosse pela desarticulação do Movimento Homossexual fosse pela hostilidade do movimento feminista do período à politização da questão lésbica em seu meio.
De vanguarda porque manteve, a duras penas, a temática lésbica presente não só nos movimentos em que atuou, como – principalmente – na conservadora e heterossexista sociedade brasileira de sua época. Seja pela produção do sugestivo título ChanacomChana, seja pelas atividades públicas que desenvolveu, como a manifestação do Ferro’s Bar e as participações de Rosely Roth na grande mídia, em particular em dois programas da Hebe Camargo, o GALF foi a grande referência dos anos oitenta não só para o ativismo do gênero como para a população lésbica da época.
Rosely Roth (à direita) entrevistando Cassandra Rios e Irede Cardoso no Ferro's Bar
Mesmo as reflexões presentes nos escritos da organização se caracterizaram pelo vanguardismo, inclusive porque ironicamente derivadas das situações adversas que o grupo experimentou durante sua trajetória. Com a intensa retração do Movimento Homossexual, a partir de 1984, e a hostilidade quanto à visibilidade lésbica que o GALF insistia em cobrar no Movimento Feminista, o grupo ficou praticamente sem interlocutores no Brasil. Findo o chamado ciclo libertário do MHB (1978-1983), pródigo em debates sobre as diferentes facetas da questão e da identidade homossexual, sobreveio a perspectiva estritamente reformista e legalista dos grupos GGB e Triângulo Rosa que não dava espaço para maiores discussões.
Do lado feminista, prevaleceu, como já dito, a ideia de uma suposta necessidade de dissolução da identidade lésbica em uma identidade feminista mais geral, tratando a lesbianidade como uma questão de ordem privada, embora o movimento pregasse que “o privado era político”. Sobrou para o GALF então, a interlocução com os grupos lésbicos do exterior, de várias correntes, em particular com as teóricas lésbicas-feministas e separatistas daquele período, antecipando discussões que só veríamos chegar expressivamente ao Brasil muitas décadas depois.
Por último, ao contrário das inúmeras fabulações a respeito da entidade, o GALF não subsistiu durante toda a década de 80, apesar de supostamente ter seguido um padrão de grupos lésbicos formados por casais que, ao se romper, terminavam ou fragilizavam suas organizações. O Grupo Lésbico-Feminista, que precede o GALF, não foi fundado por um casal nem terminou com o fim dele. Esse coletivo teve várias fundadoras e simplesmente se dispersou após dois anos. E o Grupo Ação Lésbica Feminista também não foi fundado por um casal nem terminou por causa dele, ainda que, ao longo de sua trajetória, tenha formado casais.
O GALF terminou em função do esgotamento de seu ciclo de ativismo junto ao Movimento Feminista. Ficou claro para suas integrantes o quanto era contraproducente levar as lésbicas para o feminismo e, ao mesmo tempo incentivá-las a sair do armário, quando o próprio Movimento Feminista impunha a despolitização das vivências lésbicas empurrando-as para o terreno do privado, da chamada “opção sexual”. Nada incomum, no período de existência do GALF e até na década de noventa, encontrar grupos feministas formados majoritariamente por lésbicas, mas exclusivamente referentes às chamadas questões de gênero, ou seja, questões voltadas para a resolução dos problemas das mulheres heterossexuais em seus relacionamentos com homens. Não havia mais porque manter um grupo lésbico-feminista nesse contexto.
*Miriam Martinho é uma das fundadoras do Movimento Homossexual brasileiro, em particular da organização lésbica, tendo co-fundado as primeiras entidades lésbicas brasileiras, a saber, Grupo Lésbico-Feminista (1979-1981), Grupo Ação Lésbica-Feminista (1981-1989) e Rede de Informação Um Outro Olhar (1989....). Editou também as primeiras publicações lésbicas do país, como o fanzine ChanacomChana (década de 80) e o boletim e posterior revista Um Outro Olhar (década de 90 até 2002). Atualmente administra as páginas Um Outro Olhar e Contra o Coro dos Contentes.
Fundou igualmente o movimento de saúde lésbica no Brasil, em 1994, realizando a primeira campanha de prevenção às DST-AIDS para mulheres que se relacionam com mulheres, em 1995, e editando as primeiras publicações sobre o tema desde essa época (em 2006 publicou a 4 edição da cartilha Prazer sem Medo sobre saúde integral para lésbicas e bissexuais). Participou da organização do I EBHO (1980), organizou dois encontros LGBT nacionais (VII EBLHO/93 e IX EBGLT/97) e foi sócia-fundadora da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT-1995). Participou igualmente de vários encontros internacionais com destaque para a 8ª Conferência Internacional do Serviço de Informação Lésbica Internacional-ILIS (Genebra, Suiça, 28 a 31/03/1986), o I Encontro de Lésbicas-Feministas Latino-Americanas e do Caribe (Cuernavaca, México, 1987) e a Reunião de Reflexão Lésbica-Homossexual (Santiago, Chile/ nov. 1992).
Nos depoimentos dos presentes à 01:20 da madrugada, do dia 28 de junho de 1969, no bar Stonewall Inn, há consenso sobre quem atuou como estopim da famosa revolta de lésbicas, gays, drags queens e kings contra os abusos da polícia. Segundo as narrativas, foi uma lésbica butch (sapata, bofinho) a iniciadora da revolta que virou marco do moderno movimento pelos direitos homossexuais. Essa lésbica foi agredida por um policial com um cassetete, o que a deixou sangrando, e reagiu desferindo um soco em quem a atacara. Foi algemada e arrastada para o camburão, mas conseguiu se desvencilhar várias vezes, em uma luta que durou 10 minutos. Enquanto era arrastada definitivamente para o veículo da polícia, virou-se para a multidão, aglomerada em frente ao bar, e bradou: “Por que vocês não fazem alguma coisa?” Assim que um policial conseguiu empurrá-la para o banco detrás do camburão, a multidão respondeu à sua pergunta se tornando uma turba incontrolável. Nascia um momento histórico.
25 homens e uma garota chamada Stormé DeLarverie
A identificação dessa sapata que incitou a multidão à luta é matéria sujeita a disputas, mas prevalece a versão de que ela tenha sido Stormé DeLarverie. DeLarverie era uma lésbica mestiça (ou negra, pelos padrões americanos) nascida em 1920, em Nova Orleans, filha de mãe negra e pai branco, que seguiu carreira artística como cantora, apresentadora e mestre de cerimônias, apresentando-se nos palcos do Apollo Theather e Radio City Music Hall.
Stormé DeLarverie, como drag king, entre as drags queens da trupe The Jewel Box Revue
Fez a princípio o modelito feminino, como cantora, mas se destacou mesmo foi atuando, durante os anos 50 e 60, como drag king, com a trupe The Jewel Box Revue. Foi a única mulher do grupo formado basicamente por homens. Isso numa época em que fazer cross-dressing era ilegal, e as pessoas podiam ser presas por não usar roupas do “gênero apropriado”. O grupo se identificava como personificadores de mulheres e homens(female and male impersonators) e impressionistas femininos ou imitadores de mulheres (feminine impressionists and femme mimics).
Os maiores personificadores de mulheres do mundo
Stormé DeLarverie nunca buscou crédito como catalizadora de um movimento histórico, mas muitas pessoas a apontaram como a legendária lésbica que conclamou lésbicas, gays e drags à ação. Muitas lembraram também das palavras que gritou com todas as forças para a multidão e que incitaram a rebelião de Stonewall. Quando entrevistada para o livro de Charles Kaiser “The Gay Metropolis: The Landmark History of Gay Life in America (1997)”, DeLarverie relembrou o soco que deu no policial que a agrediu e das palavras que endereçou à multidão.
Por essa razão, entrou para a História como a Rosa Parks da comunidade homossexual, uma honrosa referência à costureira negra que se recusou a ceder seu lugar para um branco, em um ônibus, foi presa e fichada por isso e, com seu gesto de resistência, desatou um boicote à companhia de ônibus que a discriminara, boicote, por sua vez, deflagrador do movimento pelos direitos civis dos negros americanos. No caso do movimento pelos direitos homossexuais, exatamente um ano depois de Stonewall, em 28 de junho de 1970, foi organizada a primeira parada do orgulho de gays e lésbicas, partindo de um ponto de concentração entre a Sixth Avenue e a Waverly Place. Muitas outras se seguiram nos EUA. Hoje, há paradas pelos direitos homossexuais em todo o mundo.
Após deixar a carreira artística, Stormé DeLarverie também serviu à comunidade lésbica, por décadas, como vigilante voluntária das ruas onde se situavam os bares lésbicos em Nova York. Foi também porteira de muitos deles. Ela patrulhava esses locais para – como dizia afetuosamente – manter suas garotas seguras. DeLarverie era andrógina, alta, bonita e andava (legalmente) armada. Trabalhou como vigilante até os 80 anos, quando se aposentou no início dos anos 2000. Apesar de sua importância histórica, Stormé DeLarverie passou seus últimos anos meio abandonada pela comunidade pela qual tanto fez. Morreu dormindo, no Brooklyn, no dia 24 de Maio de 2014, mas estará sempre viva em nossas memórias como a legendária lésbica que deu início à rebelião de Stonewall.
Stormé DeLarverie
Notas
1. Alguns depoimentos afirmam que, ainda dentro do bar, outras sapatas já teriam saído no braço com a polícia antes da icônica lésbica ter sido arrastada para o camburão.
2. Ativistas transgênero vêm dizendo ter sido trans as pessoas que iniciaram a rebelião de Stonewall (sic), mas trata-se de fabulação. No famoso bar, havia lésbicas e gays, sendo que alguns eram drag kings e queens. O termo transgênero foi popularizado somente na década de 70 pelo crossdresser Viriginia Prince e, sobretudo a "identidade trans", só entra em circulação no mercado das ideias a partir da década de 90. Como se pode observar pelas imagens, mesmo em drag, eles se definiam como homens e mulheres e como personificadores de mulheres e homens e não como trans.