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19 de Agosto: Dia do Orgulho Lésbico 2025

segunda-feira, 18 de agosto de 2025 0 comentários

Barradas no baile

Míriam Martinho

Proposto pela ativista Míriam Martinho, em outubro de 2000, na revista Um Outro Olhar, o Dia Nacional do Orgulho Lésbico (19 de agosto) foi lançado publicamente em 11 de junho de 2003 pelas ativistas Luiza Granado e Neusa Maria de Jesus, então respectivamente da Rede de Informação Um Outro Olhar e da Coordenadoria Especial de Lésbicas (CEL) da Associação da  Parada do Orgulho GLBT (como era chamada a associação nos anos 2000). A data remete à primeira manifestação lésbica contra a discriminação no Brasil, ocorrida no Ferro's Bar em 1983, homenageando também a ativista Rosely Roth, figura de destaque do evento. Como na versão original da manifestação, a Folha de São Paulo fez uma reportagem sobre o lançamento do dia, pauta que foi reproduzida por outros jornalistas e outros veículos da mídia, dando uma grande divulgação à iniciativa. Desde então, a data passou a ser lembrada anualmente de forma presencial ou virtual.

A origem da data: o happening do Ferro’s Bar

Museu Judaico de São Paulo

Onde aconteceu

Inaugurado em 1961, na rua Martinho Prado n.º 119, na Bela Vista, em frente ao atual Museu Judaico de São Paulo, o Ferro’s Bar, foi a princípio reduto da boemia paulistana, reunindo atores, atrizes, escritores, jornalistas, gays e prostitutas em suas disputadas mesas. Já a partir dos anos 70, porém, tornou-se o principal ponto de encontro das lésbicas de São Paulo e mesmo de outras cidades do estado e do Brasil, assim permanecendo até setembro de 2000 quando fechou as portas.

Apesar de ter ficado conhecido como bar das lésbicas, as relações do Ferro’s com suas frequentadoras nem sempre foram das mais cordiais. Casos de maus tratos e até violência física contra as clientes, com pouca reação das vítimas, já constavam da história do bar desde seu início. Essa situação iria mudar, contudo, quando os donos do Ferro’s, no primeiro semestre de 1983, resolveram implicar com a venda do boletim ChanacomChana publicado por ativistas do Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) desde dezembro de 1982. Fundado, em outubro de 1981, pelas ativistas Míriam Martinho e Rosely Roth e algumas colaboradoras, o Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) passou a vender o boletim ChanacomChana nos bares e boates de lésbicas da época, incluindo o Ferro's.

Entrando

Onde ficava o Ferro’s, quem o frequentava e o porquê da manifestação

Quando as integrantes do GALF iam vender seu boletim no Ferro’s, contudo, eram agredidas pelo porteiro com ameaças ou com puxões de braço para que se retirassem. Em 23 de julho de 1983, o clima pesou ainda mais e um dos donos do bar, ladeado por um segurança e o truculento porteiro do Ferro’s, tentaram aos empurrões efetivar a expulsão das militantes. A desculpa para o bota-fora era de que elas estariam promovendo “arruaça” no estabelecimento. Não obtiveram sucesso, porém, porque, de um lado, as frequentadoras do bar protestaram contra a expulsão e, de outro, porque os policiais que foram chamados para ajudar no despejo ironicamente não viram razão suficiente para tal. As ativistas do GALF permaneceram no Ferro’s e inclusive jantaram na ocasião, mas foram barradas na entrada do restaurante depois desse episódio.

No Ferro’s, vendia-se um pouco de tudo: poetas vendiam seus poemas mimeografados, dizem que Plínio Marcos fazia o mesmo com suas peças teatrais, camelôs entravam para vender flores e bijuterias para os casais de namoradas, o Exército da Salvação vendia seu jornal para livrar as lésbicas do “pecado”, mulheres se vendiam sutilmente etc. Conscientes, portanto, de que o veto à venda do boletim era discriminatório, já que outras publicações e produtos eram vendidos livremente, as integrantes do GALF passaram as semanas seguintes à proibição organizando uma manifestação de protesto a ser realizada no dia 19 de agosto de 1983. Durante esse período, distribuiu o panfleto “Pra você que frequenta o Ferro’s”, na porta do estabelecimento, denunciando a proibição e pedindo apoio das lésbicas para revertê-la. O GALF também entrou em contato com grupos gays, feministas, com parlamentares e com a imprensa, convidando-os para o que veio a ser chamado de happening político do Ferro’s Bar. Como apoio na área legal, convidou também a advogada Zulaiê Cobra Ribeiro, representante da Ordem dos Advogados do Brasil e da Comissão de Direitos Humanos de então. Que seguro morreu de velho.

Discursando na cadeira

Como aconteceu o happening

Na noite do dia 19 de agosto de 1983, as integrantes do GALF, Célia Miliauskas, Elisete Ribeiro Neres, Luiza Granado, Míriam Martinho, Rosely Roth e Vanda Frias, acompanhadas de seus parceiros do Grupo Outra Coisa de Ação Homossexualista, Antônio Carlos Tosta e Ricardo Cury, se reuniram em frente ao famoso bar buscando informar e mobilizar as frequentadoras para a eminente “invasão”. A fim de confirmar que continuavam proibidas de entrar no Ferro’s, Míriam Martinho e Rosely Roth se posicionaram na porta de entrada, onde o truculento porteiro imediatamente as repeliu.

Em seguida, as ativistas do GALF e seus convidados, mobilizados dentro e fora do bar, iniciaram a manifestação. Enquanto o GALF tentava forçar sua entrada, dentro do bar a vereadora Irede Cardoso iniciava um discurso pelas liberdades democráticas também para as lésbicas. Ao mesmo tempo, outros ativistas e frequentadoras começavam um coro de “entra, entra”. De repente, um lance um tanto cômico garantiu a “invasão”: alguém tirou o boné do porteiro e o jogou no meio das mesas. Enquanto ele saía atrás do boné, um rapaz abriu a porta do Ferro’s e as militantes do GALF e o pequeno grupo mobilizado à frente do bar entraram livremente. Rosely Roth subiu em algumas cadeiras e discursou sem ser interrompida pelos seguranças ou pelo porteiro que já recuperará seu boné. Diante da presença da imprensa, da vereadora Irede Cardoso e de várias pessoas favoráveis a venda do Chana, os donos do bar se deram conta de que valia mais a pena ceder as demandas das integrantes do GALF e liberar o boletim.

Irede Cardoso intermediando

A vereadora Irede Cardoso, atuando como mediadora do conflito, reporta para as frequentadoras e ativistas o que lhe dissera um dos donos do bar (Aníbal):

"O dono do bar está dizendo que foi tudo um mal en­tendido, que ele ama as lésbicas, quer que venham aqui e vendam seu bole­tim em paz. Quer que conversem com o outro sócio, também, para acabar com todos os mal-entendidos. Ele re­conhece que vive de vocês. E viva a democracia!"

E Rosely finaliza a conversa afirmando: “"Ele só voltou atrás por causa de nos­sa força, de nossa união. A democra­cia neste bar só depende de nós!"

Em seguida, a manifestação se dispersou com as ativistas do GALF conseguindo uma mesa onde comeram e beberam para celebrar a vitória conquistada. De fato, não só nunca mais foram importunadas pelos seguranças e o porteiro do Ferro’s como inclusive passaram a ter anúncios do Ferro’s no fanzine ChanacomChana. Sucesso total.

Como na definição dos jornalistas Vanda Frias e Carlos Brickman (este que cobriu a intervenção para a Folha de São Paulo), a manifestação do Ferro’s foi um happening político bem-organizado pelo GALF que, como tal, se abriu para o imprevisto, o improviso e a participação de vários atores, todos contribuindo para o sucesso da empreitada.

Fotos: Diana Davies (NY) e Ovídio Vieira (SP)

Ferro’s e Stonewall Inn: Irmanados pelo pioneiro espírito de rebelião contra o preconceito e a discriminação

As comparações entre a intervenção do Ferro’s Bar e a revolta de Stonewall sempre existiram. Recentemente, em entrevista para a revista Ártemis,  me perguntaram se a intervenção do Ferro’s Bar poderia ser lida como uma espécie de “tradução política” da Revolta de Stonewall. Que paralelos eu faria entre os dois eventos. E eu respondi:
 
O happening do Ferro’s pode ser visto sim como uma tradução política da revolta de Stonewall em Nova York, em junho de 1969, embora, como boa tradução, não literal. Ambos remontam ao papel importante que os bares e boates tinham para a população gay e lésbica (travestida ou não) como espaços de socialização e pegação. Estes bares e boates foram, por muito tempo, os únicos espaços onde gays, lésbicas e afins podiam existir mais abertamente, embora ainda como marginais e sujeitos a maus-tratos tanto dos proprietários dos estabelecimentos quanto da polícia. Que os dois eventos tenham ocorrido em bares é, portanto, o resultado natural do contexto histórico da marginalidade homossexual e, paradoxalmente, da revolução sexual e comportamental da Contracultura que inspirava os dissidentes sexuais a enfrentar a discriminação.

A diferença entre Stonewall e o Ferro’s se dá exatamente no aspecto quantitativo da repressão. Stonewall foi uma reação inclusive violenta contra mais uma batida igualmente violenta da polícia no bar controlado pela máfia. Gays, lésbicas e travestis se rebelaram porque não queriam de novo sair do bar de camburão como se fossem bandidos. No Ferro’s também houve alguma repressão antes do evento, porém bem mais light, mas não durante a intervenção, após se ter passado pelo porteiro. A intervenção adquiriu um caráter de happening ou, para usar uma tradução mais atual, uma espécie de flash mob que terminou numa negociação com os donos do bar. Pode ser vista também como uma precursora dos beijaços dos anos 90 em diante, quando gays e lésbicas faziam flash mobs beijoqueiros contra impedimentos a suas demonstrações de afeto em estabelecimentos comerciais.

No entanto, vale salientar que esse cenário relativamente tranquilo se deu também pelo avanço do processo da redemocratização do Brasil, quando o incipiente movimento homossexual pode levar suas reivindicações, incluindo o fim da violência policial contra gays, lésbicas e travestis, por “atentado ao pudor”, tanto ao governador de oposição Franco Montoro, eleito pelo voto direto depois de muitos anos de governadores biônicos, em 1982, quanto ao Secretário de Segurança Pública de SP, no início de 1983, obtendo deste último a promessa de que trabalharia para impedir esse tipo de abordagem hostil da polícia.

Provavelmente isso explica por que a polícia não expulsou as ativistas do GALF em julho de 1983 e sequer apareceu durante a intervenção no Ferro’s. Também garantiram o final feliz da intervenção a presença da grande imprensa (Folha de São Paulo), numa abordagem positiva da lesbianidade, rara ainda naquele período, e a mobilização de vários atores sociais somada aos interesses comerciais dos donos do Ferro’s que se mostraram espertos o suficiente para perceber que valia mais a pena parar de nos boicotar. Apenas três anos antes, porém, no final de 1980, a polícia, sob o comando de um delegado sensacionalista chamado Wilson Richetti desenvolvera uma série de batidas nos bares lésbicos, incluindo o Ferro’s, prendendo várias frequentadoras, nos moldes da batida no Stonewall Inn, mas sem a parte da revolta. De fato, essas batidas policiais foram comuns tanto nos EUA quanto no Brasil, devido à marginalidade imposta à população homossexual, e tanto a revolta de Stonewall quanto a intervenção no Ferro’s, apesar de suas diferenças, estiveram irmanadas pelo pioneiro espírito de rebelião contra nossa quase total ausência de cidadania naquele período.

Falsificar a História é coisa de cabeça totalitária

Contextualizando o 19 de agosto e exorcisando as narrativas fraudulentas

Tanto o GALF, suas integrantes, sua primeira publicação, o fanzine ChanacomChana, quanto sua famosa manifestação de agosto de 1983, foram envolvidos, nestes anos 20, numa narrativa fraudulenta que os vincula a uma suposta luta contra a ditadura militar que sequer existia mais na época. É fato que o regime militar foi de exceção à regra democrática do começo ao fim, mesmo durante o governo Figueiredo, no mínimo porque o general não fora eleito presidente pelo voto popular. No entanto, o período propriamente ditatorial do regime terminou no final de 1978 com a revogação do famigerado AI-5 pelo presidente Geisel.

O último governo militar pode no máximo ser definido como uma democratura. O jornalista Bernardo Braga Pasqualette que escreveu o ótimo Me esqueçam: Figueiredo: A biografia de uma Presidência diz que perguntou ao também jornalista Élio Gaspari, autor de vários livros sobre o regime militar, como definiria o governo Figueiredo. Gaspari disse exatamente que não fora ditadura, tampouco democracia. E que a principal tarefa de Pasqualette seria descobrir o que tinha sido.

O governo Figueiredo legou do governo Geisel o processo de redemocratização do país, configurando-se como o período da abertura do regime, com a retomada até rápida das características do estado democrático de direito, culminando na transição do poder militar para o poder civil em março de 1985. De 1979 até março de 1985, o país aprovou a anistia aos exilados políticos, o indulto a presos políticos, abrandou a censura aos meios de comunicação, retomou o pluripartidarismo e as eleições diretas para cargos do executivo, com destaque para a eleição dos governadores, permitiu grandes manifestações populares como a famosa campanha das Diretas Já. Ainda que pairassem sobre as cabeças dos brasileiros as nuvens carregadas da linha dura do regime dispostas a reverter a abertura, elas acabaram dissipadas sem produzir raios, trovões e tempestades. O clima era de alegria e esperança, apesar do recrudescimento da crise econômica que vai marcar os anos 80. O regime militar exalava seus últimos suspiros. Amém.

Não por menos foi nesse contexto de abertura política que se deu o surgimento do movimento homossexual no Brasil (MHB) em 1979. Embora seus marcos, o tabloide Lampião da Esquina (RJ) e o grupo Somos (SP), sejam de 1978, foi em 1979 que o grupo Somos de São Paulo se tornou público, atraindo muitos gays e lésbicas e fomentando, com sua divulgação pelo Lampião da Esquina, a multiplicação de outras organizações não só em São Paulo como em outras cidades brasileiras. Dentro do Somos também surge o subgrupo lésbico-feminista, de breve duração, que, no entanto, servirá como prólogo do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) fundado em outubro de 1981 e protagonista do happening do Ferro’s Bar.

De 1979 a 1985, no chamado ciclo libertário, esse incipiente movimento homossexual terá como uma de suas marcas registradas a pauta da autonomia em relação aos partidos políticos emergentes, em particular o PT, fundado em fevereiro de 1980. Elementos da organização trotskista Convergência Socialista, que viria a se tornar uma corrente do PT, desde os primeiros passos do Somos, procuraram atrelá-lo ao partido, causando um racha no grupo em maio de 1980. Apesar de ter conseguido rachar o Somos, a CS não teve muito espaço para se expandir no recém-nascido movimento homossexual, sendo rechaçada pela maioria das organizações. Durante todo o ciclo libertário, a bandeira da autonomia tremulou acima de outras, como reconheceu a própria CS em seu livrinho Homossexualismo: da Opressão à libertação, p. 9, 1981 (Hiro Okita).

No mesmo ano de 1980, os debates dentro do próprio movimento homossexual começaram a tomar outros rumos. Preocupava ao movimento uma suposta postura oportunista das esquerdas brasileiras em relação à discussão homossexual. Essa preocupação leva todos os grupos do movimento homossexual a colocarem-se "contra qualquer tipo de poder" (menos o da ditadura militar!) e a senha para esses grupos passou a ser "autonomia".

E, nesse "todos os grupos do movimento homossexual", o GALF, suas publicações e manifestações estavam mais do que inseridas. A postura autonomista foi inclusive registrada de forma indelével em textos de suas integrantes no próprio ChanacomChana, tais como Autonomia e Democracia também para as lésbicas: Uma luta no Ferro’s Bar, ambos da edição 4 do fanzine.

Assim, seja porque sequer estávamos mais numa ditadura e sim no período da redemocratização do Brasil, seja porque nem o GALF nem suas publicações tiveram quaisquer problemas com o governo militar em seus estertores, seja porque o grupo focava estritamente os direitos homossexuais e das mulheres, qualquer pretensa ligação deles com resistências à ditadura militar e levantes se constitui em fraude grotesca. Além de ser brega até a tampa chamar um flash mob de levante.

Um Outro Olhar sobre a tradução lésbica no Brasil – Entrevista com Míriam Martinho

sábado, 19 de julho de 2025 0 comentários



Concedi entrevista  por e-mail para Dennys Silva-Reis, professor e pesquisador em tradução na Universidade Federal do Acre e seu colega Jânderson Albino Coswosk, professor e pesquisador do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES-RJ) para um dossiê sobre tradução e questões queer para a revista acadêmica Ártemis (vide imagem acima).

O título do dossiê é Inqueerir a tradução: sexualidade, línguas e textos que pode ser acessado cliando aqui E minha entrevista recebeu o título de Um Outro Olhar sobre a tradução lésbica no Brasil – Entrevista com Míriam Martinho. Por um erro meu, faltou um "não" no texto de uma frase onde esse "não" é fundamental, por isso, inseri no pdf da entrevista esse "não" (p. 9). Para acessar a entrevista com essa correção clique aqui (Nota: a correção também já foi feita na edição da revista)

A entrevista girou sobre como eu via os avanços nos direitos da mulheres lésbicas (houve mais retrocessos, na minha opinião), sobre os grupos de que participei, a intervenção do Ferro's Bar, o papel dos fanzines e revistas que publiquei para a visibilidade lésbica e a questão mais específica das traduções que produzi para essas publicações. Apesar dos entrevistadores falarem de uma perspectiva queer, foram muito corretos e tolerantes com minhas críticas sobre essa teoria pós-moderna. 😄



Dez. 82

CCC 1

https://bit.ly/3ABOWUD

Fev. 83

CCC 2

https://bit.ly/3McuMmI

Maio 83

CCC 3

https://bit.ly/4dOweaP

Set. 83

CCC 4

https://bit.ly/4fUzVxy

Maio 84

CCC 5

https://bit.ly/3WZI0Iw

Nov. 84

CCC 6

https://bit.ly/3DrtjEY

Abr. 85

CCC 7

https://bit.ly/3YhnDqF

Ago. 85

CCC 8

https://bit.ly/3t31X5T

Dez.-fev.1985/6

CCC 9

https://bit.ly/3R3UvA4

Jun.-Set. 1986

CCC10

https://bit.ly/497zEmK

Out.-Jan. 1986/7

CCC 11

https://bit.ly/3vlStEz

Fev.-Maio 1987

CCC 12

https://bit.ly/3XeVVwl



Memória Lesbiana: 42 anos de Chanacomchana

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024 0 comentários

© Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho 

Há 42 anos era lançado o primeiro número da coleção Chanacomchana, produzida e editada por Míriam Martinho em colaboração com outras ativistas e associadas do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF). O contexto histórico da publicação de 12 edições foi, internacionalmente, o do final da Guerra Fria e dos últimos momentos da Contracultura. Nacionalmente, foi o dos últimos anos da transição democrática do Brasil, após duas décadas de regime militar autoritário, e do progressivo retorno ao estado democrático de direito. Seus primeiros números coincidem com a primeira votação direta para governadores (82) e a campanha pelas Diretas Já (83-84) e, na volta ao período civil a partir de 1985, com a formação da Assembleia Constituinte culminando na nova constituição promulgada em 5 de outubro de 1988.

No terreno da micropolítica dos movimentos sociais, o ChanacomChana reflete as ideias prevalentes no primeiro ciclo do movimento homossexual, o chamado ciclo libertário, de matriz contracultural, principalmente a da autonomia em relação aos partidos políticos e a ideia de uma nova política a ser exercida por uma coalização de movimentos sociais. Reflete também as ideias do feminismo de segunda onda, em particular seu questionamento dos chamados então estereótipos sexuais (hoje de gênero). Reflete ainda a expansão da luta pelos direitos homossexuais e a internacionalização do incipiente movimento de lésbicas com a adesão dos países em desenvolvimento.

O que com certeza o ChanacomChana não reflete é qualquer resistência ao regime militar em seus estertores, embora a publicação tenha sido sequestrada por militantes petistas para ilustrar a tese furada de que os militares teriam tido uma política de estado contra homossexuais.  Entretanto, o Chana não aborda o regime militar em momento algum, nem em notinhas, nem nas cartas dos leitores. E as razões para isso são simples: porque cronologicamente sequer estávamos mais numa ditadura e sim no período da redemocratização; porque ninguém do GALF foi importunada pelos militares; porque o ChanacomChana nunca sofreu qualquer problema com a censura da época; porque a linha editorial da publicação era exclusivamente focada nos direitos homossexuais e das mulheres, só abordando temas macropolíticos quando em relação com esses direitos. Qualquer ligação do zine com resistências à ditadura militar, portanto, se constitui em fraude grotesca. Mais informações em 
Chana com Chana e ditadura militar: uma relação inexistente

Adotando a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo), o Chana foi um típico fanzine no visual, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Questionou os temas em voga em seu período de existência, vide a questão da identidade homossexual e as relações conturbadas com o movimento feminista, e deu voz as lésbicas tão invisíveis do período em entrevistas, depoimentos, poesias, reflexões.

Confiram  as resenhas de todos os 12 números do CCC nos links abaixo.
Feliz 2025!

Chana com Chana e ditadura militar: uma relação inexistente

domingo, 20 de outubro de 2024 0 comentários


Em 28 de agosto último, fiz um desagravo à memória de Rosely Roth pelos 34 anos de sua morte. Esse desagravo surgiu porque sua imagem vem sendo usada como token de narrativas ideológicas sobre uma suposta perseguição dos militares a gays e lésbicas que teria existido até 1984 (sic). Daqui a pouco vão inventar que houve gente perseguida pelos militares até 1989. Apontava que esse tokenismo se compunha de fraudes grosseiras que não batiam com a história do país, do movimento homossexual nos seus primórdios nem com a própria trajetória dela. Nem cronologica nem ideologicamente Rosely poderia ter sido porta-voz da luta contra algo que nem mais existia.

Desta feita, falo também da minha primeira produção, pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), o zine Chana com Chana, igualmente vitimada por essas fraudes grosseiras, e explico como ela foi parar nessas narrativas. Já havia abordado esse tema em outros artigos, de outras perspectivas, dos quais aqui repito informações (deixo links para eles no quadro ao fim do texto), mas avanço outros dados que traçam a origem dessa história. O fato é que sequer existe menção ao regime militar nas páginas de qualquer edição do Chana, mas ele também tem sido usado para ilustrar supostas resistências à ditadura militar em plena época dos comícios das Diretas Já. 

Uma das razões porque resgatei e resenhei todas as edições do Chanacomchana foi para ter certeza de que não havia qualquer menção ao regime militar em suas edições. De repente, nas cartas dos leitores. Mas, como eu lembrava, nem aí. As pessoas, militantes ou não, não estavam preocupadas com o regime em decomposição e sim com seus problemas enquanto homossexuais. Fica, então, para os fraudulentos, o ônus de provar como uma publicação contemporânea da campanha das Diretas Já, que nunca sequer mencionou os militares e que tinha como linha editorial exclusivamente a questão homossexual, poderia ter sido resistência contra a ditadura militar. O único grupo homossexual que abordava à macropolítica da época era a Fração Gay da Convergência Socialista. Não por coincidência é um de seus protagonistas um dos protagonistas da fraude atual, como citarei mais adiante.

Sempre tive enorme gastura, um mal-estar quase físico com o hiperdimensionamento do regime militar feito por remanescentes da (extrema) esquerda do período e seus discípulos atuais. Em outras palavras, esse pessoal pinta o diabo muito mais feio do que foi, travestindo um regime autoritário de totalitário, característica que não teve em momento algum, nem mesmo durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici (69-74), a um tempo o mais repressivo e o mais popular dos governos militares. Esse aparente paradoxo se explica porque, à parte a baixa consciência democrática brasileira, se de um lado havia os anos de chumbo, abafados pela censura, do outro, vigorava à época o auge do milagre econômico. Fora que a repressão não atingia a maioria da população e a prosperidade econômica temporária alimentava o clima ufanista do momento. (Eu mesma só experimentei a repressão autoritária, em 1977, quando fui presa na tristemente histórica invasão da PUC-SP pelo famigerado coronel Erasmo Dias.No artigo As duas décadas dos anos 70, do livro Anos 70: Trajetórias, a psicanalista Maria Rita Kehl descreveu bem aquele momento: “Os anos 70, que iniciaram em 1969, foram terríveis. Todo o mundo parecia apoiar a ditadura”.

Ressalto que meu conhecimento do período advém de experiência vivida, não de leituras enviesadas de militantes travestidos de acadêmicos. Quando os militares chegaram ao poder eu tinha 10 anos e, quando saíram, 30. Passei o início da minha puberdade e da minha juventude sob o regime, particularmente meus 20 anos em seu período francamente ditatorial, o do AI-5 (13/12/1968- 13/10/1978). Sei bem como era o zeitgeist, o espírito da época dos anos 60, 70, já adentrando os anos 80, que foi o da esquerda libertária da Contracultura, não o da esquerda tradicional (marxista-leninista, maoísta, trotskista, etc). Esta, além de fora de moda, pela emergência da nova esquerda dos movimentos sociais, ainda contava com a perseguição dos militares. Por isso sei também que o binômio censura-tortura, a que se procura reduzir quase 21 anos da nossa História, não bate com os fatos. Pior, distorce a história do período e impede uma análise mais ampla, de diferentes ângulos, que nos permita contextualizá-la dentro do conjunto da História do Brasil, cheia de tentativas de golpes e ditaduras, e nos possibilite inclusive entender por que nunca conseguimos uma democracia plena no país até hoje. Aliás, vivemos novamente um clima autoritário.

Como recentemente também apareceram os que subestimam o regime militar e até negam seu caráter autoritário, cumpre salientar que nenhuma pessoa democrata – coisa que a maioria dos hiperdimensionadores não é – vai negar que os militares tenham estabelecido um regime de exceção à regra democrática, em particular de 68 a 78, que tenha havido realmente censura e abusos contra os direitos humanos no período com prisões arbitrárias e mortes sob tortura. Problema é que o hiperdimensionamento de tudo isso não condiz com o fato de os militares terem tido apoio popular e de várias instituições da sociedade para chegar ao poder e nele se manter por tanto tempo. Com um pouco de raciocínio se depreende que eles sequer tinham por que instalar um regime totalitário no país, pois a maioria do povo os apoiava. De fato, foi só com o fim do milagre econômico, que não era sustentável, a partir de 74, e a crise econômica decorrente, que os militares passaram a perder o prestígio junto à população.

O hiperdimensionamento do autoritarismo do regime militar foi construído a partir da edição da experiência real dos que sofreram algum episódio de prisão, tortura, cassação de mandato, exílio, censura, projetada sobre a realidade de toda a população. E o envolvimento do Chanacomchana, um zine do período da transição democrática, acabou por exemplificar - como eu nunca poderia ter imaginado - o quanto de mentira cabe nessa história

Vale notar, inclusive, que muitas publicações de cunho contracultural, que em geral nada falavam sobre o regime e não por causa da censura, foram publicadas durante o período do AI-5 e nem por isso se pode identificá-las como resistências ao regime. A não ser forçando muito a barra, como é de costume hoje. A palavra "resistência" virou um clichê cada vez mais esvaziado de sentido pelo mal uso.

Como o Chanacomchana foi parar nessa narrativa ideológica fraudulenta –  I

Para rastrear como o Chanacomchana acabou envolvido nessa narrativa ideológica de perseguição a homossexuais pelos militares, é preciso retornar à época da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) instituída durante o governo Dilma. Em 2014, nesse âmbito, petistas apresentaram a tese de que a homofobia teria sido uma prática institucionalizada pelo regime, ou seja, uma política de estado, embora não com objetivo de exterminar gays. Tese estranha e questionável sobre vários aspectos, inclusive por ter levado 30 anos para aparecer, após o fim do regime militar, e pela conclusão suspeita de que a CNV deveria indenizar os homossexuais “perseguidos” pelo regime militar.

Assim como outros ativistas pioneiros do MHB, discordei dessa tese desde que tomei conhecimento dela. Nunca ninguém tinha ouvido falar de tal perseguição estatal a homossexuais mesmo no início do movimento, quando ainda estávamos sob o regime militar, embora já no período da abertura. Homofobia existia por todo o lado nos anos 60, 70 e mesmo 80. Alguém saber da homossexualidade de um empregado no ambiente de trabalho, em qualquer área pública ou privada, acarretava a perda do emprego em 99% das situações. A maioria dos gays e das lésbicas (essas em particular) não se colocava abertamente como homossexual nem na família, nem na escola, nem em qualquer outro ambiente que não fosse homossexual. E isso nada tinha a ver com a ditadura, tanto que a vida dupla prevaleceu entre gays e lésbicas por toda a década de 80, já adentrando na de 90. Só nos anos 90 é que homossexuais, sobretudo as lésbicas, começam a efetivamente sair do armário em maior número. Os anos 80 foram só para os fortes.

Personagens cujo histórico questiona as próprias teses

Além de ninguém ter ouvido falar de repressão estatal de gays e lésbicas no período militar, dando a impressão desse trabalho ter sido feito de encomenda para a Comissão Nacional da Verdade, algumas das pessoas envolvidas nessa tese como o brasilianista James Green e, no desenrolar dessa fábula, a personagem Marisa Fernandes, notória por se colocar como protagonista do que não viveu nem fez, tornaram, por si sós, tudo mais discutível. Green parece que se firmou como brasilianista, mas, para a história do Movimento Homossexual Brasileiro, entrou mesmo como o gringo da Convergência Socialista que levou ao racha do Somos em 17 de Maio de 1980.

Nessa ocasião, os fundadores do Somos deixaram o grupo por considerá-lo irremediavelmente comprometido por infiltração da Convergência Socialista (CS), LE, p. 8 que visava transformar o Somos e outros grupos organizados do Brasil em canal para a entrada de homossexuais na Convergência Socialista e no Partido dos Trabalhadores, transformando-os em “caixa de ressonância” de suas propostas político-partidárias. E isso não se trata de mera opinião dos fundadores do Somos, mas sim de informações tiradas de documento interno da CS, de acordo com informativo (05/83) do grupo Outra Coisa de Ação Homossexualista escrito por Antonio Carlos Tosta

Naquela época, contudo, a CS foi amplamente rechaçada pelo incipiente movimento homossexual que não queria se ver atrelado a correntes político-partidárias mal acabara de nascer. Em dezembro de 1980, no Rio, em reunião para organização do que seria o II EGHO (Encontro de Grupos Homossexuais Organizados), os grupos presentes nem sequer aceitaram discutir a Coordenação Nacional proposta pela Fração Gay da Convergência Socialista. A própria CS, em seu livrinho Homossexualismo: da Opressão à libertação, p. 9, (Hiro Okita) afirmou:
No mesmo ano de 1980, os debates dentro do próprio movimento homossexual começaram a tomar outros rumos. Preocupava ao movimento uma suposta postura oportunista das esquerdas brasileiras em relação à discussão homossexual. Essa preocupação leva todos os grupos do movimento homossexual a colocarem-se "contra qualquer tipo de poder" (menos o da ditadura militar!) e a senha para esses grupos passou a ser "autonomia".
Green, segundo o próprio, deixou o movimento já a partir de 1981, na esteira de seu esvaziamento. A Fração Gay da CS idem, apesar de ter se transplantado para o Somos. O Somos, cooptado pelos convergentes, por sua vez, sempre às voltas com gurus, terminou, no segundo semestre de 1983, ironicamente com uma levada contracultural, por certo trazida pela influência do escritor e antropólogo argentino Nestor Perlongher. O MHB ficou muito reduzido e desprestigiado na década de 80, e não havia quase nada para cooptar e aparelhar. Só vou rever essas figuras do início do movimento, Green incluído, a partir sobretudo do VII Encontro de Lésbicas e Homossexuais que organizei pela Rede de Informação Um Outro Olhar em setembro de 1993. Na década de 80, eles sumiram, mas agora querem reescrever a história que não viveram. Principalmente Green parece querer retomar o golpe, que a CS não conseguiu dar no MHB dos anos 80, em modo retroativo.

Sobre Marisa Fernandes, já me referi a sua mitomania várias vezes. Qualquer pessoa que  pesquise a sério seu currículo-fantasia, poderá constatar as inconsistências de suas falas. Ela já se disse fundadora do GALF sem nunca ter sido, editora do Chana onde nunca sequer publicou um artigo, participante da manifestação do Ferro’s quando sequer estava em São Paulo. Depois desmentiu tudo isso em entrevista para uma de suas comparsas (acho que às vezes esquecem de combinar as mentiras). Ver Memória Lesbiana: 40 anos do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) entre fato e ficção e Os inacreditáveis sequestros da história do GALF, do Chana, do Dia do Orgulho e da imagem de Rosely Roth

Neste texto, quero abordar a nova personagem de lutadora contra a ditadura militar e por ela perseguida encarnada por Fernandes como um exemplo da tese furada em pauta em que meteram o Chana. Fernandes é como uma espécie de ISO 9000 às avessas: onde ela aparece a qualidade da história desaparece. Tive o enorme infortúnio de conviver com essa figura lastimável exatamente no período do AI-5, por isso sei que ela não foi nenhuma lutadora contra a ditadura militar, muito menos perseguida por ela. Era uma típica jovem contracultural da época, às voltas com sexo, drogas e rock’n’ roll. Transava com uns e outras, tomava todas e inclusive foi uma das poucas pessoas de meu convívio a tentar a vida comunitária em casinhas à beira de riachos e ao pé de montanhas (mesmo ainda na década de 80). Então, Fernandes eu conheci e sei que essa sua nova personagem é só mais uma de suas interpretações com vistas provavelmente a receber alguma indenização do Estado por uma perseguição que não sofreu. Mas, e as outras pessoas que constam como perseguidas políticas, por exemplo, no site Memorial da Resistência, e que não conheci? Será que foram perseguidas pelos militares como a Marisa Fernandes? As pessoas deveriam lembrar daquele velho ditado de que “uma maçã podre num cesto de maçãs frescas estraga todas as outras”. Depois reclamam da falta de credibilidade.

Como o Chanacomchana foi parar nessa narrativa ideológica fraudulenta –  II

Apesar dos pontos levantados acima sobre a questionabilidade dessa tese, eu mesma tinha colocado, na minha lista de leituras, os textos decorrentes dela, sob a rubrica "ditadura e homossexualidade", que foram aparecendo. De repente, poderia encontrar algo que não fosse fake. Enquanto isso, à guisa de piada, de vez em quando, alguém me mandava notícias e vídeos da nova personagem de Fernandes, a lutadora contra a ditadura, recebendo prêmios por essa suposta luta.

Na verdade, ao que tudo indica para dar sustentação a uma tese que não se sustenta sozinha, os protagonistas da mesma e seus associados, desde o início, já começaram a reescritura da história do país, do movimento homossexual do chamado ciclo libertário (1978-1984) e inclusive da década de 80. O famoso Lampião da Esquina se encaixou bem na narrativa da perseguição militar a homossexuais porque, iniciado ainda sob a vigência do AI-5, foi vitimado por inquérito policial, baseado na Lei de Imprensa da época e na velha lenga-lenga de ataque à moral e aos bons costumes. O processo sem eira nem beira durou 12 meses (agosto de 1978 a 79). Então, os gays já estavam representados na narrativa da perseguição aos homossexuais pelos militares.

Mas faltavam as lésbicas. Problema é que as comadres de James Green e Renan Quinalha (o outro protagonista da tese citada) não produziram publicação alguma para figurar como vítima dos militares. Já a partir de meados de 1981, com o fim do coletivo do lésbico-feminista, que produziu a versão tabloide do Chana, elas sumiram como a maioria dos militantes dos primeiros dois anos.

Um apanhado do histórico do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro)  

O MHB teve uma trajetória peculiar, que não sei se possui paralelo com a de outros países, e que resumo aqui. Começa a todo o vapor em 1979 e quase desaparece nos anos 80, criando uma espécie de hiato entre o ativismo dos anos 80 e das décadas seguintes. Ele tem como marcos fundadores o surgimento do tabloide Lampião da Esquina no Rio e do grupo Somos em São Paulo, ambos em 1978.

O grupo Somos nasce como um grupo de amigos gays que se reunia para falar das dores e delícias de ser homossexual, na época mais das dores. No ano seguinte, 1979, quando o grupo começou a desenvolver atividades públicas, como participar de debates, passou a se tornar mais conhecido e a crescer rapidamente, o mesmo acontecendo com outros grupos pelo Brasil que foram pipocando aqui e ali. O fato de o Lampião da Esquina ter sido divulgador das atividades do Somos e dos grupos em geral, nos primeiros dois anos, 79-80, é a provável causa desse crescimento abrupto, pois amplificava a causa homossexual no país.

No final de 1980, porém, os grupos começaram a se desentender com o pessoal do Lampião da Esquina que, segundo eles, não estava mais divulgando as organizações como devido. Depois se inicia uma novela, nos primeiros meses de 1981, sobre a participação do jornal na organização do II Encontro de Grupos Homossexuais Organizados (II EGHO), já que a comissão organizadora carioca se diluíra, e que termina em março com a rejeição desse protagonismo,  o que levou os editores a não mais divulgar os grupos e suas atividades. (Os números de 31 a 35 do Lampião registram a história na seção "ativismo"). O encontro acabou não sendo organizado no Rio e se optou pela realização de encontros apenas regionais. O próprio Lampião da Esquina termina em meados de 1981, e toda a efusão dos primeiros dois anos do ativismo LG começa a refluir. As lésbicas do coletivo lésbico-feminista (maio 78- maio 81) também se desarticulam e várias migram para o armário feminista. Até o início de 1984, vão desaparecer também o Somos e o Outro Coisa, sobrevivendo somente o GALF desse chamado ciclo libertário.

Então, repetindo, as comadres de Quinalha e Green desapareceram e só reapareceram 12 anos depois com o renascimento do movimento que ajudei a rebatizar de gay e lésbica no VII Encontro de Lésbicas e Homossexuais (set. 1993) já citado. Então, o único grupo de lésbicas que se manteve foi o GALF e as únicas publicações regulares dos anos 80 foram o ChanacomChana, seguida do boletim Um Outro Olhar.

Como o Chana começou a ser produzido nos últimos 2 anos do regime militar, contemporâneo da campanha das Diretas Já, acabou na mira dos produtores da narrativa  “homossexuais perseguidos pelos militares” que resolveram roubar a publicação para ilustrar suas fábulas. 

Ao fazer isso, contudo, apenas comprovaram o quanto sua tese é falsa, pois o Chana não aborda o regime militar em momento algum, nem em notinhas. E isso se explica porque o movimento da época, como comprovado pela referência da própria CS que citei, não queria a questão homossexual atrelada a então chamada luta maior, como almejavam os trotskistas. Tal postura fica cristalina no texto de Rosely, Autonomia (CCC 4), e no da Vanda Frias sobre a manifestação do Ferro’s, Democracia também para as lésbicas: Uma luta no Ferro’s Bar (CCC4). onde ela registra a orientação política do GALF. Ver CCC 4 aqui.

Então, seja porque cronologicamente sequer estávamos mais numa ditadura e sim no período da redemocratização, seja porque nem eu nem ninguém do GALF fomos importunadas pelos militares, seja porque o ChanacomChana nunca sofreu qualquer problema com a censura da época, seja porque a linha editorial da publicação era exclusivamente focada nos direitos homossexuais e das mulheres, qualquer ligação do zine com resistências à ditadura militar se constitui em fraude grotesca.

Chega a ser particularmente ridículo, aliás, num momento em que o Brasil promovia um dos maiores movimentos de massa de sua História, a campanha das Diretas Já, com milhares de pessoas nas ruas, sem repressão, vir alguém falar que lésbicas e gays estavam sendo perseguidos pelos militares.

No período da transição democrática, o que havia de receio das pessoas quanto aos militares era de um possível revertério no processo de abertura, já que algumas correntes radicais do regime não a queriam. Mas como diz o ditado de Victor Hugo (a ele atribuído ao menos), “nada é tão poderoso como uma ideia cujo tempo chegou”. Maior exemplo disso foi a tentativa de integrantes do exército de colocar uma bomba no Rio Centro, durante um show pelo Dia do Trabalho, em 31 de abril de 1981, e que explodiu no colo de um deles (foto abaixo). Carma instantâneo.

Bomba detonou no colo do sargento  Guilherme Rosário 
Foto de Anibal Philot / Agência O Globo

Acho que principalmente minha geração, que cresceu sob o regime militar, pegou esse cacoete de chamar os 21 anos de sua vigência genericamente de “ditadura militar”, embora o regime tenha sido bem heterogêneo, o que facilita a vida dos fraudadores. Tendo isso em vista, eu mesma venho me policiando no sentido de ser mais precisa. Considerando o que descrevi acima, é fácil de entender o porquê.

Montagem com  imagens de IA - ©Míriam Martinho

Chanacomchana é o passado falando com sua voz própria

Concluindo, dou um exemplo do tipo de embuste em voga usando o Chana, no caso uma de minhas tirinhas, para ilustrar a suposta perseguição dos militares contra as lésbicas. Minha tirinha “Quem é sapatão pro camburão”, que ilustra meu texto A Negação da Homossexualidade (CCC 2, p. 2), do qual é parte indissociável, critica o discurso dos "descolados" da época contra a identidade homossexual porque esta seria um rótulo restritivo da sexualidade humana, mas foi tirado de seu contexto para representar, nas teses picaretas da vida, uma suposta perseguição das sapatonas durante a ditadura civil-militar brasileira.

Neste artigo, eu, na realidade, questiono a discussão muito em voga de 82 em diante, tanto que a abordo outra vez no CCC 5, de que afirmar uma identidade homossexual implicaria "cair num esquema de normatização, modelização, padronização das categorias sexuais". Argumentava que essa discussão, da forma como posta então, levaria à invisibilidade da homossexualidade e à desmobilização política, como de fato ocorreu. Como se reivindicar direitos políticos para seres humanos marginalizados por sua orientação sexual, sem estabelecer um sujeito político, reconhecido pela sociedade, para essas reivindicações? Simplesmente sair-se negando as identidades de hétero, homo, colocando-se como "apenas gente", como na tirinha, mudava a realidade objetiva do tratamento diferenciado dado a héteros e homos?

A referência às batidas dadas pelo sensacionalista delegado José Wilson Richetti da Delegacia Seccional do Centro de SP, em 1980, nos bares lésbicos (conhecida como Operação Sapatão), aparece na tirinha apenas para dar ênfase às situações bem diferenciadas que lésbicas e héteros podiam enfrentar no cotidiano.

As ações de Richetti, em 1980, porém, se deram em função da marginalidade em que viviam gays e lésbicas ainda nesse período, não em função de perseguição do Estado militar. No mesmo ano, Richetti também resolveu fazer uma operação limpeza no centro de São Paulo que igualmente vitimou negros, prostitutas e travestis. A truculência da polícia ainda hoje se faz sentir junto às populações mais periféricas e não estamos mais no regime militar (né, mesmo?).

Crítica ao discurso da não identidade homossexual, muito em voga nos primeiros anos da década de 80, que afirmava serem identidades apenas rótulos, como se bastasse alguém dizer que não era homossexual para a opressão terminar

Em maio de 83, no CCC 3, seção Informes, inclusive registrei o encontro dos grupos de gays e lésbicas com o Secretário de Segurança de SP, quando se reivindicou o fim da abordagem policial contra homossexuais com base no muito subjetivo conceito de “atentado ao pudor”, tendo obtido do mesmo a promessa de que trabalharia para impedir esse abuso contra gays e lésbicas.

Por último, repetindo o que já disse em outros artigos sobre o Chanacomchana, ele é o passado falando com sua voz própria, não o passado confessando sob tortura o que uns e outras querem que ele diga. Basta lê-lo de fato, em vez de ficar fazendo "copia e cola" de teses vigaristas, que se encontrará tudo que ele tem a dizer sobre as vivências lésbicas dos anos 80, sobre a trajetória do GALF, do MHB, do incipiente movimento de lésbicas que se iniciava internacionalmente. O que não encontrará com certeza é qualquer menção ao regime militar em seus estertores. Para facilitar, resenhei todas as edições do Chana, como segue abaixo, mas vale a leitura de seus números para conferir o que digo e não sair comprando gato por lebre.

Nota: Perguntei a uma IA, Sender GPT 4, sobre as consequências de se reescrever a história, e ela respondeu o seguinte:

Reescrever a história pode apresentar vários riscos, incluindo:

  1. Desinformação: A reescrita pode distorcer fatos e eventos, levando a um entendimento incorreto do passado.
  2. Perda de Contexto: Alterações na narrativa histórica podem fazer com que sejam ignorados o contexto e as complexidades dos eventos.
  3. Espalhamento de Narrativas Parciais: Muitas vezes, a reescrita é feita a partir de uma perspectiva específica, o que pode levar a uma glorificação ou demonização de certos grupos ou figuras.
  4. Consequências Políticas: A reescrita da história pode ser usada para justificar ações políticas atuais ou promover ideologias, afetando a memória coletiva e a identidade cultural.
  5. Divisão Social: Narrativas conflitantes sobre o passado podem fomentar divisões entre diferentes grupos sociais, étnicos ou políticos.
  6. Deslegitimação de Experiências: Reescrever a história pode minimizar ou deslegitimar as experiências e sofrimento de certos grupos, perpetuando injustiças.
  7. Erosão da Confiança: Se a história frequentemente é reescrita, pode haver uma erosão da confiança nas instituições e figuras responsáveis pela preservação da verdade histórica.

Esses riscos destacam a importância de uma análise crítica e fundamentada das narrativas históricas.



Dez. 82

CCC 1

https://bit.ly/3ABOWUD

Fev. 83

CCC 2

https://bit.ly/3McuMmI

Maio 83

CCC 3

https://bit.ly/4dOweaP

Set. 83

CCC 4

https://bit.ly/4fUzVxy

Maio 84

CCC 5

https://bit.ly/3WZI0Iw

Nov. 84

CCC 6

https://bit.ly/3DrtjEY

Abr. 85

CCC 7

https://bit.ly/3YhnDqF

Ago. 85

CCC 8

https://bit.ly/3t31X5T

Dez.-fev.1985/6

CCC 9

https://bit.ly/3R3UvA4

Jun.-Set. 1986

CCC10

https://bit.ly/497zEmK

Out.-Jan. 1986/7

CCC 11

https://bit.ly/3vlStEz

Fev.-Maio 1987

CCC 12

https://bit.ly/3XeVVwl




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