19 de Agosto: Dia do Orgulho Lésbico 2025

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Barradas no baile

Míriam Martinho

Proposto pela ativista Míriam Martinho, em outubro de 2000, na revista Um Outro Olhar, o Dia Nacional do Orgulho Lésbico (19 de agosto) foi lançado publicamente em 11 de junho de 2003 pelas ativistas Luiza Granado e Neusa Maria de Jesus, então respectivamente da Rede de Informação Um Outro Olhar e da Coordenadoria Especial de Lésbicas (CEL) da Associação da  Parada do Orgulho GLBT (como era chamada a associação nos anos 2000). A data remete à primeira manifestação lésbica contra a discriminação no Brasil, ocorrida no Ferro's Bar em 1983, homenageando também a ativista Rosely Roth, figura de destaque do evento. Como na versão original da manifestação, a Folha de São Paulo fez uma reportagem sobre o lançamento do dia, pauta que foi reproduzida por outros jornalistas e outros veículos da mídia, dando uma grande divulgação à iniciativa. Desde então, a data passou a ser lembrada anualmente de forma presencial ou virtual.

A origem da data: o happening do Ferro’s Bar

Museu Judaico de São Paulo

Onde aconteceu

Inaugurado em 1961, na rua Martinho Prado n.º 119, em frente ao atual Museu Judaico de São Paulo, o Ferro’s Bar, a princípio, foi reduto da boemia paulistana, reunindo atores, atrizes, escritores, jornalistas, gays e prostitutas em suas disputadas mesas. Já a partir dos anos 70, porém, tornou-se o principal ponto de encontro das lésbicas paulistanas, assim permanecendo até setembro de 2000 quando fechou as portas.

Apesar de ter ficado conhecido como bar das lésbicas, as relações do Ferro’s com suas frequentadoras nem sempre foram das mais cordiais. Casos de maus tratos e até violência física contra as clientes, com pouca reação das vítimas, já constavam da história do bar desde seu início. Essa situação iria mudar, contudo, quando os donos do Ferro’s, no primeiro semestre de 1983, resolveram implicar com a venda do boletim ChanacomChana publicado por ativistas do Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) desde dezembro de 1982. Fundado, em outubro de 1981, pelas ativistas Míriam Martinho e Rosely Roth e algumas colaboradoras, o Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) passou a vender o boletim ChanacomChana nos bares e boates de lésbicas da época, incluindo o Ferro's.

Entrando

Quando aconteceu

Quando as integrantes do GALF iam vender seu boletim no Ferro’s, todavia, eram agredidas pelo porteiro com ameaças ou com puxões de braço para que se retirassem. Em 23 de julho de 1983, o clima pesou ainda mais e um dos donos do bar, ladeado por um segurança e o truculento porteiro do Ferro’s, tentaram aos empurrões efetivar a expulsão das militantes, sob a acusação de que estariam promovendo “arruaça” no estabelecimento. Não obtiveram sucesso, porém, porque, de um lado, as frequentadoras do bar protestaram contra a expulsão e, de outro, porque os policiais que foram chamados para ajudar no bota-fora ironicamente não viram razão suficiente para tal. As ativistas do GALF permaneceram no Ferro’s e inclusive jantaram na ocasião, mas foram barradas na entrada do restaurante depois desse episódio.

No Ferro’s, vendia-se um pouco de tudo: poetas vendiam seus poemas mimeografados, dizem que Plínio Marcos fazia o mesmo com suas peças teatrais, camelôs entravam para vender flores e bijuterias para os casais de namoradas, o Exército da Salvação vendia seu jornal para livrar as lésbicas do “pecado”, mulheres se vendiam sutilmente etc. Conscientes, portanto, de que o veto à venda do boletim era discriminatório, já que outras publicações e produtos eram vendidos livremente, as integrantes do GALF passaram as semanas seguintes à proibição organizando uma manifestação de protesto ser realizada no dia 19 de agosto de 1983. Durante esse período, distribuiu o panfleto “Pra você que frequenta o Ferro’s”, na porta do estabelecimento, denunciando a proibição e pedindo apoio das lésbicas para revertê-la. O GALF também entrou em contato com grupos gays, feministas, com parlamentares e com a imprensa, convidando-os para o que veio a ser chamado de happening político do Ferro’s Bar. Como apoio na área legal, convidou também a advogada Zulaiê Cobra Ribeiro, representante da Ordem dos Advogados do Brasil e da Comissão de Direitos Humanos de então. Que seguro morreu de velho.

Discursando na cadeira

Como aconteceu

Na noite do dia 19 de agosto de 1983, as integrantes do GALF, Célia Miliauskas, Elisete Ribeiro Neres, Luiza Granado, Míriam Martinho, Rosely Roth e Vanda Frias, acompanhadas de seus parceiros do Grupo Outra Coisa de Ação Homossexualista, Antônio Carlos Tosta e Ricardo Cury, se reuniram em frente ao famoso bar buscando informar e mobilizar as frequentadoras para a eminente “invasão”. A fim de confirmar que continuavam proibidas de entrar no Ferro’s, Míriam Martinho e Rosely Roth se posicionaram na porta de entrada, onde o truculento porteiro imediatamente as repeliu.

Em seguida, as ativistas do GALF e seus convidados, mobilizados dentro e fora do bar, iniciaram a manifestação. Enquanto o GALF tentava forçar sua entrada, dentro do bar a vereadora Irede Cardoso iniciava um discurso pelas liberdades democráticas também para as lésbicas. Ao mesmo tempo, outros ativistas e frequentadoras começavam um coro de “entra, entra”. De repente, um lance um tanto cômico garantiu a “invasão”: alguém tirou o boné do porteiro e o jogou no meio das mesas. Enquanto ele saía atrás do boné, um rapaz abriu a porta do Ferro’s e as militantes do GALF e o pequeno grupo mobilizado à frente do bar entraram livremente. Rosely Roth subiu em algumas cadeiras e discursou sem ser interrompida pelos seguranças ou pelo porteiro que já recuperará seu boné. Diante da presença da imprensa, da vereadora Irede Cardoso e de várias pessoas favoráveis a venda do Chana, os donos do bar se deram conta de que valia mais a pena ceder as demandas das integrantes do GALF e liberar o boletim.

Irede Cardoso intermediando

A vereadora Irede Cardoso, atuando como mediadora do conflito, reporta para as frequentadoras e ativistas o que lhe dissera um dos donos do bar (Aníbal):

"O dono do bar está dizendo que foi tudo um mal en­tendido, que ele ama as lésbicas, quer que venham aqui e vendam seu bole­tim em paz. Quer que conversem com o outro sócio, também, para acabar com todos os mal-entendidos. Ele re­conhece que vive de vocês. E viva a democracia!"

E Rosely finaliza a conversa afirmando: “"Ele só voltou atrás por causa de nos­sa força, de nossa união. A democra­cia neste bar só depende de nós!"

Em seguida, a manifestação se dispersou com as ativistas do GALF conseguindo uma mesa onde comeram e beberam para celebrar a vitória conquistada. De fato, não só nunca mais foram importunadas pelos seguranças e o porteiro do Ferro’s como inclusive passaram a ter anúncios do Ferro’s no fanzine ChanacomChana. Sucesso total.

Como na definição dos jornalistas Vanda Frias e Carlos Brickman (este que cobriu a intervenção para a Folha de São Paulo), a manifestação do Ferro’s foi um happening político bem-organizado pelo GALF que, no entanto, se abriu para o imprevisto, o improviso e a participação de vários atores, todos contribuindo para o sucesso da empreitada.

Fotos: Diana Davies (NY) e Ovídio Vieira (SP)

Ferro’s e Stonewall Inn: Irmanados pelo pioneiro espírito de rebelião contra o preconceito e a discriminação

O happening do Ferro’s pode ser visto como uma tradução política da revolta de Stonewall em Nova York, em junho de 1969, embora, como boa tradução, não literal. Ambos remontam ao papel importante que os bares e boates tinham para a população gay e lésbica (travestida ou não) como espaços de socialização e pegação. Estes bares e boates foram, por muito tempo, os únicos espaços onde gays, lésbicas e afins podiam existir mais abertamente, embora ainda como marginais e sujeitos a maus-tratos tanto dos proprietários dos estabelecimentos quanto da polícia. Que os dois eventos tenham ocorrido em bares é, portanto, o resultado natural do contexto histórico da marginalidade homossexual e, paradoxalmente, da revolução sexual e comportamental da Contracultura que inspirava os dissidentes sexuais a enfrentar a discriminação.

A diferença entre Stonewall e o Ferro’s se dá exatamente no aspecto quantitativo da repressão. Stonewall foi uma reação inclusive violenta contra mais uma batida igualmente violenta da polícia no bar controlado pela máfia. Gays, lésbicas e travestis se rebelaram porque não queriam de novo sair do bar de camburão como se fossem bandidos. No Ferro’s também houve alguma repressão antes do evento, porém bem mais light, mas não durante a intervenção, após se ter passado pelo porteiro. A intervenção adquiriu um caráter de happening ou, para usar uma tradução mais atual, uma espécie de flash mob que terminou numa negociação com os donos do bar. Pode ser vista também como uma precursora dos beijaços dos anos 90 em diante, quando gays e lésbicas faziam flash mobs beijoqueiros contra impedimentos a suas demonstrações de afeto em estabelecimentos comerciais.

No entanto, vale salientar que esse cenário relativamente tranquilo se deu também pelo avanço do processo da redemocratização do Brasil, quando o incipiente movimento homossexual pode levar suas reivindicações, incluindo o fim da violência policial contra gays, lésbicas e travestis, por “atentado ao pudor”, tanto ao governador de oposição Franco Montoro, eleito pelo voto direto depois de muitos anos de governadores biônicos, em 1982, quanto ao Secretário de Segurança Pública de SP, no início de 1983, obtendo deste último a promessa de que trabalharia para impedir esse tipo de abordagem hostil da polícia.

Isso explica por que a polícia sequer apareceu durante a intervenção no Ferro’s. Também garantiram o final feliz da intervenção a presença da grande imprensa (Folha de São Paulo), numa abordagem positiva da lesbianidade, rara ainda naquele período, e a mobilização de vários atores sociais somada aos interesses comerciais dos donos do Ferro’s que se mostraram espertos o suficiente para perceber que valia mais a pena parar de nos boicotar. Apenas três anos antes, porém, no final de 1980, a polícia, sob o comando de um delegado sensacionalista chamado Wilson Richetti desenvolvera uma série de batidas nos bares lésbicos, incluindo o Ferro’s, prendendo várias frequentadoras, nos moldes da batida no Stonewall Inn, mas sem a parte da revolta. De fato, essas batidas policiais foram comuns tanto nos EUA quanto no Brasil, devido à marginalidade imposta à população homossexual, e tanto a revolta de Stonewall quanto a intervenção no Ferro’s, apesar de suas diferenças, estiveram irmanadas pelo pioneiro espírito de rebelião contra nossa quase total ausência de cidadania naquele período.

Falsificar a História é coisa de cabeça totalitária

Contextualizando o 19 de agosto e exorcisando as narrativas fraudulentas

Tanto o GALF, suas integrantes, sua primeira publicação, o fanzine ChanacomChana, quanto sua famosa manifestação de agosto de 1983, foram envolvidos, nestes anos 20, numa narrativa fraudulenta que os vincula a uma suposta luta contra a ditadura militar que sequer existia mais na época. É fato que o regime militar foi de exceção à regra democrática do começo ao fim, mesmo durante o governo Figueiredo, no mínimo porque o general não fora eleito presidente pelo voto popular. No entanto, o período propriamente ditatorial do regime terminou no final de 1978 com a revogação do famigerado AI-5 pelo presidente Geisel.

O último governo militar pode no máximo ser definido como uma democratura. O jornalista Bernardo Braga Pasqualette que escreveu o ótimo Me esqueçam: Figueiredo: A biografia de uma Presidência diz que perguntou ao também jornalista Élio Gaspari, autor de vários livros sobre o regime militar, como definiria o governo Figueiredo. Gaspari disse exatamente que não fora ditadura, tampouco democracia. E que a principal tarefa de Pasqualette seria descobrir o que tinha sido.

O governo Figueiredo legou do governo Geisel o processo de redemocratização do país, configurando-se como o período da abertura do regime, com a retomada até rápida das características do estado democrático de direito, culminando na transição do poder militar para o poder civil em março de 1985. De 1979 até março de 1985, o país aprovou a anistia aos exilados políticos, o indulto a presos políticos, abrandou a censura aos meios de comunicação, retomou o pluripartidarismo e as eleições diretas para cargos do executivo, com destaque para a eleição dos governadores, permitiu grandes manifestações populares como a famosa campanha das Diretas Já. Ainda que pairassem sobre as cabeças dos brasileiros as nuvens carregadas da linha dura do regime dispostas a reverter a abertura, elas acabaram dissipadas sem produzir raios, trovões e tempestades. O clima era de alegria e esperança, apesar do recrudescimento da crise econômica que vai marcar os anos 80. O regime militar exalava seus últimos suspiros. Amém.

Não por menos foi nesse contexto de abertura política que se deu o surgimento do movimento homossexual no Brasil (MHB) em 1979. Embora seus marcos, o tabloide Lampião da Esquina (RJ) e o grupo Somos (SP), sejam de 1978, foi em 1979 que o grupo Somos de São Paulo se tornou público, atraindo muitos gays e lésbicas e fomentando, com sua divulgação pelo Lampião da Esquina, a multiplicação de outras organizações não só em São Paulo como em outras cidades brasileiras. Dentro do Somos também surge o subgrupo lésbico-feminista, de breve duração, que, no entanto, servirá como prólogo do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) fundado em outubro de 1981 e protagonista do happening do Ferro’s Bar.

De 1979 a 1985, no chamado ciclo libertário, esse incipiente movimento homossexual terá como uma de suas marcas registradas a pauta da autonomia em relação aos partidos políticos emergentes, em particular o PT, fundado em fevereiro de 1980. Elementos da organização trotskista Convergência Socialista, que viria a se tornar uma corrente do PT, desde os primeiros passos do Somos, procuraram atrelá-lo ao partido, causando um racha no grupo em maio de 1980. Apesar de ter conseguido rachar o Somos, a CS não teve muito espaço para se expandir no recém-nascido movimento homossexual, sendo rechaçada pela maioria das organizações. Durante todo o ciclo libertário, a bandeira da autonomia tremulou acima de outras, como reconheceu a própria CS em seu livrinho Homossexualismo: da Opressão à libertação, p. 9, 1981 (Hiro Okita).

No mesmo ano de 1980, os debates dentro do próprio movimento homossexual começaram a tomar outros rumos. Preocupava ao movimento uma suposta postura oportunista das esquerdas brasileiras em relação à discussão homossexual. Essa preocupação leva todos os grupos do movimento homossexual a colocarem-se "contra qualquer tipo de poder" (menos o da ditadura militar!) e a senha para esses grupos passou a ser "autonomia".

E, nesse "todos os grupos do movimento homossexual", o GALF, suas publicações e manifestações estavam mais do que inseridas. A postura autonomista foi inclusive registrada de forma indelével em textos de suas integrantes no próprio ChanacomChana, tais como Autonomia e Democracia também para as lésbicas: Uma luta no Ferro’s Bar, ambos da edição 4 do fanzine.

Assim, seja porque sequer estávamos mais numa ditadura e sim no período da redemocratização do Brasil, seja porque nem o GALF nem suas publicações tiveram quaisquer problemas com o governo militar em seus estertores, seja porque o grupo focava estritamente os direitos homossexuais e das mulheres, qualquer pretensa ligação deles com resistências à ditadura militar e levantes se constitui em fraude grotesca. Além de ser brega até a tampa chamar um flash mob de levante.

0 comentários:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
 
Um Outro Olhar © 2025 | Designed by RumahDijual, in collaboration with Online Casino, Uncharted 3 and MW3 Forum