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Batom ou Camisa Xadrez?

segunda-feira, 30 de abril de 2012 1 comentários

Da camisa xadrez da butch...
Autora: Stella Ferraz

Uma das razões pela qual Joana D’Arc foi para a fogueira é porque insistia em usar roupas masculinas. Embora houvesse também razões de ordem política, os trajes que a jovem francesa usava escandalizavam e, pior, estavam absolutamente fora das normas prescritas para as mulheres da época. Se o hábito não faz o monge, com certeza lhe dá a aparência de um. Há um dito na comunidade árabe que afirma que eles recebem as pessoas como elas se apresentam, mas se despedem de acordo como elas são. 

A verdade é que o vestuário tem muito a ver com a mensagem que queremos dar de nós mesmas. Até recentemente o traje discriminava as pessoas por idade (crianças, jovens, adultos e idosos) e classe social (realeza, nobreza, burguesia, povo): a menina devia vestir-se de uma determinada forma, a mulher casada de outra e a viúva ainda de um terceiro modo. O mesmo com os rapazes; usavam calças curtas em pequenos, e o uso de calças compridas, marcava para eles a passagem a um estágio mais maduro de vida.

No decorrer do tempo, a roupa tem sido um sinal exterior de classe social e status na sociedade. Os escravos brasileiros eram obrigados a usar roupas brancas, e não lhes permitiam outra cor senão essa, para dificultar-lhes a fuga. Basta conferir as célebres pinturas de Debret e Rugendas com nossos negros, todos devidamente uniformizados em branco. Da mesma forma os presos usavam roupas listradas, para discriminá-los e tornar-lhes complicada a evasão do presídio.

Na Idade Média, certos tipos de tecidos e cores eram privilégios da nobreza. A burguesia também se distinguia das demais classes por roupas que lhes eram próprias e não se confundiam com as da realeza. Em nosso passado recente, a palavra da ordem da esquerda era o uso da roupa o mais próxima possível do padrão operário, num esforço para identificar-se e vestir seus ideais, enquanto que a pequena burguesia corre sempre atrás das etiquetas e grifes para aparentar um status e um poder aquisitivo que está longe de ter.

... pela liberação de Coco Chanel....
A virada de Coco Chanel

 Este final de século e de milênio marca a transição entre as imposições da veste e a liberação dessas imposições. Para essa virada, houve uma mulher que desempenhou um papel preponderante: Coco Chanel, que desenhou trajes práticos para as mulheres e inventou o prêt-à-porter, o pronto para vestir, que dispensava a costureira particular, era produzido em série e muito mais barato. A partir dela, a moda passou a ser algo ao alcance do proletariado e da pequena burguesia.

 Hoje é comum vermos mulheres de meia idade em trajes de juventude sem com isso criar escândalo. Já não se impõe uma veste que discrimine ou que privilegie. Cadeias de lojas como C&A e Marisa oferecerem modelos da moda a custo popular. Não somos mais obrigadas a nos vestir dentro de um determinado modelo. Hoje, mais do que nunca, quem dita a moda e a forma de se vestir somos nós mesmas.

Já podemos vestir o que sentimos que somos. Não há mais imposições externas, salvo, claro, uns poucos, por exemplo, quando você é advogada e deve ir ao Fórum. Ali, você em que usar uma saia, quer queira quer não.

O importante é que cada uma pode vestir o que é. Ou o que sente que é. Aí entra a tipologia: as que fazem o gênero butch ou caminhoneira, porque se sentem mais masculinas e querem ser vistas e compreendidas desse modo, e outras que se entendem por chics e já ganharam o preconceituoso apelido de lesbian chic.

.... às lesbian chics
Muitas butches, menos providas de idéias, procuram no guarda-roupa básico masculino a sua melhor expressão: camisa xadrez larga que lhe disfarce o busto, jeans (com a carteira no bolso de trás) e mocassino. As mais inspiradas atacam de camiseta pólo e outros modelitos menos batidos com a mesma calça jeans e o mesmo mocassino.

Meu primeiro romance GLS, Preciso Te Ver, foi considerado por muita gente um cenário de lesbian chics. As personagens principais usavam lenços Hermes (que nem a própria autora pode comprar e modelitos Chanel. Não que só houvesse lesbian chics na estória, havia jornalistas que usavam camisetas com slogans e veterinárias de botina. Mas o que marcou foram as heroínas, que andavam mesmo com todos os signos de poder aquisitivo. Nesse romance eu me guiei pela máxima de Joãozinho Trinta: pobre gosta de luxo; intelectual é que gosta de pobreza.

Vestida para ser a gente mesma
Em meu segundo romance, A vila das meninas, absorvi as críticas, deixei o conselho do Carnavalesco de lado, e situei a cena num ambiente em que as pessoas pegavam o ônibus, usavam camiseta Hering e comiam pastel. Enfim, as personagens tinham um estilo de vida inclusive ao alcance de sua autora. A roupa ajudou a situar quem eram as personagens.

E aí chegamos ao que interessa: lesbian chic ou butch, ou, simplesmente, mulheres que amam mulheres e amam se vestir cada qual de seu jeito, o importante é que nos conheçamos para saber o que melhor nos cai bem, o que melhor nos favorece dentro de um estilo nosso, que faz a nossa cabeça.

O autoconhecimento vai nos ajudar a selecionar o que queremos vestir. Mesmo aquelas que parecem não ligar para roupa e para moda, muitas vezes, na verdade, estão sinalizando: eu me visto assim porque não me preocupa a roupa, mas o conteúdo. Pode estar sinalizando sem querer, no entanto, que é uma pessoa que cabe no ditado: quem se enjeita se rejeita... E dar a ideia de que se não é capaz de cuidar de si, muito menos dos outros e de uma namorada.

Outras que capricham demais, podem estar passando a sensação de vácuo, vazio interior. O que pode resultar num primeiro movimento de rejeição, da mesma forma como se dá com as desmazeladas. Muitas vezes nos sentimos muitas, várias em uma. Pelo menos é como eu me sinto: num dia, executiva, no outro butch, no seguinte chic ou feminina. E acabo compondo um visual para cada momento: hoje é  jeans, amanhã uma calça com pregas, depois de amanhã um vestido e salto alto. Mas em todas essas variações há uma constância que sou eu e meu estilo.

Sejamos uma ou várias, o importante é vestirmos o que realmente somos. Joana D’Arc foi condenada por vestir-se de homem e nós seremos se nos vestirmos de outra coisa que não nós mesmas.

Stella C. Ferraz é autora dos romances lésbicos Preciso te Ver e A Vila das Meninas, publicados pela ed. Brasiliense. Artigo originalmente produzido para a Revista Um Outro Olhar n. 34

A ética do outing: Quando é válido assumir os outros!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012 1 comentários

Autora: Míriam Martinho

Coming out of the closet é a expressão em inglês que, na tradução para o português, virou o célebre "sair do armário". "Sair do armário" é quando uma pessoa decide assumir sua homossexualidade ou qualquer outra preferência sexual não-ortodoxa publicamente.

Outing, por sua vez, é a expressão também em inglês que designa o ato de tirar alguém do armário à revelia. Ação política controversa, pois implica expor a privacidade alheia, ela divide opiniões em sua aplicação, mas vem sendo utilizada cada vez mais em todo o mundo.

Para alguns ativistas LGBT, o outing deveria ser feito com tod@s @s enrustid@s, pois eles contribuem pouco ou nada para o avanço dos direitos humanos LGBT, embora se beneficiem imensamente dos ganhos conquistados pelos que tiveram a coragem de se assumir.

O argumento é consistente, mas esbarra no fato de que as pessoas dependem de empregos para sobreviver, e a homossexualidade, ou qualquer outra atividade sexual diferente da heteronormalidade tradicional, pode ainda ser motivo de demissão no trabalho, pode criar problemas na relação da pessoa com a família e mesmo em seu círculo pessoal de socialização.

Por essa razão, o outing indiscriminado, mesmo de celebridades, não costuma ser bem aceito. Prefere-se incentivar as pessoas a que se assumam espontaneamente no seu ritmo de auto-aceitação para que o sair do armário se dê com o mínimo de problemas em relação ao entorno de cada um(a).

Entretanto, há uma variante do outing que tem ganho cada vez mais adeptos: o outing de pessoas que, embora pertencentes a minorias sexuais, atuam contra os direitos dessas minorias ou contra membros dessas minorias, por razões pessoais egoístas, como ascender na carreira, ou para prejudicar um desafeto.

Nesses casos, o outing é não só moralmente justificável como necessário. Ao não fazê-lo, principalmente contra gente influente, permite-se que essas pessoas continuem agindo em prejuízo da comunidade ou dos indivíduos aos quais atingem diretamente. O silêncio e a inação da comunidade em relação a essas pessoas torna a todos cúmplices de suas atitudes hipócritas e deploráveis. Pelo contrário, ao assumi-las, encoraja-se pelo menos algumas delas a pensar duas vezes antes de repetir as mesmas ações no futuro.

Concordo inteiramente com essa última perspectiva. Pior do que os que lutam contra nossos direitos, não sendo da comunidade, só mesmo os que, sendo do meio, atuam contra os interesses coletivos ou contra membros da comunidade por razões mesquinhas.

Obviamente, não se fala aqui de pessoas que são discretas simplesmente, reservadas, e não ficam levantando bandeira a toda hora e em todo o lugar. Essas pessoas agem naturalmente, não escondem que são LGBT mas também não ostentam, não podendo, portanto, ser classificadas como “no armário” muito menos como traidoras da causa.

Fala-se aqui de enrustidos que chegam ao ponto de difamar e perseguir outros membros da comunidade enquanto secretamente continuam mantendo relações não-heterotradicionais. Estes devem ser assumidos para expor sua hipocrisia e destruir sua má influência.

O outing às vezes é mal-visto porque utilizado também por pessoas sem princípios que invadem a privacidade alheia para faturar com matérias sensacionalistas ou para simplesmente prejudicar alguém. Principalmente celebridades costumam sofrer com a imprensa marrom que não mede esforços para divulgar detalhes picantes da vida íntima de artistas, políticos e gente influente em geral.

Nesse quesito, não só a homossexualidade de alguns mas também o fetichismo de outros são um prato cheio para os escândalos. Em março de 2008, o então presidente da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), Max Mosley, foi vítima desse tipo de ação anti-ética. Um vídeo, em que ele aparece, com algumas mulheres, em cenas sadomasoquistas de temática nazi,  foi divulgado na Internet, pelo tablóide inglês News of The World, e virou um escândalo total.

Mosley foi várias vezes ameaçado de demissão e afirmou que a revelação devastou sua família. De qualquer forma, conseguiu dar a volta por cima, assumiu suas preferências e até conseguiu processar o jornal por invasão de privacidade. Segundo o ex-presidente da FIA à epoca, a divulgação das imagens foi obra de alguém da área das corridas a fim de desestabilizá-lo.

Naturalmente, o outing político nada tem a ver com esse tipo de ação mercantilista e de má-fé. Ele é estritamente destinado aos hipócritas que, embora membros de uma comunidade estigmatizada, usam dos estigmas que a afetam para atacar indivíduos dessa mesma comunidade ou para, ao combater a luta pelos direitos dessa comunidade, usufruir de benesses pessoais. O outing dessas pessoas é, nessas circunstâncias, como afirma o ativista Peter Tatchell, da aguerrida organização inglesa OutRAge, a quem devo muitas das idéias desse artigo, uma potente técnica de auto-defesa queer.

Publicado originalmente em Um Outro Olhar em janeiro de 2009

Nota atualizada: Exemplo de possível homossexual que inclusive falava publicamente contra os direitos homossexuais foi o americano J. Edgar Hoover, nada menos que o fundador do Federal Bureau of Investigation, o FBI. Embora não exista prova indiscutível de sua homossexualidade, Hoover tinha uma amizade com seu principal assistente, Clyde Tolson, que levantou a suspeita de que fosse gay, já que eram inseparáveis, viveram juntos por 50 anos e nunca tiveram família ou namoradas.

O filme J. Edgar, de Clint Eastwood, com Leonardo di Caprio no papel principal, gira em torno da vida desse controverso e poderoso personagem e está em cartaz nos cinemas brasileiros. Veja abaixo o trailer legendado.

Do lado do Mappin, mesmo com chuva

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012 0 comentários

São Paulo,13 de junho de 1980, primeira passeata homossexual no Brasil

No dia 13 de junho de 1980, ocorreu a primeira passeata de bichas, lésbicas e travestis (também com feministas e negros) contra o delegado Wilson Richetti (junho/1980) que fazia arrastões nos bares gays, lésbicos, prendia prostitutas e travestis. Abaixo, Rose Mancini, participante do Grupo Lésbico Feminista à época, relata sua experiência do evento (Rose aparece no círculo mais claro).
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Do lado do Mappin, mesmo com chuva

por Rose Mancini 

Cheguei no lugar do encontro antes da hora. Na frente do Teatro Municipal, do lado do Mappin. Nos encontramos com os olhos. Sem abraços e sem contatos. Não tínhamos dúvidas sobre a importância da manifestação. Só os nossos olhares mostravam o medo e as esperanças que moravam em nós. Nada podia dar errado. Era como tirar fotografia de um casamento. A ocasião era quase única e talvez irrepetível. Naquele tempo o lema era: "segurar a barra', "não deixar cair", "não sujar" "ir à luta”, em síntese, deixar do melhor modo possível o dia 13 de junho. Não estávamos ali para festejar Santo Antonio nem o dia dos namorados. 

Contagiadas pelo medo, cada gesto era medido. Tínhamos que colher o momento crucial e estar no lugar certo para não só seguir um movimento, porém - mais do que isso - criar o evento. Existia uma fórmula? Não sabíamos. O importante e necessário era compreender como se mexer dentro da cena. Inventávamos. Com panfletos tentávamos explicar porque estávamos ali provocando desconforto e incomodando os passos cansados e inseguros das pessoas.

Nós estávamos ali contra a polícia e a favor das vítimas. Contra o abuso dos policiais, que ofendiam nossos sentimentos íntimos, feriam os corpos e nos turbavam moralmente. Estávamos ali para agir contra um modo criminoso que frustrava o desejo e tentava nos paralisar com o terror, com a violência, transformando-nos em vítimas do medo. Porque as ofendidas eram as mulheres e as trans que do sexo viviam. E que ninguém defendia porque iam contra as regras do pai branco que queria dominar sem contrastes, eliminando fisicamente as diferenças e desigualdades. Nós estávamos ali para ir contra a marginalização, a misoginia e a morte. Contra as cicatrizes e a infecção do medo. 

Decididamente tínhamos que estar prontas. Colocando-nos na frente, para poder enquadrar a praça ou a rua. Enquadrar tudo. Víamos a praça lotada, a rua com os carros que passavam, e o Mappin que descarregava na calçada um monte de gente com saquinhos brancos e verdes e sacolinhas. No bolso da minha calça larga, eu também tinha uma para guardar nosso estandarte. 

Lá em cima nas escadas, com os nervos à flor de pele, ofegantes, eu e a Rosana. Ela me ajudava a desembrulhar a faixa que íamos usar dali a pouco e que por horas estava me enfaixando todo o tórax como a conter uma grande explosão. Cuidadosa, desenrolava do meu corpo a faixa e meio sorrateiramente a fazia escorregar até o chão molhado. Cheirava a tinta fresca e grudava um pouco também. Era feita de algodão e escrita com tinta esmalte e pincel (ainda não se usava o spray e por isso demorava muito para secar). Teca, Míriam e Conceição tinham trabalhado durante a noite na confecção. Ficou muito bonita, saiu um ótimo trabalho. Era longa, mas se lia muito bem. 

Me enrolavam e desenrolavam a faixa na barriga sempre quando tinha uma manifestação. E no final da passeata também era eu que levava a faixa para casa, na barriga ou toda amassada em uma sacola. "Sem dar bandeira" e nem mostrar o meu pânico, aproveitando do meu corpo redondo e que disfarçava bem. Fazia o meu papel de "bala embrulhada'.

Quase desmaiando pelo cheiro que emanava da faixa e pela preocupação de ser descoberta, ia pela cidade como uma nova Kamikaze, lutando contra a vontade de abrir as vestes, na rua ou dentro do ônibus lotado, para mostrar que não tinha medo de nada e nem de ninguém. Não era verdade. O cheiro da tinta entrava no meu cérebro. E claro que eu estava morrendo de medo. Estava carregando um símbolo proibido. Vivíamos traumatizadas pela antecipação de um trauma. 

Chegando antes:
-Vai, sobe lá e fala!. - Quem vai ler? - Lê rápido! 

Nesse jogo, sem diretor, nós que tínhamos chegado cedo tomamos o lugar: - Quem lê? – Quem toma conta?- Quem avisa se eles chegarem?- Quem dá o sinal?- O que se faz se...? 

A polícia estava espreitando, e os infiltrados se viam pelos óculos escuros e o ar de vazio em volta deles. A visão era boa das escadarias. Um milhar, nós estávamos ali em mil. Poucos? Tantos? Esperamos ainda? O que? Quem? Partimos? Começamos? A notícia tinha circulado.
Era um milhar com um objetivo. Sim, nossos corações jovens, cheios de paixão e esperança nos impeliam a partir. As motivações eram claras, a complicação estava em pô-las em prática, agir, dirigir. Faltava um maior conhecimento de ações públicas. Só a sensibilidade, nessas ocasiões, não ajuda, não basta. Não tinha nada de codificado ou de habitual. Quando começar?
Mas de repente - como telecomandadas - começamos a marcha e entramos no meio da multidão que, saindo das lojas e escritórios com os guarda-chuvas abertos, avançava decidida, na certeza de ter que enfrentar uma longa estrada. Pegar o primeiro ônibus ou o metrô para chegar em casa o mais cedo possível, antes da novela das oito, e finalmente esquecer o mundo. Entramos aí, nesse meio. Como um cordão trançado, simples e sem dar na vista. Depois das dezoito. Entramos nesse meio para aumentar a impressão de que éramos muitos. Aumentar a pressão. Dar uma impressão! 

Tínhamos que conquistar gente para engrossar nossas fileiras, para mostrar que éramos muitos mais e ainda mais. As pessoas indo embora no tradicional e seguro rush, e nós ali para frear, bloquear, estancar, mas sem querer ser invasivas. Queríamos demonstrar que muita gente estava mobilizada, fazer parecer que éramos mais do que éramos, que tinha chegado a hora de reagir ao abuso de poder, que finalmente todos tinham acordado do pesadelo.

Abrimos a faixa e começamos a dar os braços para fazer as pessoas andarem mais devagar, como se disséssemos: "Assumimos esse risco para que reflitam". Abraçadas seguíamos fechando a rua. Bloqueando os passos rápidos e desesperados de cansaço. Assustando os que, conformados, nos seguiam até lerem distraídos sob a própria cabeça: "Contra a Violência policial. Ação Lésbica Feminista". Algumas tentavam passar por baixo ou romper a nossa barreira natural de corpos. Outras nos empurravam para mostrar que não tinham nada a ver com aquilo. ”Não sou sapatão". Empurrão e resignação. Sabiam que logo lá na frente subiriam no ônibus, e tudo teria terminado. Era uma barreira, e a barreira no começo era muito sólida.
Estávamos na Avenida São João, e fomos subindo e parando o trânsito. A adrenalina cadenciava os nossos passos e dava um novo ritmo aos nossos corações. Improvisando para fazer coincidir os eventos com os deslocamentos e prever o fluxo. Tínhamos que segurar com discrição a multidão por um tempo antes de ela chegar aos pontos dos ônibus. O objetivo valia a intervenção. Estávamos ali para exigir que parassem de perseguir, torturar e matar pessoas que tinham cometido só o crime de amar de forma não convencional. Não tinham culpa de não fazer coincidir corpo, coração, sexo e a cor da pele com as regras morais, sociais e religiosas. Não tinham culpa de existir. 

E foi assim que, no trajeto, uma mulher quase nua se debruçou sobre o peitoril da janela de um prédio e, em peignoir transparente, começou a dançar para nós. Rir com a gente que comovidas começamos a gritar: “-Vem, desce, vem com a gente, vem aqui pra dançar". Ela nos mandou um beijo, primeiro beijando as pontas dos dedos da mão direita, depois colocando-as sobre o coração, e o lançou sobre nossas cabeças. A emoção e o rumor invadiram a rua e fizeram todas as janelas da Rua Julio de Mesquita se abrirem. Seguimos em frente com mais força e menos medo, e as janelas se povoaram de pessoas alegres e muito pobres. “Vem com a gente... estamos aqui por vocês. Para que vocês vivam na liberdade da sexualidade que quiserem". E elas responderam algo como: -"Temos medo, não podemos descer, eles nos matam, somos putas!” ao que nós respondemos: -"Somos todas Putas!". 

Camisolas transparentes. Corpos abraçados que subiam nos parapeitos das janelas e esvoaçantes corpos nus que se acariciavam, se despiam, se mostravam como a pedir e desejar uma homologação: o direito de existir. Foi um momento fundamental dessa passeata, da história. Eu nunca tinha visto nada parecido. A emoção irradiava em ondas e aos poucos chegava até o fundo e voltava com palavras de encorajamento e com slogans que respondiam à nossa emoção e inventavam outras. No Largo do Arouche, a policia que lá já estava começou a ser mais evidente e a nos espremer, diminuindo a largura da nossa manifestação. Começamos a encolher, a juntar os panfletos e nos separar das emoções. 

Eu tentei embrulhar a faixa comprida, molhada e muito visível, mas a sacola que tinha no bolso não se desdobrava. Preocupada com a possível repressão, saí do aglomerado, comecei a procurar uma saída, despistei e entrei em uma travessa, uma ruazinha muito escura onde larguei sem dó a faixa da nossa passeata. Corri de volta e esbarrei de relance num policial que estava entrando na rua. Nossos destinos se cruzaram de passagem, mas superei esse obstáculo. Parei de tremer e voltei a respirar. Aí sim corri com gosto e medo, mas com o coração livre como a prostituta nua da janela. 

Nada de chá de cadeira na delegacia ou coisa pior. Dessa vez para mim, tinha dado tudo certo. Continuei correndo e fiquei mais tranquila só no Largo do Anhangabaú. Rezando agnosticamente para a "nossa senhora das lésbicas” fazer a policia nos esquecer, para que ninguém tivesse tido tempo de tirar fotos da gente que poderiam servir como provas no caso de sermos presas. Enquanto entrava no metrô, molhada, continuava a pedir a essa nossa senhora que nos protegesse contra os policiais para continuarmos a ser espontâneas e inesquecíveis.

Milão. 09/05/2009

Publicado originalmente em Um Outro Olhar em maio de 2009

O café na cama nosso de cada dia

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012 8 comentários

Por Beth Andrade

Sim. Eu levo café na cama todos os dias para a minha namorida. Pode parecer a coisa mais besta do mundo, e talvez seja. Aliás, nossas amigas tentam entender isso até hoje. “Como, depois de três anos morando na mesma casa, dividindo obrigações e contas, ela ainda te leva café na cama?”, perguntam, atônitas, quando minha garota, toda orgulhosa e com um tom quase de desdém, diz numa mesa de bar que é acordada com beijinhos e café na cama todo santo dia. 

É claro que por algum tempo o café na cama vira o assunto da mesa. Umas olham com ar angelical e dizem “Ai, que fofo!”, outras são mais práticas e começam a discorrer sobre o tempo que se perde na produção de uma refeição matinal. E, naturalmente, uma onda de lembranças vem à mente de muita gente. “Ah, bons tempos em que a Fulana trazia meu café na cama” é a frase mais recorrente. Diante dos inúmeros questionamentos que ouço sobre os motivos que me levam a ainda fazer isso todos os dias, em geral respondo apenas que faço porque gosto. Mas hoje me peguei pensando sobre esse meu café na cama e os motivos que me fazem, todos os dias, acordar, levantar, preparar o café-da-manhã e levar numa bandeja tudo o que imagino que minha garota vá querer comer naquele dia. E depois de muito pensar, amigas, vou finalmente dar a verdadeira resposta sobre essa questão. 

Longe de ser a boa moça ou a mulherzinha submissa que talvez possam imaginar, levo café na cama todos os dias para a minha garota por necessidade. Isso mesmo, pela mais pura e absoluta necessidade. É claro que no início o café na cama ajudava a conquistar, demonstrava carinho (especialmente em se tratando de alguém que não possui nenhum outro talento na cozinha, como eu). Mas, com o passar do tempo, levar o café na cama para a minha garota também assumiu as vezes de hábito. Notem que eu disse hábito e não obrigação. Para mim, tornou-se algo como vestir uma roupa ou tomar banho. E aí vocês devem estar se perguntando: e onde está a necessidade nisso? Porque qualquer um enxerga a necessidade de se vestir e tomar banho, mas levar café na cama...? Que necessidade é essa? 

Vou explicar melhor. Trabalho aproximadamente doze horas por dia. E levo cerca de três horas para ir e voltar do trabalho. Em média, fico longas quinze horas fora de casa. Isso sem contar os outros tantos eventos que ocorrem à noite e nos fins de semana. A partir de agora as coisas vão começar a fazer sentido. Tenho necessidade de ter um tempinho só meu com a minha namorida. Tenho necessidade de dividir minha vida com ela, de dar exclusividade por pelo menos uma hora à mulher que atura minhas esquisitices faça chuva ou faça sol. 

Vocês podem não acreditar, mas é aquele beijo sonolento, aquela corrida pra fazer o xixi que ficou guardado a noite toda, aquela preguiça dela em levantar que me fazem acreditar que terei um bom dia. São aqueles olhos semi-abertos e ainda inchados de uma noite bem dormida e o abraço do corpo dela ainda quente do edredom que me fazem renovar as energias para mais um dia. 

Tudo bem, vocês devem estar se perguntando o que isso tem a ver com o fato de eu levar o café na cama para a minha garota. E eu digo o seguinte: encontrei no café-da-manhã um jeito de dizer à minha mulher, todos os dias, o quanto a amo. Certamente existem milhões de outras maneiras de fazê-lo e todas, claro, são sempre muito bem-vindas. O que não dá é pra deixar o tempo passar, esquecer os carinhos diários e esperar que a pessoa que vive ao seu lado mantenha a mesma paixão. Por isso, longe de querer dar aulas de como manter sua mulher, quero apenas que vocês, minhas amigas queridas, parem e reflitam um pouco sobre o que estão fazendo para garantir o amor de seus pares. Porque eu e a minha garotona já estabelecemos para nós o café na cama nosso de cada dia. 

Publicado originalmente em dezembro de 2007

Depois daquela noite, será que ela me liga?

terça-feira, 24 de janeiro de 2012 1 comentários

E eis que, quando você menos espera, - tchantchantchan! - você topa, tropeça, é atropelada por sua princesa encantada, a mulher de seus sonhos, tudo o que você havia pedido à Deusa ou a Deus.

Você finalmente encontrou a sua cara metade. E agora? Agora dependendo de seu temperamento, signo, atividades e projetos de vida, você há de viver por algum tempo horas de maior ou menor ansiedade e angústia. Não sem razão corre a anedota de que, no segundo encontro, as mulheres já vão com o caminhão de mudanças. Infelizmente para as mais ansiosas, a fase da Lusitana demora um pouco mais para acontecer. Antes que o caminhão de mudanças estacione à frente da casa de uma delas, muita água tem de rolar por debaixo da ponte. 

É a fase de as candidatas a namorada se conhecerem e procurarem conhecer quais são as intenções uma da outra. Ainda mais nesses tempos de ficar, o one night stand como dizem as americanas, esse padrão de comportamento de passar apenas uma noite juntas e nunca mais se ver ou se falar. Muita gente já saiu de coração partido, porque foi para a cama sonhando uma vida em comum, enquanto que a outra parte não queria mais do que algumas horas juntas, quanto muito, uma noite.

Eis a angústia que assalta as enamoradas: por que ela não me telefona? Puxa, queria sair com ela hoje também! Será que ela gosta de mim? A gente vai voltar a se ver? Ficou de telefonar e ainda não telefonou! Ou será que quem ficou de telefonar sou eu? Telefono ou não telefono? O que faço?

As mais objetivas ou ansiosas costumam declarar peremptoriamente que não gostam de jogo e não querem participar deste delicado game amoroso que são os primeiros encontros. E será que se trata mesmo de jogo ou apenas de uma dança, leve e sutil, de sedução e descobrimento que acontece com os animais e conosco também, não menos animais que eles, e bem mais complexas? Afinal no reino da Femina Sapiens, existem os complexos de Édipo, de Electra, de inferioridade e de superioridade para citar os mais conhecidos.

Esse jogo, ou momento é difícil mesmo. As mãos suam, perde-se a fome, vive-se à espera de um telefonema ou sente-se palpitar forte o coração quando é a nossa vez de chamar o celular da amada ou da amada-a-vir-a-ser. 

Amada-a-vir-a-ser? Isso mesmo. Quem diz que a princesa encantada que você acabou de topar ou de cruzar seu caminho é a sua amada mesmo e não a de outra pessoa? Princesas encantadas também se enganam, se atrapalham, pensam de um jeito e depois despensam... Por isso, nada melhor do que um período de conhecimento, de fazer a corte, de observar com quem estamos saindo, de quem se trata. É o momento de ouvir. E mais importante de que ouvir, observar. Afinal, falar é fácil. E não são só os portenhos que podem ser comprados pelo que valem e vendidos pelo que pensam que valem. Por isso, aproveite este tempo para verificar se o que ela faz confere com o que ela diz que faz. Depois de juntas, não adianta muito alegar, como nos divórcios, erro de pessoa. Até aí, já se sofreu muito, já se amargou muita tristeza. Use esse tempo de sedução e de jogo para conhecer as intenções de sua amada, para saber se ela é a pessoa que você está procurando para partilhar sua cama e sua vida. Se ela tem a ver com você.

O jogo da sedução é sofrido para ambas as partes. Mas reflita: o Amor, antes de ser um contrato de vida, é emoção. As pessoas ficam juntas porque se querem bem, química, física e sentimentalmente. Não adianta querer colocar o carro na frente dos bois, sentar diante dela e falar e falar, ouvir e ouvir e acreditar que está tudo resolvido. Que tudo foi dito e ouvido. Relacionamentos amorosos acontecem ao longo do tempo e não num instante. Pedem convivência. O love at first sight acontece ao primeiro olhar, mas o relacionamento, o bom entendimento e a alegria de estar juntas, acontece com o passar dos dias. Por isso, administre sua ansiedade e angústia. E lembre: “Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar”, como cantava Elis Regina. O jogo amoroso requer tranqüilidade, tudo o que nós, que amamos, não conseguimos ter. 

Stella C. Ferraz é autora dos romances lésbicos Preciso te ver, A Vilas das Meninas e Pássaro Rebelde, publicados pela ed. Brasiliense. 
Originalmente publicado no site Um OUtro Olhar em 20/10/04

O homoerotismo feminino nos contos de fadas

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012 8 comentários

 "Dama da noite não dá pra confiar,
Cinderela quer um sapatão pra calçar,
Noiva neurótica sonha com o noivo galã"
(Rita Lee – Elvira Pagã – Grifo meu)


Nem todas as Cinderelas querem moldar seus pés em sapatinhos de cristal e se adequarem a uma vivência sexo-afetiva heterossexual, escolhidas por um príncipe. Cinderela faz também outras escolhas... 

A mulher como objeto de cultivo da própria mulher no campo emocional, afetivo e sexual é pouco levada em consideração nas interpretações e análises sobre os contos de fadas, as narrativas míticas e onde mais as relações humanas são representadas. 

Os aspectos homoeróticos nas relações entre as personagens dos contos de fadas são constantemente esquecidos ou mesmo não percebidos, turvados por um pensamento intelectual e científico ideologicamente comprometido com a moral e os costumes, buscando delimitar e controlar vivências e conhecimentos que, quando exercidos de modo espontâneo e natural, livres das meras convenções culturais e sociais, poderiam ampliar a consciência e as possibilidades de escolha e realização do indivíduo e da sociedade. 

Hoje, já é mais possível se ultrapassar essas viseiras claustrofóbicas, dando outras interpretações e atualizando significados ocultos que ainda bóiam, meio à deriva, no mar sombrio do inconsciente coletivo, mas se projetam, aos poucos, na transformação dos símbolos e no imaginário da sexualidade com outros valores e novas percepções da realidade, menos cerceadas pelos dogmatismos sexuais. 

Nesse sentido, as lésbicas e as bruxas dos contos de fadas apresentam importantes afinidades, na medida em que se ajustam a uma representação negativa da mulher idealizada e que são marginalizadas no imaginário patriarcal, atuando como corruptoras de uma ordem social estabelecida ao desvincular, por exemplo, o erotismo e o prazer sexual da procriação. 

Um exemplo é a bruxa perversa do clássico “Branca de Neve e os Sete Anões”, dos irmãos Grimm, que vive obcecada com a beleza da enteada. O espelho atua como uma espécie de alter ego “masculino” da madrasta, que em um dado momento se dá conta sobre o quanto a princesa Branca de Neve se transforma numa bela e atraente mulher. A madrasta-bruxa deseja tanto a jovem, a ponto de querer “comê-la”, e, para isso, pede a um caçador que lhe traga logo o “coração” – ícone do amor e da paixão – da enteada, para devorá-lo, adquirindo-o apenas para si. Vale lembrar o quanto um desejo e uma paixão reprimidos podem se projetar e ao mesmo tempo se recalcar na forma de um ódio mortal.

Transformada, na versão dos estúdios Disney, em uma velha de nariz pontiagudo enorme de clara conotação fálica, a bruxa seduz Branca de Neve, promovendo as delícias da sua maçã especial, o que provoca o desejo na princesa de experimentar a fruta. 

A serpente à espreita na árvore, que tenta Eva com a maçã "do pecado" e a desperta para o conhecimento da sexualidade e para o erotismo, é representada pela rainha-bruxa da história que também tenta Branca de Neve, seduzindo-a com sua maçã encantada. A serpente do Éden é o principal emblema da Grande Mãe ou Grande Deusa, duramente combatida pelo patriarcado e o cristianismo, convertida, à sua dimensão negativa de mãe terrível. A madrasta é a mãe terrível da história, a antimãe, que se afina ao imaginário estereotipado da lésbica, no qual as “verdadeiras” mães jamais se tornariam lésbicas e vice-versa: ambas vampirizam o sangue menstrual, estancando a possibilidade de vida intra-uterina, utilizando-o em poções ou simplesmente deixando de utilizá-lo para a maternidade biológica obtida através de um exercício da heterossexualidade, oficializado e sacralizado no matrimônio cristão. 

Na versão original dos irmãos Grimm, no final da história Branca de Neve cospe a maçã e se apaixona pelo príncipe com quem se casa. A bruxa-madrasta é castigada e morta pelos pés, através de enormes sapatos, pantufas de ferro em brasa que ela tem que calçar e dançar até morrer... Por trás do castigo da rainha, nas dimensões homoeróticas da simbologia do conto, o que parece ocultar-se é a interdição do desejo homossexual e incestuoso e, principalmente de "usurpação" do lugar do falo pela bruxa. 

O fato do castigo da rainha vir pelos pés, pelos calçados, é muito significativo no imaginário da homossexualidade feminina. Os pés "ardentes" da rainha a levam a caminhar por uma paixão tortuosa, condenada ao fracasso na história. A figura que eclode da bruxa é a da mulher que deseja a mulher visceralmente para absorvê-la e assimilá-la em seu âmago, somando suas potencialidades sensuais pela via dupla e gêmea do homoerotismo feminino. A busca da realização desse desejo de fusão com o mesmo é reprimida com castigo e morte sob tortura.
Lembremos que os contos de fadas tinham um caráter de educar moralmente as crianças e de reforçar determinados padrões de comportamento, refreando as paixões.
Sapatinhos bonitinhos das chinesas....
As pantufas da bruxa lembram os pés enfaixados das chinesas que obrigavam a uma atitude de feminilidade – tornar-se mulher é o que a mata. Para se moldar a um padrão passivo de feminilidade, a rainha deve conter suas paixões nas pantufas vermelhas em brasa. Assim como as irmãs de Cinderela tentam se adequar aos sapatos pequenos da Gata Borralheira para conquistar a realização heterossexual, de acordo com o sistema patriarcal.

...escondiam pés mutilados
A análise dos conteúdos psíquicos do sapato, do calçado, remete a uma simbologia fálica freudiana, que toma o pé como substitutivo do pênis na mulher. Não é, portanto, por acaso que as lesbianas adquiriram o apelido pejorativo de "sapatão", ao desempenhar e reforçar um papel estereotipado. Muito haveria o que se dizer também em relação à vassoura das bruxas, de um modo geral, que as usam entre as pernas para voar aos céus orgásticos... 

A “virilidade” da bruxa-madrasta de Branca de Neve pode ser interpretada como maligna em muitos aspectos. Ela é apresentada como a mãe má, contrária ao espírito maternal da mãe biológica de Branca de Neve, que morre por seu maior desejo: dar à luz; ao contrário, a madrasta quer matar e comer Branca de Neve para viver melhor, mais fortalecida, com a enteada abortada dentro de si. A bruxa má compõe um estereótipo: não se casa de novo, não namora, não tem filhos, vive obcecada por Branca de Neve. A Mãe da Morte, que também se oculta na história, é a lésbica, em confronto com a Mãe da Vida, que seria, por sua vez, a mulher heterossexual. Ambas apresentadas em imagens tradicionais: o estereótipo da bruxa em confronto com a idealização de modelos femininos. O fascínio com a própria imagem no espelho ou a de outra bela mulher, é outro elemento que consagra o estereótipo da homossexualidade na rainha-bruxa, que histórica e tradicionalmente tem generalizado essa orientação sexual como uma característica “narcisista”. 

A bruxa se apresenta como má e sobre esse aspecto, colocado de modo maniqueísta no conto, outras qualidades, valores e atitudes da rainha, acabam sendo sutilmente condenados e repreendidos. Assim, as suas qualidades como a determinação, o espírito de iniciativa e a inteligência (manifestada, por exemplo, no seu conhecimento sobre a magia) são também repreendidos no conto com a justificativa implícita de que a sua maldade – que moldura todo um quadro moral do que uma mulher não deve ser – é que estaria sendo castigada. Ela representa a mulher fálica da história e, no imaginário sobre a sexualidade humana, a lésbica é uma das figuras mais representativas desse perfil. 

A julgar pela crueldade severa com que a bruxa é castigada, sem nenhuma chance de perdão ou atenuação da pena, o que parece se refletir também nas distorções moralistas do espelho da bruxa é o medo que do espelho se espalhasse a consciência de uma sexualidade mais livre. Essa consciência expandiria a energia sexual no bote vertical da kundalini, a serpente de fogo associada à energia sexual na filosofia tântrica que, de certa forma também simbolizada pela cobra do Éden e pela bruxa em Branca de Neve, traz sempre uma maçã na boca, símbolo do conhecimento que leva a uma liberdade de escolha... 

No universo imaginário dos contos de fadas não faltam outros exemplos de conteúdos homoeróticos que poderiam ser interpretados em sua rica linguagem de símbolos e de metáforas: o Lobo Mau, com a vovó viva dentro dele, que “come” Chapeuzinho; a bruxa de Rapunzel, outra madrasta obcecada pela enteada, que a quer só para si, a ponto de trancafiá-la numa torre, assim que a menina entra na puberdade, etc. 

Os contos de fadas trazem representações estereotipadas e pedagógicas do feminino como passivo e do masculino como ativo, e ambos constituintes das relações heterossexuais desejadas como um objetivo para alcançar a maturidade sexual, por meio do exercício do casamento e da procriação. Nesse sentido, o que encontramos claramente por trás da simbologia da representação da bruxa, é uma negação da homossexualidade feminina, expressa no inconsciente coletivo, na medida em que a bruxa comporta uma série de elementos que encontramos na mitologia que cerca o lesbianismo, e aqui me refiro a mitologia no sentido de um conjunto de idéias falsas e de superstições. A ampliação da consciência para outras esferas da sexualidade parece ser a força motora que soma outros conteúdos, mais atualizados com as novas visões de mundo. 

Só mais recentemente, descoberta pela mídia, a lésbica tem sido representada com os traços de novas personas homossexuais, como as lesbian chics, atualizando o imaginário homoerótico feminino, sejam elas bruxas, princesas, cinderelas e sapatões, enfim, mulheres que compartilham as muitas máscaras e sabores da maçã “proibida”... (16/05/05) 

Paola Patassini é jornalista e desenvolveu tese de mestrado, em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), da qual este texto é uma pequena adaptação.

Nota: Publicado originalmente no site Um Outro Olhar em agosto de 2008

Bíblia e Homossexualidade (texto e vídeo)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012 9 comentários

O texto abaixo foi escrito para a Revista Um Outro Olhar, n. 38 (fev. 2003), porém permanece mais atual do que nunca, nesse momento em que os Malafaias da vida e seu séquito vivem pregando contra os direitos homossexuais em nome de Deus (um deus chifrudo e de rabo, pelo visto).

Acompanha o documentário Por que assim me diz a Bíblia (For the Bible Tells Me So, 2007), do diretor Daniel Karslake, que mostra histórias de cinco famílias cristãs em conflito com filhas e filhos homossexuais em função de uma formação religiosa baseada na interpretação literal de textos bíblicos. O filme disseca essa interpretação, com o qual os religiosos conservadores tentam convencer os fiéis a acreditarem que a bíblia condena a homossexualidade, e a compara com o que a bíblia de fato diz, considerando o contexto do mundo atual.

Ambos, texto e vídeo, são fundamentais, para todas as pessoas que buscam criar um mundo mais democrático e inclusivo, a fim de fazer frente ao discurso fundamentalista em plena ascensão em nosso país.
Míriam Martinho
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Bíblia e Homossexualidade - Stella Ferraz

Poucos livros há que tenham sido usados para defender tantas idéias diametralmente opostas e conflitantes entre si como a Bíblia, a campeã do uso indevido de texto. Observe-se que cada igreja tem sua própria versão deste livro, desautorizando com um fulminante anathema sit, a excomunhão, as versões propostas por outras igrejas.

Assim, para aquelas que acreditamos em Deus e para quem a Bíblia tem um peso de revelação do divino, a manipulação do Livro Sagrado para combater a homossexualidade pode ser algo que nos enche de aflição e angústia. 

Por isso, não hesitei em participar do curso sobre a Bíblia e a homossexualidade, organizado pela igreja de Saint Bartholomeu, de orientação anglicana, quando estive em maio deste ano em Nova York. Aproveito, pois para apresentar aqui um outro enfoque sobre a Bíblia, aquele que ministros e ministras anglicanos discutiram conosco nos idos da primavera nova-iorquina. 

A primeira coisa que os tradicionalistas dizem para condenar a homossexualidade é que Deus nos criou homem e mulher para que, pelo sacramento do matrimônio, tivéssemos filhos. Há entre estes tradicionalistas quem diga que as Escrituras, clara e inequivocamente, declaram que a homossexualidade é um pecado contra Deus. Na verdade, a Bíblia não é tão clara nem tão inequívoca a este respeito. 

Veja-se Gênesis 1:27: “e Deus os criou homem e mulher”, que tem sido usado para afirmar o princípio da heterossexualidade. Deus nos fez homem e mulher, mas a Bíblia em momento algum diz qual é a norma que deve pautar o relacionamento afetivo/sexual entre estas criaturas: se deve ser entre homem e mulher ou entre dois homens ou duas mulheres. Nada há ali prescrito, tão somente uma afirmação de que Deus nos fez homem e mulher. Há que se levar em conta também que as idéias e entendimentos sobre a sexualidade têm se alterado ao longo dos séculos. Nos tempos bíblicos, as pessoas não compartilhavam de nosso conhecimento e costumes sexuais, assim como nós não temos como conhecer a experiência sexual dessas pessoas que viveram em tempos ancestrais. Não há, pois, como comparar vivências e costumes tão diversos. Basta citar, como exemplo, o amor romântico. Este amor não aparece na Bíblia, que nem sequer suspeita de sua existência. O amor romântico é invenção recente: originou-se na Provence (França), no século 10, tendo sido divulgado inicialmente pelos trovadores, de feudo em feudo, depois pelos românticos no século 19 e por Hollywood no século 20. Esta concepção de amor não existe na Bíblia, assim como não existe nela a atual concepção de relacionamento gay ou lésbico. 

Outra passagem usada pelos tradicionalistas para combater a homossexualidade é a de Sodoma. Esta passagem lança uma condenação, não à homossexualidade, mas à falta de hospitalidade (vide Gênesis, 19:1-9) e à opressão sobre os fracos e desamparados (vide Ezequiel, 16:48-49). Sodoma é um termo usado em uma dúzia de passagens bíblicas como sinônimo do mal, mas em momento algum é utilizado como sinônimo de homossexualidade. Os homens de Sodoma tentaram dominar os estrangeiros hospedados na casa de Lot, subjugando-os pela agressão e abuso sexual. Tal atentado em grupo tem a ver com estupro coletivo, humilhação e violência e não com homossexualidade. Os tradicionalistas manipulam o texto, porque Lot oferece as filhas para o estupro coletivo, dizendo aos habitantes de Sodoma que podem fazer o que quiserem com elas, mas que poupem seus hóspedes, os dois estrangeiros. Os habitantes querem os estrangeiros, não por sensualidade, mas por xenofobia, para humilhá-los. 

Outra coisa a se considerar é que há passagens na Bíblia que defendem, expressamente, comportamentos e regimes que hoje em dia são inaceitáveis, tais como, a escravidão. Há mais de uma centena de anos que ninguém mais se atreve a lembrar essas passagens para defender a escravatura. Mas está lá em São Paulo, que manda aos escravos serem obedientes e servis aos seus senhores terrenos como o são a Cristo... Também o anti-semitismo está justificado em passagens de São Paulo (vide I Tessalonicenses 2:14-15): “pois também vós sofrestes dos vossos compatriotas o que eles sofreram por parte dos judeus; eles que mataram o Senhor Jesus e os profetas, também nos perseguiram, não agradam a Deus e são inimigos de todos os homens”. A subjugação das mulheres é igualmente advogada por São Paulo (vide I Timóteo, 2:11-12): “a mulher deve guardar silêncio, com toda submissão. Não permito à mulher que ensine”.

Por outro lado, quando a Bíblia afirma em Levíticos 18:22 que a homossexualidade é uma abominação, ela a julga tão abominável como o o comer moluscos, Levíticos 11:10. Assim, são hoje inúmeros os teólogos que afirmam não haver na Bíblia texto expresso sobre a homossexualidade, tal como é entendida hoje. A Bíblia é, pois, um closet vazio, não há nada de específico sobre homossexualidade, nada nos diz sobre ela, tal como é entendida hoje. Mas tem muito a dizer sobre a graça de Deus, sua justiça e misericórdia. Jesus resumiu a lei de Deus mais importante contida na Bíblia: “Ame a Deus com todo seu coração, corpo e alma e ao seu próximo como a si mesmo”. Este é o melhor mandamento divino. E intolerância, com certeza, está fora disto.

Stella C. Ferraz é autora dos romances lésbicos Preciso te ver, A Vilas das Meninas e Pássaro Rebelde, publicados pela ed. Brasiliense. (Texto originalmente publicado em revista Um Outro Olhar, n. 38, ano 16, Fev.2003) 
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Porque a Bíblia assim me diz (For the Bible Tells Me So, 2007)
• Direção e Roteiro: Daniel G. Karslake e Helen R. Mendoza
• Documentário,  95 minutos, EUA 

O cãozinho e os homossexuais

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011 0 comentários

Pela igualdade entre as espécies do planeta

Autor(a):
 Míriam Martinho

Não vi nem vou ver o vídeo da enfermeira que agrediu um cãozinho até a morte, e ao que tudo indica na frente da filha, na cidade de Formosa, em Goiás (GO). Não tenho estômago para isso, não tenho coração para perdoar quem comete atrocidades contra crianças e animais. Entendo e perdoo é quem, devidamente tomado por justa revolta contra semelhante barbárie, pede não só punições mais pesadas, para quem comete esse tipo de crime, como também prega a lei do “olho por olho, dente por dente” contra a sádica. Não sou hipócrita, sempre digo, como muitos que, diante de fatos dessa natureza, ainda se saem dizendo que não vão fazer linchamento moral (sic) da fulana. No dia que começarmos a punir devidamente quem maltrata animais, começaremos a pelo menos limitar as barbáries que cometemos contra nossa própria espécie.

Por enquanto, contudo, estamos longe disso. Basta ver que a tal enfermeira-monstra foi simplesmente multada em três mil reais e nem terá seu registro profissional cassado. Será que algum paciente se sente seguro em ser atendido por semelhante criatura? Segundo os especialistas, um dos primeiros indícios de psicopatia em uma criança se revela quando a flagram maltratando animais. Uma psicopata cuidando de enfermos em hospitais? Será que a sociedade está tão insana quanto ela? E ainda, onde estão as organizações governamentais e não-governamentais de proteção a menores que não tomam medidas de precaução no sentido de preservar a menina que vive com essa mulher doentia? Vão esperar que a psico cometa outra barbárie para achar alguma brecha legal a fim de condená-la e botá-la na jaula? Brincadeira, não?

Entretanto, o assunto principal desta postagem não é o drama do cãozinho mas sim uma das reações a ele. Ativistas homossexuais vêm fazendo comparações lastimáveis entre o clamor popular, contra a psicopata que matou o bicho, e a ausência de empatia da sociedade com a morte muitas vezes também bárbara de pessoas homossexuais. Tal comparação é de uma falta de tato atroz. É como a piadinha do Danilo Gentili com os judeus a propósito da falsa polêmica sobre uma estação de metrô no bairro de Higienópolis em São Paulo. Disse o “humorista”: "Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz." Realmente!!

Pois, então, no meio da comoção causada pelo bárbaro crime contra o animal, vem ativistas LGBT dizer que querem ser tratados como cachorros, pois assim terão a devida atenção da sociedade para seu sofrimento e os crimes homofóbicos. Tal abordagem ressentida não traz, contudo, nenhum ganho para a justa reivindicação contra a impunidade dos crimes homofóbicos. Pelo contrário, dá a impressão de que esses ativistas menosprezam a sensibilidade social para com o calvário do bicho e que, na contramão da visão ambientalista contra o especismo, não creem ser todos os seres vivos merecedores de igual respeito e proteção contra a violência. Aliás, alguns declaram abertamente seu credo especista, afirmando que vidas humanas valem sim mais do que as de um cão. Tanta gente boa tentando mudar essa visão antropocêntrica, responsável pela destruição sem precedentes da natureza, e vem logo um grupo discriminado reafirmá-la?

Que as pessoas atualmente demonstrem indignação contra os maltratos a animais revela evolução da espécie, fruto do nobre trabalho dos protetores dos animais, algo que nos dá esperança de dias melhores, e não falta de sensibilidade social. A comparação é infeliz, antipática e equivocada,  resultado de uma militância que perdeu a bússola, anda a esmo e frequentemente atira no próprio pé.

São Paulo, 29/12/2011 - Míriam Martinho. Originalmente publicado em Contra o Coro dos Contentes

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