Mostrando postagens com marcador doutrinas e ideologias. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador doutrinas e ideologias. Mostrar todas as postagens

Meus anos sob o regime militar e o surgimento do movimento homossexual no Brasil

segunda-feira, 31 de março de 2014 2 comentários

Ativistas do lésbico-feminista em passeata contra a violência policial

Meus anos sob o regime militar e o surgimento do movimento homossexual no Brasil

Entrei na adolescência quando do início do regime militar que se estendeu por  21 anos. Não tenho memória do período pré e imediatamente pós deposição do Jango porque só tinha 10 anos. Dos anos seguintes, já me lembro melhor: foram os anos dos festivais e dos programas da TV Record (Bossaudade, Fino da Bossa, Jovem Guarda, O Pequeno Mundo de Ronnie Von). Curtia todos ecleticamente e torcia também ecleticamente pelas músicas engajadas ou inovadoras dos festivais, com predileção pelas últimas. Os tropicalistas Gal, Caetano, Gil, os Mutantes, etc., foram os que realmente fizeram minha cabeça, o disco Panis et Circencis (1968) rodando na vitrola sem parar. Mas também me emocionei com a Pra Não Dizer que não falei das flores (1968), do Vandré, muito pobre esteticamente se comparada à Sabiá, do Chico Buarque e Tom Jobim, mas um hino de época contra o regime autoritário. Hoje, nessa onda retrô que nos assola, costuma ser entoada em passeatas avermelhadas pelo Brasil afora, mas com um cheiro de mofo descomunal.

Com o Ato Institucional 5 (AI-5-13/12/1968), os militares escancararam sua ditadura, fechando o Congresso, censurando a imprensa e a cultura, restringindo os direitos civis, reprimindo desde os que a ela se opunham abertamente até a quem era apenas suspeito do que chamavam de subversão. E, naquela mistura de rigidez militar e conservadorismo moral que caracterizou os chamados anos de chumbo, subversivos podiam ser desde os guerrilheiros do Araguaia até a barriga grávida da Leila Diniz exposta nas praias do Rio. 

Não deixa de ser curioso observar, contudo, que, apesar do clima antissubversivo, muito da grande revolução de costumes que rolava no exterior conseguiu aparecer por aqui. A versão brasileira da peça Hair (1969 a 1972) trazia o hippismo aos tupiniquins, terminando com os atores nus no palco, e a androginia dava as caras com os bailarinos do Dzi Croquettes (1972-73) e os cantores e compositores dos Secos e Molhados (1973-74). Assisti a todos em teatros de Sampa. Fora naturalmente todo o pacote da contracultura, filha do anarquismo pacificista, com sua mistura de drogas, amor livre e rock'n'roll, que chegava via discos dos festivais de Woodstock (1969), Altamont (1969), Ilha de Wight (1970), os Beatles e os Rollings Stones, David Bowie, Janis Joplin, Jimmi Hendrix, Jim Morrison (pra citar alguns) e a coluna Underground do Pasquim. Sem esquecer também os icônicos shows de Gal Costa e Maria Bethânia, Fatal(1971) e Rosa dos Ventos (1971), com Gal incorporando a musa libertária tropicalista por boa parte da década de 70. Todos também rolando em minha vitrola sem parar.

No bojo da contracultura e da revolução sexual, igualmente vieram as mudanças no papel da mulher e a saída do armário da homossexualidade, culminando, no fim dos anos 70, com o surgimento das primeiras organizações feministas (segunda onda) e homossexuais brasileiras. Ainda foi aprovada a lei do divórcio, em 1977, não sem os protestos dos grupos conservadores que tomaram as ruas pra entoar seu eterno mantra da “defesa da família.” Volto aos movimentos adiante.

O fato é que, apesar da ditadura militar e até por causa dela, muita coisa mudou no país tanto em termos estruturais quanto na área de costumes. Na verdade, ouso dizer que a ditadura passou ao largo da maioria dos brasileiros da época, sobretudo no período do milagre econômico (1969-1973), quando o excepcional crescimento do país, as grandes obras de infra-estrutura, a expansão do emprego, e a ascensão de uma nova classe média, tudo embalado com a conquista da Copa em 1970 e o ufanismo nacional-desenvolvimentista dos militares tiraram a atenção das pessoas dos mortos e desaparecidos nos porões da ditadura.

Fomos sitiados em um estacionamento que havia em frente ao TUCA em 1977

Eu mesma só fui me defrontar com o poder repressivo dos militares quando, já nos tempos de faculdade, resolvi protestar nas ruas por democracia, no ressurgimento do movimento estudantil, e acabei presa durante a famigerada invasão da PUC-SP (22/09/1977) pela PM do coronel Erasmo Dias e agentes do DOPS. Fui presa, levada para o Batalhão Tobias Aguiar, fichada e fotografada, e lá passei uma noite em claro temendo por meu destino. Pelo menos, não me feri, ao contrário de outras pessoas que, na citada invasão, foram inclusive queimadas pelos petardos da polícia. A repressão às manifestações estudantis que ressurgiam era constante (cheirei muito gás lacrimogêneo nelas), mas a invasão da PUC-SP se destacou pela brutalidade, com a universidade sendo literalmente invadida pela tropa de choque e tendo suas dependências destruídas. Consta que cerca de 700 pessoas foram presas.

Antes desse período de cara-a-cara com os milicos, contudo, a ditadura parecia algo distante pra mim, e a repressão que sofri de fato vinha da família e da sociedade em geral contra minha homossexualidade. Ao contrário de hoje, ninguém apoiava homossexuais, a homossexualidade ainda era considerada doença, e a vida dupla e a marginalidade se apresentavam como fado inevitável. 

E talvez tenham sido a repressão e o destino que me levaram a entrar no grupo que daria início ao movimento homossexual no Brasil. Informada por uma colega já falecida, Vilma Monteiro, que o grupo Somos (de Afirmação Homossexual) iria participar de um debate, na Ciências Sociais da USP, em fevereiro de 1979, resolvi conferir a ousadia. A essas alturas também já era leitora do tablóide Lampião da Esquina (1978-1981), do Rio (a primeira publicação LGBT de distribuição nacional), e bem interessada no incipiente gay power tupiniquim.

Matéria que dará origem ao Grupo Lésbico-Feminista

A partir do contato feito com os rapazes do Somos durante o referido debate, polêmico porque a esquerda da época era bem heterossexista, comecei a participar do grupo, no começo com outras raras mulheres, depois com um número considerável de moças a ponto do Lampião da Esquina ter solicitado uma matéria sobre lésbicas para sua edição de maio de 1979. Formou-se um coletivo com as mulheres do Somos para a produção dessa matéria que, logo em seguida, daria origem ao subgrupo de mulheres da organização, chamado grupo lésbico-feminista, do qual fui uma das fundadoras. Em maio de 1980, o Somos sofre um racha, partindo-se em três: os fundadores do grupo, de perspectiva libertária, deixam a entidade, devido a conflitos com integrantes da Convergência Socialista que ficaria com o título Somos, e as mulheres do chamado LF ganham autonomia passando a priorizar ações com o movimento feminista. 

Em meados de 1981, o coletivo que formou o grupo lésbico-feminista (LF) já havia se desintegrado, com parte de suas ativistas submergindo no armário feminista, outras saindo do ativismo simplesmente, e outras ainda fundando um outro coletivo, em outubro de 1981. Este coletivo retoma uma das denominações do LF (foram várias) porque se via a princípio, como continuidade deste, em particular pela determinação de manter uma organização específica de lésbicas frente à tendência de fusionismo com o movimento feminista. O grupo foi intitulado Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF), do qual também fui uma das fundadoras, e será a única parte do Somos a perdurar durante toda a década de 80. O Somos propriamente dito, sob mentoria a princípio da Convergência Socialista, depois do antropólogo e escritor argentino Nestor Perlongher (já falecido), desaparece em fins de 1983. Sua contraparte, Outra Coisa de Ação Homossexualista, originária da tendência libertária que saíra do racha de maio 1970, também encerra as portas no início de 1984

Quando, em abril de 1984, o comício pelas Diretas-Já, em São Paulo, reivindicava o retorno à plena democracia, o incipiente movimento homossexual, tão exuberante em sua breve fase libertária (de 1978 a 1983), entra em profunda crise pela chegada da temida AIDS, que empurra muitos ativistas gays para os grupos de prevenção à síndrome, e pelo próprio contexto sócio-econômico do período. Ironicamente, o retorno paulatino à democracia não foi auspicioso para o movimento até então intitulado exclusivamente como “homossexual”. Só dez anos depois, em 1993, o movimento renasce para dar início a era das ONG e, a partir de 2003, a época da institucionalização, do aparelhamento partidário e da perda de autonomia.

Hoje, quando se completam 50 anos do movimento civil-militar que depôs Jango Goulart da presidência, seguido da instauração do regime militar, em sua diferentes fases, muita fabulação vem sendo dita não só sobre o próprio período ditatorial como sobre o início do movimento homossexual no Brasil. A repressão promovida pelo delegado José Wilson Richetti, de São Paulo, em maio de 1980, nos bares e boates do gueto homossexual do período, extensiva a negros e prostitutas, virou agora uma ação da ditadura contra os homossexuais. Nada a ver. 

Em 31 de dezembro de 1978, acabava o AI-5 e, em 28 de agosto de 1979, era promulgada a anistia. Iniciava-se a chamada abertura lenta e gradual da ditadura militar que levaria à redemocratização do país. O Movimento Homossexual nasce, portanto, já num momento de distensão do regime, sem a repressão generalizada do passado, se bem que as sombras do período mais duro da repressão ainda se projetassem sobre a sociedade ocasionalmente. Já era possível fazer manifestações sem ir parar no Batalhão Tobias Aguiar. 

A Operação Limpeza, do delegado Richetti, se insere de fato no contexto de moralismo conservador da sociedade da época, somado à ausência de respeito aos direitos humanos das populações marginalizadas, mas não pode ser enquadrada como uma ação específica da ditadura contra homossexuais. Se hoje os LGBT são ainda considerados, por muitos, cidadãos de segunda categoria, na época nem categoria tínhamos. Entretanto, essa situação era comum à população LGBT em todo o mundo ocidental, independente de governos democráticos ou ditatoriais. Basta lembrar que a revolta do bar Stonewall Inn, de 1969, que deu origem ao dia internacional do orgulho LGBT (28 de junho), aconteceu em decorrência do cansaço de lésbicas, travestis e gays, com as constantes batidas que a polícia da cidade de Nova York dava no citado bar, levando gente presa pelo único delito de ser homossexual. E os Estados Unidos foram e continuam sendo a democracia mais estável do mundo. 

Estendi essa faixa nas escadarias do Teatro Municipal

Há quem diga que sofreu repressão durante a passeata que ativistas homossexuais, feministas, do movimento negro, etc. fizeram, no dia 13 de junho de 1980, contra as prisões arbitrárias do citado delegado Richetti. Estive na manifestação e não lembro de qualquer repressão, se bem que medo não faltasse de alguma reação violenta da polícia. Tanto que estendi, em frente às escadarias do Teatro Municipal, com ajuda de uma colega do LF, uma faixa intitulada “Pelo Prazer Lésbico”. E o Richetti não me botou no camburão.

De fato, sofri um maior sufoco quando, em 19/08/193, invadi, com colegas ativistas, as dependências do antológico bar das lésbicas da época, o Ferro’s Bar, em protesto contra a proibição de vender o boletim do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) nas dependências daquele sagrado recinto sustentado pelas lésbicas mas onde estas não podiam se expressar. O receio foi maior porque anteriormente já havia sido escoltada pela PM para fora do bar e mesmo pelos seguranças do local na base dos empurrões. Para essa manifestação que encerra o primeiro ciclo do movimento homossexual brasileiro, onde o Somos, o Outra Coisa e o GALF se reuniram pela última vez, conclamamos o respaldo da então vereadora Irede Cardoso e de uma representante da OAB em caso de alguma possível truculência. O evento, contudo, foi um sucesso total e, apesar de uma certa resistência inicial dos proprietários, acabou em concordância e sem mortos nem feridos.

Outra fabulação muito em voga – e não de hoje - é a das feministas socialistas ou congêneres dizerem que o movimento feminista foi solidário às lésbicas desde o aparecimento de suas primeiras organizações. Recentemente, li a feminista Amelinha Teles sair-se com essa em entrevista a propósito do lançamento de um seu livro sobre sua trajetória de guerrilheira e feminista (1975-1980). Além de misturar as datas de surgimento da organização lésbica no país, Amelinha ainda aponta uma integração inexistente entre ativistas lésbicas e feministas que, apesar dos estranhamentos, teria se feito valer desde a década de setenta. A verdade é que o movimento feminista só oficializou seu apoio à causa homossexual em geral e à lésbica em particular durante a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, em Brasília, dos dias 6 a 7 de junho de 2002. E no que diz respeito às lésbicas, só porque eu estava lá para garantir um destaque, inserido no preâmbulo da Plataforma Feminista da citada conferência, sobre a inestimável colaboração das mulheres homossexuais em apoio à causa das mulheres em geral, pelo direito ao próprio corpo, pela livre orientação sexual, etc. Então, Amelinha Teles se “enganou” em cerca de 23 anos ou mais. Precisa ver se não se enganou também sobre sua trajetória como guerrilheira.

Em suma, nessa rememoração dos 50 anos do movimento civil-militar de 31 de março de 1964 que derrubou Jango da Presidência da República, há um hiperdimensionamento das agruras que o regime militar impôs ao país. A esquerda que foi particularmente perseguida pelos militares e agora se encontra no poder não está apenas buscando o direito à justiça, à memória e à verdade. Está buscando também e sobretudo reescrever a História, pintando o diabo muito mais feio do que de fato era, numa abordagem maniqueísta de um período histórico pelo qual  foi igualmente responsável. E, como essa esquerda, dita hoje bolivariana, encontra-se metida em todos os movimentos sociais, decorre que temos muita história desses movimentos sendo recontada para se encaixar numa narrativa pré-determinada.

Meu objetivo, com esse depoimento meio alinhavado, é trazer um outro olhar sobre esse período, fora dessas narrativas pré-determinadas, de alguém que o viveu mas que não pertence a nenhum dos lados antes e hoje de novo em disputa. Para mim, o Brasil tem duas fontes permanentes de atraso: o conservadorismo, sobretudo o religioso, e essa esquerda autoritária e anacrônica que até hoje vê na ditadura cubana um norte e um centro irradiador de uma delirante reedição das repúblicas socialistas bolivarianas bananeiras na América Latina. Precisamos superar esse dois pólos extremos se queremos ter um futuro mais livre em termos econômicos, políticos, sociais e, sobretudo, individuais. Em resumo, um futuro melhor.

Deixo também abaixo um link, sobre esse tema pungente, para um editorial do Estadão objetivo e equidistante (Meio Século Depois). 

Sociólogo francês coloca o arco-íris no centro da política

segunda-feira, 29 de abril de 2013 0 comentários

Éric Fassin: O arco-íris no centro da política

Surpreendeu a muitos as reações conservadoras na França contra o casamento entre pessoas de mesmo sexo e a adoção de crianças por casais LGBT pelo país ser considerado um dos berços da democracia, da intelectualidade moderna e da sofisticação. Por isso, as marchas conservadoras, contra a igualdade de direitos entre as pessoas (e o casamento LGBT não passa disso) e até atos de violência contra políticos e pessoas homossexuais, levaram naturalmente a especulações sobre o que pode haver a mais  por trás disso.

Na entrevista abaixo, sociólogo francês Éric Fassin afirma que "a adoção de crianças por casais gays incomoda por enterrar de vez "a ilusão de que a filiação é fundada biologicamente", o que põe em risco certa concepção arcaica de nação; e diz que rever as concepções "naturais" que temos sobre o casamento, a família e a filiação pode ajudar na necessária reinvenção de nossas sociedades."

Para sociólogo francês, a bandeira do ‘casamento igualitário’ - já hasteada em 14 países - transcendeu o universo das minorias e assumiu a vanguarda na transformação da sociedade


Ivan Marsiglia - O Estado de S.Paulo

Tão logo foi ratificado pelo Parlamento da França na terça-feira, o projeto que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por casais homossexuais desencadeou protestos violentos. Em Paris, manifestantes atiraram garrafas, latas e pedaços de metal na polícia, que reagiu com bombas de gás lacrimogêneo e prendeu 12 pessoas. Os distúrbios foram ainda mais violentos em Lyon, no centro-oeste do pais, onde 44 foram detidos.

Promessa de campanha do presidente François Hollande, eleito pelo Partido Socialista em maio de 2012, o projeto enfrentou resistência da Igreja Católica francesa, da União pelo Movimento Popular, legenda do ex-presidente Nicolas Sarkozy, e da Frente Nacional, de extrema direita. A votação dividida na Assembleia Nacional - 331 votos à favor e 225 contra - já prenunciava a situação da causa do "casamento igualitário", como preferem seus defensores, não só na França, mas no mundo: um cenário de vitórias sucessivas, quase sempre apertadas. Já são 14 os países que adotaram legislação semelhante, na maioria democracias avançadas como Holanda, Noruega, Dinamarca, Suécia, Islândia, Canadá, Bélgica, Nova Zelândia, Portugal e Espanha, mas também Africa do Sul, Argentina e Uruguai. No Brasil, embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido, em maio de 2011, a união homoafetiva estável, a decisão não é equivalente a uma lei sobre o assunto.

Para o sociólogo francês Éric Fassin, a bandeira da igualdade de direitos para os homossexuais adquiriu centralidade única na política contemporânea: "Hoje, a principal divisão ideológica entre a direita e a esquerda na França se dá na questão do casamento igualitário". Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Paris VIII, Fassin se dedica a pesquisar a interface política entre as questões sexuais e raciais e afirma que o mito de uma "democracia sexual" no Ocidente serviu muitas vezes para justificar a xenofobia - travestida de defesa dos ‘nossos’ valores contra os ‘deles’. Autor, entre outros livros não traduzidos no Brasil, de Liberdade, Igualdade, Sexualidade: Atualidade Política das Questões Sexuais (2004) e A Inversão da Questão Homossexual (2008), o professor afirma que a empedernida reação à extensão de direitos às minorias acabou por revelar "a cultura hétero que organiza toda nossa vida cotidiana e até as disciplinas que estudam a sociedade, como a sociologia da família ou a antropologia do parentesco".

Na entrevista a seguir, Éric Fassin explica por que os religiosos desta vez não foram os responsáveis pela polêmica, mas pegaram carona nela; afirma que a adoção de crianças por casais gays incomoda por enterrar de vez "a ilusão de que a filiação é fundada biologicamente", o que põe em risco certa concepção arcaica de nação; e diz que rever as concepções "naturais" que temos sobre o casamento, a família e a filiação pode ajudar na necessária reinvenção de nossas sociedades.

Por que mesmo na França, com sua longa tradição na defesa dos direitos humanos, o tema do casamento gay é tão sensível?

Antes de qualquer coisa, há por trás disso uma lógica política. A questão do casamento igualitário é, hoje, a principal diferença entre a direita e a esquerda na França. Todo o resto, de Nicolas Sarkozy a François Hollande, é continuidade: seja em se tratando de economia, nas proposições de austeridade e competitividade tributárias da mesma política neoliberal, seja no debate sobre a imigração - a expulsão de imigrantes não diminuiu no atual governo e a perseguição cotidiana aos ciganos inclusive se intensificou. Foi sobre o casamento, então, que se fixou a clivagem ideológica. Os protestos aos quais estamos assistindo se explicam pelo fato de que todas as forças se concentram, num ambiente no resto consensual, nessa única batalha. Veja que até mesmo em matéria de laicidade, já não há diferença entre os diversos partidos políticos: Hollande propõe hoje uma lei contra o uso do véu islâmico exatamente como o fizeram Sarkozy em 2010 e Jacques Chirac em 2004...

Mas os protestos ocorridos essa semana não aparentam ter origem exclusivamente religiosa, certo?

Na França, a religião não é o motor primeiro da hostilidade ao tema da igualdade de direitos. É algo que não entendemos bem 15 anos atrás, contra o PaCS (Pacto Civil de Solidariedade, votado em 1999 durante o governo Lionel Jospin, que previa uma parceria contratual entre duas pessoas maiores, independente do sexo, que inspirou o debate sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil). A Igreja, na verdade, se aproveita dessa polêmica para existir politicamente. E Sarkozy soube preparar bem o terreno com sua política de identidade nacional, que repousava sobre duas heranças: a laica, contra "eles", os outros, estrangeiros, etc., e a cristã, por "nós", nossos valores. Era um ato de legitimação política da Igreja. Em retribuição, o lobby religioso dá hoje sua bênção à oposição.

O que incomoda mais, a questão reprodutiva, as relações homossexuais em si ou a adoção de crianças por casais do mesmo sexo?

Nos EUA, o casamento em si é que está no coração da controvérsia. Já na França, é a filiação, o acesso à adoção e à assistência médica para as crianças. Por que isso? Ocorre que na França a filiação define, por sua vez, a família e a nacionalidade. Estendê-la aos homossexuais significa desnaturalizá-la de vez, dissipando a ilusão de que a filiação é fundada biologicamente. Do lado inverso, naturalizar a filiação significa dar um fundamento biológico à ideia de nação. Ainda hoje fala-se muito na França de "franceses de estirpe" em oposição a "franceses de origem estrangeira". E naturalizar a filiação é atribuir a ela um caráter racista, que distingue dois tipos de cidadãos, os "naturais" e os de raízes estrangeiras.

Logo após a votação no Senado, o antigo primeiro ministro Jean-Pierre Raffarin acusou os defensores do casamento gay de provocar uma ‘crise social’ e promover ‘uma injustiça contra as crianças, que não conhecerão nem papai nem mamãe’. O que achou dessa declaração?

De um lado, ela joga com o medo, a retórica reacionária de que permitir a adoção por casais gays é entrar em "terreno escorregadio". Por outro lado, está aí a reivindicação de uma visão biologizante da filiação. "Nem papai, nem mamãe"? A única filiação então é a dos genitores? Como fica isso então em relação aos filhos adotivos? No caso da adoção, os genitores não têm papel na filiação, sejam os pais adotivos de sexos diferentes ou não. A frase de Raffarin é uma negação do direito. Não contente em fazer a defesa de "verdades naturais", biológicas, pretende que elas produzam verdades sociais. Vê-se aqui o quão atual é o debate sobre o casamento igualitário, e quanto a resistência a ele significa uma resistência à noção de igualdade e um retorno ao determinismo biológico.

Em um artigo de 2012, o sr. se perguntava se a oposição ao casamento gay seria, em si, uma forma de homofobia. Como responderia a essa questão hoje?

Os que se opõem ao casamento igualitário fazem uso da ideia de natureza, o que é contraditório, uma vez que tanto o casamento quanto a família são instituições sociais. Falar em "instituição natural" é uma contradição em termos. Portanto, julgar que a extensão do casamento aos homossexuais não seria natural é o mesmo que dizer que a homossexualidade vai contra a natureza. Na época dos primeiros debates sobre o PaCS era possível posicionar-se de maneira hostil ao casamento sem ser homofóbico - mas isso porque não havíamos refletido suficientemente sobre isso. Hoje, todo o mundo já debateu todos os argumentos. Recusar a igualdade de direitos é optar conscientemente pela homofobia política. Veja que interessante: tanto na França como nos EUA pouco menos da metade da população é contrária ao casamento igualitário. Entre os americanos, essa proporção é praticamente a mesma dos que se declaram homofóbicos. Na França, ao contrário, a se supor pelas pesquisas, pouquíssimos se dizem homofóbicos. É um dado revelador da hipocrisia francesa.

Por falar em pesquisas, no início dessa semana só 25% dos franceses se declaravam satisfeitos com o governo Hollande. A polêmica afetou sua popularidade?

O casamento igualitário não é a causa da impopularidade do presidente da república, até porque os eleitores de esquerda são majoritariamente favoráveis. Quanto aos de direita, hostis ao tema, de todo modo não apoiariam Hollande. O que explica sua rejeição é o fato de que a volta ao poder dos socialistas não significou uma verdadeira alternância. Lembremo-nos de que o slogan da campanha Hollande era le changement c’est maintenant (a mudança é agora). A defesa do casamento igualitário é, por isso, o único fator que limita sua impopularidade - porque aí, sim, houve mudança. Há quem diga, inclusive, que sua defesa da nova lei serve apenas para fazer os eleitores de esquerda esquecerem as renúncias que fez na volta ao poder. É um fato, mas prefiro que o governo distraia os franceses com a questão do casamento do que expulsando imigrantes ou perseguindo ciganos.

Além da França, outros 14 países aprovaram leis semelhantes, inclusive nossos vizinhos, a Argentina e o Uruguai. Parece haver uma movimentação internacional em torno do tema. Por que o casamento gay virou a principal bandeira de seus ativistas, mais importante até que as leis anti-homofobia?

No primeiro país, a Holanda, a legalização data de 2001 e, de lá para cá, a multiplicação tem sido bastante rápida. São oito países na Europa, mas também na América do Norte e do Sul, além da Oceania. Isso ocorreu porque os ativistas gays se apoiaram em princípios democráticos como a igualdade de direitos. É uma eficácia ainda mais impressionante quando se leva em conta a enormidade de lutas progressistas que fracassaram nos últimos anos. E mais: trata-se de um desafio enorme simbolicamente, daí a resistência feroz que enfrenta por toda a parte. Outro fator que contribui para sua implementação é o fato de ela não custar quase nada - de certa maneira, portanto, é uma reivindicação compatível com as políticas neoliberais. Ainda que o exemplo da direita francesa, partidária do neoliberalismo, tenha se aliado aos conservadores religiosos para combatê-la.

Em A Inversão da Questão Homossexual o sr. diz que os debates em torno da causa marcam uma ruptura histórica: após um século de estudos da psicanálise, da antropologia e da sociologia sobre a homossexualidade, atualmente é a política lésbica e gay que põe em questão essas disciplinas e a própria sociedade. Por quê?

Veja o exemplo francês: é a homofobia que se esconde hoje em dia, não a homossexualidade. Nos EUA, o humorista Steven Colbert chegou a dizer: "Na França, aquele pessoal com cartazes cor-de-rosa dançando ao som do grupo Abba são os manifestantes antigays!" A homofobia se travestiu: em vez de deixar sua violência sair do armário, percebeu que já tinha perdido a batalha. Dizendo de outra maneira, a questão hoje não é mais "como alguém pode ser homossexual?", mas "como alguém pode ser homofóbico?". As reivindicações gays revelaram o que ninguém percebia em nossa sociedade: é a cultura hétero que organiza toda nossa vida cotidiana, a família e até as disciplinas que estudam a sociedade, como a sociologia da família ou a antropologia do parentesco. O que não conseguíamos ser capazes de perceber, de pensar, passa rapidamente a ser visível, "pensável". Tudo isso que nos parecia "natural" revela-se como mera convenção, arbitrária e portanto modificável.

De que maneira tal mudança de parâmetros afeta questões como a imigração e a xenofobia, como o sr. chegou a dizer?

Durante os anos 2000, políticos xenófobos e racistas buscaram legitimar sua voz nas sociedades ocidentais pela instrumentalização do que chamo de "democracia sexual": dizendo que o sexismo e a homofobia eram mazelas ‘deles’ e não ‘nossas’, os espíritos libertos. Assim, falava-se o tempo todo na Europa sobre como o véu islâmico é um símbolo do patriarcado atrasado deles, assim como casamentos forçados ou a poligamia. Insistíamos o tempo todo que tais violências contra mulheres e homossexuais estavam restritas aos bairros de imigrantes ou estrangeiros. Ora, fazer esse discurso hoje em dia ficou mais difícil. Tanto que a heroína do movimento anticasamento igualitário, Frigide Barjot, foi ao congresso da União das Organizações Islâmicas da França buscar o apoio ‘deles’ para a causa! E já provoca inquietação em alguns imaginar qual será o resultado dessa mudança na retórica conservadora. Ou seja, como será reposta a oposição entre ‘nós’ e ‘eles’ sem o pretexto da democracia sexual.

Em um texto sobre a obra de Michel Foucault, o sr. afirma que não se trata de pensar a invenção de uma cultura gay em torno do casamento e da família, mas de ‘uma cultura inventiva a partir da atualização homossexual dessas instituições’. Tal transformação é possível? Qual seria o resultado dela?

Ela é a mais difícil, mas também a mais necessária, em minha opinião. Na França, como teria sido absurdo denunciar o casamento igualitário como um projeto de normalização da homossexualidade, o argumento que se usou contra, tanto à direita como à esquerda, foi o da defesa da "ordem simbólica". Mas uma vez vencida a batalha, é preciso enfrentar a questão. E aproveitar este momento para questionar de fato as noções de casal, de família, casamento e filiação. Se em vez de presumir que já sabemos do que estamos falando, como se fosse algo óbvio, tomarmos consciência de que cabe a nós dar-lhes sentido, abre-se um espaço. Se não um espaço de reinvenção radical, pelo menos de um pouco de bricolagem, de improvisação. Já vimos, em outras ocasiões, como o divórcio, a possibilidade de outros casamentos engendraram novas experiências sociais. Por que não poderia ocorrer novamente, a partir da abertura do casamento e da família aos casais do mesmo sexo?

Fonte: Estadão, 27 de abril de 2013

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...
 
Um Outro Olhar © 2025 | Designed by RumahDijual, in collaboration with Online Casino, Uncharted 3 and MW3 Forum