Memória Lesbiana: há 40 anos era lançado o primeiro número do boletim ChanacomChana

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Capa Helena A. © coleção ChanacomChana Míriam Martinho

Míriam Martinho

Em dezembro de 1982, era lançado o boletim ChanacomChana número 1, primeiro de uma coleção de 12 edições que produzi e editei pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF). Ele se insere no período inicial do GALF (10/81 a 08/ 85) correspondente à fase em que a organização adota o histórico do coletivo que o precedeu, o Grupo Lésbico-Feminista(05/1979-06/1981), divide sedes com o grupo gay Outra Coisa de Ação Homossexualista e promove a hoje célebre invasão do Ferro’s Bar. Também é o período em que o grupo vive vários conflitos com o Movimento Feminista por este não incorporar a questão lésbica à sua agenda oficial.

"Não sofra calada", Míriam Martinho, 08/07/1982 - Crítica ao grupo feminista SOS-Mulher

Não por menos, no primeiro texto que escrevi para a coleção CCC, O Lesbianismo é um Barato, exatamento no CCC 1, eu o ilustrei com a tirinha Não Sofra Calada, também de minha autoria, onde criticava a postura do grupo feminista SOS Mulher, um grupo que, embora dissesse lutar contra a violência sobre as mulheres, não abordava a violência específica contra as lésbicas. 

Por ser a primeira edição do boletim CCC, ela ainda não tem a separação por seções que vou introduzir nos números posteriores, apesar de já aparecerem os informes. Aliás, o boletim se inicia com alguns informes sobre o grupo, ainda intitulado então de Grupo de Ação Lésbico-Feminista, e sobre o Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS), organização criada por lésbicas europeias que vai ter grande importância na expansão do movimento lésbico para além da Europa e dos EUA nos anos 80 e 90 (p. 1)

Mulher de Chuteira- Charge Míriam Martinho para CCC1

Na sequência, temos o texto o Lesbianismo é um Barato, acima citado (p. 2), depois uma entrevista com jogadoras de futebol feminino da boate lésbica Moustache, Mulher de Chuteira (p. 3-4). Vale lembrar que o futebol feminino foi vetado por Getúlio Vargas em 14 de abril de 1941, via o Decreto-Lei 3.199, art 54, que proibia as mulheres de praticar esportes que não fossem "adequados a sua natureza". No início da ditadura militar, em 1965, o Conselho Nacional de Desportos (CND) citou nominalmente os esportes proibidos para as mulheres, como "lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, rugby, halterofilismo e beisebol”. Entretanto, ainda na vigência do regime militar, o decreto do Vargas foi extinto em 1979, e o futebol feminino regulamentado em 1983. Ou seja, um pouco depois da entrevista das jogadoras ao Chana em que pediram para não ter seus nomes citados.

Após a entrevista Mulher de Chuteira (p. 3-4), temos um texto, provavelmente de Rosely Roth, sobre a ex-interna da FEBEM Sandra Mara Herzer que se suicidara em 9 de agosto de 1982 e sobre o livro A Queda Para o Alto, lançado em outubro de 1982, contendo um misto de poesias e relatos de Sandra sob o pseudônimo de Anderson Herzer. Acompanha também o texto de minha autoria do panfleto Carta por Sandra Mara que o GALF distribuiu na Assembleia Legislativa de São Paulo por ocasião do lançamento do livro A Queda Para o Alto. Vale ressaltar que Sandra Mara, apesar de adotar persona e pseudônimo masculinos, não era nenhum "homem trans", pois não havia tal identidade na época. Lésbicas masculinizadas eram chamadas somente de sapatões, franchonas, caminhoneiras, etc. Reescrituras da história, retratando, como "homens e mulheres trans", gays e lésbicas que representavam estereótipos de gênero atribuídos ao sexo oposto ao seu, não passam de anacronismo, algo a ser evitado por qualquer pessoa que queira ter alguma credibilidade intelectual.


Depois, segue uma matéria sobre o Festival de Mulheres nas Artes (3-12/09/1982), p. 6 a 10, que teve como principal organizadora a atriz Ruth Escobar (também foi deputada estadual), personalidade de destaque do período. A matéria foi redigida por mim e Rosely, registrando nossas impressões sobre esse evento tão diverso e rico em vários sentidos. Fora as programações artísticas propriamente ditas, o Festival promoveu o futebol feminino que, pela primeira vez, entrou no estádio do Morumbi, e trouxe palestras com expoentes do feminismo internacional como Kate Millet, Dacia Maraini, Antoinette Fouque, estas duas últimas falando das implicações políticas da lesbianidade, algo bem oposto ao discurso da lesbianidade como opção sexual vigente no feminismo brasileiro da época. São abordagens provocativas que resistiram ao tempo e valem a leitura. A matéria registra ainda a censura à música "Franchitude de Francha" (Gisele Fink-Míriam Martinho) que foi proibida de concorrer, pela censura federal, no Festival Feminino da Canção para o qual havia sido aprovada. A música era uma paródia das relações tumultuadas das sapatas do Ferro's Bar, muito influenciada pelas músicas do cantor e compositor Eduardo Dussek.

O GALF redigiu uma nota de protesto contra a censura que reproduzo por ser um exemplo das diferenças de pensamento entre o ativismo daquela época e de hoje. Atitudes censórias eram típicas do governo autoritário que nos governava há quase duas décadas naquele momento. Daí a frase: "Acreditamos que toda e qualquer censura é uma violência a um direi­to intrínseco de todo ser humano: o direito a expressão de seu pensamento."

O ativismo de hoje, sob a desculpa de combater discursos de ódio (e praticamente tudo virou discurso de ódio), não faz outra coisa que não querer censurar tudo e todos que não sigam por suas linhas tortas via cultura do cancelamento. Nesse afã, como os ditadores do passado, "destroem a criação, a consciência, a crítica positi­va, a liberdade, o bom humor, o ser humano..."
Liberdade, abra as asas sobre nós

O FESTIVAL NACIONAL DAS MULHERES NAS ARTES representou uma oportunidade para que nós, mulheres, pudéssemos mostrar nossos trabalhos há tanto tempo silenciados pela cultura masculina. 
E é esta mesma cultura, da qual tantas vezes gomos cúmplices, que como não poderia deixar de ser, manifestou-se concretamente durante este Festival. A música "Franchitude de Francha", classificada na terceira eliminatória, foi proibida pela censura federal. Acreditamos que toda e qualquer censura é uma violência a um direi­to intrínseco de todo ser humano: o direito a expressão de seu pensamento.
A liberdade é como uma máquina nova, enquanto não se tiver contato com ela, não será possível aprender a manejá-la. Proibir a música "Franchitude de Francha" é manter ideias pré-concebidas que destroem a criação, a consciência, a crítica positi­va, a liberdade, o bom humor, o ser humano, um povo .

Liberdade, abra as asas sobre nós." (p. 7)
Na última página do CCC1 (p. 10), voltamos aos informes, com destaque para a notícia do encontro das organizações civis da época com o governador Franco Montoro, eleito na primeira eleição direta para o Palácio dos Bandeirantes desde 1962. Neste encontro, o GALF reivindicou o fim do parágrafo 302.0 que rotulava a homossexualidade como doença, o direito dos casais homossexuais à custódia de seus filhos e à adoção de crianças, etc...

CHANACOMCHANA 1

Pág. 1 - ILIS
Pág. 2 - O Lesbianismo e um barato
Pág. 3 - Mulher de chuteira
Pág. 5 - Carta por Sandra Mara
Pág. 6 - I Festival Nacional De Mulheres Nas Artes
Pág. 10 - Informes: encontro grupos homossexuais com governador Franco Montoro; caso Antônio Crisóstomo; SOS Mulher

Para conferir a cópia digitalizada do CCC 1, clique aqui

Ver também:

Memória Lesbiana: Míriam Martinho e o processo de produção dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar

Memória Lesbiana: 40 anos do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) entre fato e ficção

Nota: A coleção ChanacomChana está disponível para leitura e pesquisa. Para outras finalidades, favor me contatar pelo e-mail uoo@umoutroolhar.com.br Essas publicações têm beneficiado o trabalho de muita gente através dos anos. Respeitar os direitos autorais da produtora, editora e organizadora desse título é um sinal de reciprocidade muito bem-vindo. Obrigada.

Chanas do 1 a 12 - pioneirismo e vanguada nos anos 80 -© coleção ChanacomChana Míriam Martinho


2 comentários:

  1. que trabalho de pesquisa incrível, parabéns pelo texto - uns anos atrás achei num sebo uma edição da Revista Femme (ed. Setembro/94) - scaneei ela - se quiser te envio, é só avisar

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    1. Obrigada, Kol! Escreva para mim pelo e-mail uoo@umoutroolhar.com.br

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