Os inacreditáveis sequestros da história do GALF, do Chana, do Dia do Orgulho e da imagem de Rosely Roth

quarta-feira, 30 de novembro de 2022



A hora do espanto: as inacreditáveis tentativas de sequestro da história do GALF, do Chana, do Dia do Orgulho e da imagem de Rosely Roth

Este texto surgiu da necessidade de denunciar as tentativas de sequestro da história do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), do ChanacomChana, do Dia do Orgulho Lésbico e da imagem de Rosely Roth com o objetivo de encaixá-los anacronicamente numa suposta resistência das lésbicas à ditadura militar. Assim sendo, sob o signo do espanto, relato, em primeiro lugar, as experiências surreais vividas, desde 2021, com essas tentativas de sequestro, que apelidei de “novelão da armação”, e disseco as ações de seus agentes. Trago nomes, histórias de bastidores e inclusive trechos de cartas da Rosely nesta denúncia. Claro, preferia estar escrevendo uma história bonita, de sororidade, conquistas coletivas, mas me vejo na obrigação de expor – mais uma vez - um festival de baixarias inacreditáveis que demorei para entender em seu conjunto. Dá muita vergonha alheia e constrangimento esse enredo, mas é preciso enfrentar.

Num segundo momento, com vistas a contextualizar as origens do próprio GALF e do Chanacomchana em seu real tempo histórico, político e ideológico, enveredei também por um breve resgate do Brasil dos anos 60, 70 e início dos 80 sob o contexto macropolítico da ditadura militar e da revolução sociocultural e comportamental da Contracultura. Trago depoimentos de vários atores daquela época para caracterizar a importância da Contracultura na mentalidade da geração dos anos 70 no Brasil e de como suas ideias influenciaram o nascimento do Movimento Homossexual tupiniquim, estendendo-se até a formação do próprio GALF. Falo também dos conflitos desse incipiente movimento com a esquerda tradicional e, com texto dessa própria esquerda, demonstro como suas ideias foram amplamente rechaçadas no Movimento Homossexual Brasileiro.

O resultado foi uma miscelânea de relato pessoal, pois sou o alvo central do novelão da armação, com análise política mais ampla, buscando de qualquer forma referendar todas as abordagens com boas fontes.


Capítulo 1: Novelão da armação

Introdução

Deixei a militância presencial em 2009 por exaustão e falta de perspectiva de algo minimamente interessante para fazer no âmbito do ativismo coletivo. De um lado, a população lésbica e sua visão sempre utilitarista dos grupos lésbicos como prestadores de serviços (situação agravada com o advento das ONG) e não como espaços a se agregar na luta pelo bem comum. Do outro lado, a militância já naquela época uma crescente bolha tóxica de múltiplas cooptações que desaguaram nos pós-modernos identitarismos tribalistas e suas tentativas de heterossexualização de lésbicas e gays como vemos hoje.

Após 30 anos consecutivos de militância presencial, tive síndrome de burnout e precisava de um belo respiro ou, também poderia dizer, precisava tirar a cruz das costas. Lembrando que eu não só militei como também produzi 20 anos de publicações: 12 boletins Chanacomchana, 21 boletins Um Outro Olhar, 18 edições da revista Um Outro Olhar, 15 boletins Ousar Viver, sobre saúde lésbica, fora cartilhas e folhetos também sobre saúde lésbica, relatórios de encontros e a versão online da Um Outro Olhar. Em breve, apresentarei meu portfólio detalhado.

Em função desse currículo de ativismo, já a partir dos anos 2000, passei a receber pedidos de entrevistas sobre as publicações que produzi (ChanacomChana e Um Outro Olhar) e os grupos dos quais fui cofundadora (Grupo Lésbico-Feminista - LF, Grupo Ação Lésbica-Feminista - GALF e Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar). E esses pedidos continuaram num crescendo, principalmente da década passada para cá.

De fato, não respondi nem metade deles seja por falta de tempo, ou outras questões pessoais, seja por, sobretudo, me perceber meio esquecida de algumas coisas. Em algumas entrevistas que dei, notei posteriormente que havia trocado datas, nomes de personagens. E ficar preenchendo lapsos de memória com fabulações, como faz tanta gente por aí, nunca foi minha praia. Acho que as pessoas merecem ter acesso a informações bem fundamentadas não a contos da carochinha reciclados e referendados por comadrios e compadrios. Passei então a produzir os textos da série Memória Lesbiana tendo minha memória como guia, mas ancorada em pesquisas no meu próprio trabalho, meu fio de Ariadne, no acervo da Um Outro Olhar e em outras fontes, a fim de servir como levantamento de dados para um trabalho mais amplo de resgate da minha militância e de consulta para as interessadas. Fora, claro, combater tantas reescrituras e usurpações da história da organização lésbica brasileira que não param de crescer. O relato que se segue também faz parte desse esforço naturalmente.

De qualquer forma, nos últimos anos, dei algumas entrevistas, entre elas para umas gurias que viriam a formar o autointitulado Arquivo Lésbico Brasileiro (dei entrevistas para 4 delas que fizeram suas teses parcial ou integralmente sobre meu trabalho seja como ativista ou como produtora do Chanacomchana e do Um Outro Olhar). No início de 2021, recebi convite para o lançamento do tal arquivo. De cara, já achei um pouco estranha a aparição súbita desse arquivo, formado por gente que acabava de receber títulos de mestrado. Conheço arquivos lésbicos desde os anos 80, e eles sempre surgiram a partir da própria comunidade lésbica de forma bastante orgânica e gradual. Mas tentei pensar positivo, achando que poderia já haver uma história se desenrolando antes do empreendimento vir a público.

Entretanto, quando comecei a ler as teses dessas gurias, onde constavam minhas entrevistas, entre outras, a estranheza só foi aumentando. A primeira estranheza foi em relação à abordagem especulativa sobre a Rosely Roth e seu falecimento. Uma querendo fazer perfil da Rosely com gente estranha a ela, outra me entrevistando em tese que seria sobre o GALF, mas indo colher depoimentos com integrantes do lésbico-feminista (coletivo que precedeu o GALF) e ativistas lésbicas da década de 90. No meio do texto, de novo especulações sobre a morte de Rosely junto sabe lá a quem que teria lidado com a situação (de sua doença), com “narrativas sugerindo diferentes formas de abordar o problema individual e coletivamente e a existência de mágoas que ainda perduravam”. Considerando que não havia grupos lésbicos no Rio no final da década de 80 e que Rosely, no seu último semestre de vida em 1990, ficou afastada de espaços de militância (como deveria ter sido feito desde o início de sua ida ao Rio), de onde apareceram as tais “narrativas de formas de lidar com o problema e sobretudo de mágoas que ainda perduravam”? Quem tinha que lidar com os problemas da Rosely eram os psiquiatras e terapeutas que dela tratavam, e mágoa é um sentimento por algo que nos feriu diretamente. Não existe mágoa alheia. Luto produz tristeza apenas. Muito estranho.

A essas alturas eu também já havia notado a aproximação dessas gurias da personagem Marisa Fernandes (do Coletivo de Feministas Lésbicas) que aparecerá muito neste relato. E onde Fernandes aparece, direta ou indiretamente, sempre rola alguma coisa escusa, fraudulenta e não raro caso de polícia. Ela é uma espécie de ISO 9000 ao contrário. E não deu outra. Finalmente eu cheguei à tese de uma das integrantes do arquivo, chamada Carolina Maia (hoje se diz Caio) que fez seu trabalho integralmente em cima dos meus boletins Um Outro Olhar. Em sua tese, ela enxerta, sem relação com os boletins, uma reciclagem do infame depoimento de Fernandes em outra tese onde a velhaca me acusava de ter sido responsável pelos problemas psiquiátricos da Rosely, por haver me separado dela (sic), o que a teria levado ao suicídio. Apelidei essas teses de “teses-armação”.

Dissecando a primeira tese-armação

Para entender como esse tipo de baixaria foi parar em teses, há que se rebobinar a fita para o início dos anos 90. Já tendo tomado um engov, descrevo então o primeiro capítulo da novela sórdida urdida por Fernandes, que uma psicóloga minha conhecida, para quem descrevi o perfil da citada criatura, disse se tratar de alguém com traços de psicopatia (mente como quem respira, manipula as pessoas para obter vantagens pessoais e prejudicar os outros, índice de maldade elevado). Só um aparte porque, pessoalmente, não me interessa se a figura é caso de psiquiatra, de descarrego ou daquela justiça rápida e rasteira que se faz nas periferias do Brasil. Problema é ela ter me pegado para bode-expiatório de sua cabeça machista e recalcada ao longo da vida e como isso precisa ter um paradeiro.

Tive raros contatos com Fernandes na década de 80 porque o que nos aproximava, o Grupo Lésbico-Feminista (LF), se desfez em meados de 1981, e ela deixou a militância lésbica para ir viver, a princípio em casas comunitárias de um hippismo tardio em Riacho Grande (SBC) e Maromba (RJ). Finda essa fase, retornando a Sampa, migrou, como outras ex-LFanas, para o armário do clube alienado e covarde que as feministas homossexuais armaram, dentro do movimento feminista, a partir do qual pregavam a despolitização da questão lésbica reduzindo-a à opção sexual a ser vivida no privado.

Ao contrário do que disse em entrevistas e artigos, portanto, Fernandes nunca esteve no GALF (Grupo Ação Lésbica-Feminista), embora não tenha feito outra coisa, desde que retornou à militância na década de 90, a não ser tentar se meter a fórceps num grupo pelo qual de fato nunca teve qualquer interesse quando vivo (graças a Zeus). Retomando, então, tive raros contatos sociais com ela durante a década de 80, pois nossas vidas tomaram rumos diferentes. Entre esses raros contatos, o último e o único mais prolongado foi em 1988 quando logo me vi envolvida em mais um dos barracos dos quais Fernandes sempre foi pródiga, barraco potencializado por seu costumeiro consumo de drogas. Foi então que lhe dei um belo “chega pra lá”, nela e em outra sua parceira também junkie de merda e igualmente barraqueira.

Seja como for, tratou-se de um incidente doméstico, como tantos outros que acontecem todos os dias entre zilhões de seres humanos, do qual qualquer pessoa minimamente equilibrada esquece em pouco tempo. No caso de Fernandes, porém, parece que meu “chega pra lá” lhe feriu fundo a masculinidade tóxica, tanto que resolveu usar inclusive o movimento de um dos grupos mais vulneráveis da sociedade, que são as lésbicas, como palco para a purgação de seu eterno despeito.

Embora, durante a década de 80, desdenhasse da organização lésbica e mesmo da produção do Chanacomchana, no ano seguinte ao nosso entrevero, durante o X Encontro Nacional Feminista, realizado em Bertioga (SP), entre 14 e 19 de setembro de 1989, Fernandes participou de reunião específica de lésbicas, onde entre outras coisas, como vieram me reportar, queria saber o que seria feito do acervo do GALF porque achava que, com a doença de Rosely, o grupo não continuaria. Rosely adoeceu em outubro de 1987, e o GALF continuou existindo oficialmente até março de 1990 porque quem o sustentava eram os boletins Chanacomchana e Um Outro Olhar, que eu produzia, não nossa porta-voz. E não terminou tampouco por causa de Rosely que faleceu meses depois do fim do GALF. No boletim Um Outro Olhar 17 do inverno de 92, p.13, para dar uma ideia de há quanto tempo Fernandes apronta - eu já dizia a propósito de um vídeo sobre o movimento de mulheres, Memória de Mulheres, onde ela aparecia:
Depois desse encontro, em 1990, recebi carta da feminista Maria Otília Bocchini informando que ela, Fernandes e outras tinham formado o Coletivo de Feministas Lésbicas (CFL) para levar a questão lésbica exclusivamente dentro do movimento feminista, preenchendo o vácuo deixado pelo GALF. Só iria rever Fernandes, contudo, quando fiquei sabendo que Míriam Botassi (do Centro Informação Mulher-CIM) tinha assumido organizar o IV Encontro de Lésbicas-Feministas e do Caribe no Brasil a partir de abril de 1993. A Rede UOO já tinha sido consultada no final de 1992 e início de 1993 sobre a possibilidade de se fazer esse encontro por aqui, mas dito “não” por não ver estrutura para tal. Duas consultoras do encontro anterior, ocorrido em Porto Rico, contudo, encontraram com Botassi em um encontro feminista na Guatemala, e esta assumiu fazer o evento lésbico no Brasil. Nós, da Rede UOO, e o grupo Deusa Terra fomos conferir aquele fenômeno de feministas homossexuais querendo organizar encontro lésbico internacional no país, já que, até então, nunca haviam feito quase nada pelas lésbicas nem no movimento onde atuavam.

Paralelamente, em maio de 93, o Grupo de Homossexuais do PT (GHPT) entrou em contato com os grupos de gays e lésbicas existentes em São Paulo para organizar o VII Encontro Brasileiro de Homossexuais. Eu de imediato propus a mudança do nome do encontro para incluir a palavra lésbica, com apoio de outras lésbicas da Rede e do grupo Deusa Terra e independentes [1] e dos grupos gays GHPT e Etecetera e Tal. A comissão organizadora submeteu a proposta aos demais grupos LG do país que, em sua maioria, também aprovaram a mudança, passando o encontro a se chamar de VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais, não sem antes enorme polêmica.

[1] As ativistas lésbicas que organizaram o VII EBLHO foram Luiza Granado e Míriam Martinho (pela Um Outro Olhar), Célia Miliauskas e Cristina Matsubara (pelo Deusa Terra) e Monica Pita (independente). 


Ficamos, então, no ano de 1993, de observadoras do encontro das lésbicas, onde as coisas não andavam, e de protagonistas do encontro LG, onde, apesar da polêmica sobre a alteração do nome, tudo foi se encaminhando a contento. Culminou, em setembro de 1993, num encontro bem-sucedido e histórico, considerado um divisor de águas, o renascimento do movimento homossexual no país, rebatizado de movimento de gays e lésbicas e, depois, em 1995, de gays, lésbicas e travestis. Posteriormente a letra L passou a iniciar a sigla, embora só a letra, não as lésbicas.

Ao final do VII EBLHO (4 a 7 de setembro), estávamos superfelizes com o sucesso do evento, mas exaustas pela trabalheira. Decidimos, então, nós, da Rede, e o grupo Deusa Terra deixarmos a organização do encontro lésbico latino-americano para Botassi, o CFL e outras que estavam descansadas. Mas eis que então Miriam Botassi aparece em meu apartamento, aquele mesmo onde ela havia mandado despejar a biblioteca e o material do GALF, em 1985, para pedir que a gente não deixasse a preparação do encontro porque ela não teria condições de organizá-lo com a “louca” da Marisa Fernandes (palavras dela). Resistimos o quanto pudemos: repetimos o quanto estávamos cansadas, as gurias do Deusa Terra idem. Botassi então pediu licença para usar o telefone e ligar para uma das integrantes do Deusa Terra a fim de convencê-la também a não desistir da organização do evento. Insistiu na ladainha de que não precisaríamos pegar no pesado, apelou para a causa lésbica (esta não seria a última vez que eu cairia nessa conversa mole de “causa”) e nos constrangeu a voltar, já que havia dado força para a inserção da palavra lésbica no VII EBLHO, cedera o espaço do CIM para as reuniões da comissão organizadora do encontro. Acabamos voltando então só para nos darmos conta de que Botassi queria era simplesmente desviar as atenções da “louca” dela para nós, como de fato aconteceu durante o restante de setembro de 1993.

E tudo continuou sem rumo, com as figuras mais preocupadas em discutir as mazelas do movimento feminista do que encaminhar minimamente um esboço do que poderia ser o tal encontro em pauta. Como haveria uma reunião lésbica, em outubro, marcada para um encontro feminista em El Salvador (6º EFLAC), nós, da Rede, fomos ao evento e relatamos a situação precária da comissão organizadora, apresentamos uma carta com os nomes dos grupos que a compunham, omitidos por Botassi anteriormente, e pedimos apoio das integrantes das comissões organizadoras pregressas a fim de salvar o encontro no Brasil. Míriam Botassi ficou mais pálida do que cera ao ter que simplesmente conversar com as ativistas lésbicas latino-americanas num encontro informal no quarto de uma delas.

Depois, numa reunião aberta, no gramado da pousada onde foi realizado o encontro, concordou com a criação de um comitê regional para apoiar a organização brasileira e quem sabe ajudar a mediar seus conflitos. Botassi e sua acompanhante, Alice de Oliveira, concordaram com o comitê, mas, de volta ao Brasil, na primeira reunião que tivemos, em 28/11/93, Botassi declarou sua saída da comissão organizadora, por não estar de acordo com o Comitê Regional (sic), por não aceitar ser mandada por “aqueles paízinhos (em referência à Costa Rica e a Porto Rico)” nem com os rumos do encontro (como se o encontro tivesse tido rumo alguma vez). Com ela saíram também as integrantes do CFL, não sem antes promover um grande tumulto.

Nós, da Rede e do Deusa Terra, então nos dirigimos ao comitê regional, descrevendo o ocorrido e, claro, declarando nossa desistência da organização do evento que foi posteriormente assumido pelos grupos lésbicos da Argentina. Teve também um lance cômico das retirantes tentarem fazer o encontro escondido, em 1994, e enviado carta ao comitê regional dizendo que a comissão brasileira não havia se dissolvido. Em junho de 1994, contudo, ao receber carta da comissão organizadora argentina, Botassi remeteu comunicado a grupos de gays e lésbicas e feministas brasileiros dizendo que sofrera um golpe. Mais detalhes da história rocambolesca podem ser lidos na revista Um Outro Olhar 22, p. 11.

Na verdade, Botassi não conseguiu organizar o encontro em São Paulo porque sua monumental arrogância e seu hábito de manipular os outros não permitiu. Nós tínhamos deixado a organização numa boa para ela ir à luta com suas parças e antagonistas. Ela é que veio nos implorar para voltar. Deveria ter se virado com a “louca” da Fernandes para organizar o encontro ou desocupar o copo para outras beberem a água em vez de envolver todo o mundo em suas lambanças. Depois, confirmando sua arrogância, não quis aceitar a mediação de outras ativistas latino-americanas, com ativismo lésbico que ela não tinha, para um encontro que era latino-americano, não brasileiro. Por fim, não obstante ter sido a única responsável pelo próprio fracasso, ela e a mesma Fernandes a quem chamara de louca, vão nos culpar por seu vexame e retaliar.

E a retaliação veio no nível Marisa Fernandes de ser. Na tese de uma mexicana chamada Norma Mogrovejo, amiga de Botassi, segundo depois me informaram, Fernandes vai me responsabilizar pelos problemas psiquiátricos da Rosely entre outras mentiras e absurdos. Eu cheguei a falar com essa “pesquisadora”, no encontro da Argentina, que queria saber da novela da desorganização do IV Encontro no Brasil. Depois, só fui ouvir falar dela quando a carioca Rita Colaço, em 2009, me enviou cópia da citada tese onde a nefasta Fernandes vomitou sua maledicência. 

Traduzi o trecho principal da baixaria para desconstruí-lo com ajuda da própria maléfica. Cumpre adiantar que Fernandes inventou toda a história abaixo, convenhamos, porque não vale o que defeca, não porque seja louca, como dizia a comadre Botassi. Que tenha algum problema psicológico mais sério não há que se duvidar. Nenhuma pessoa saudável passa uma vida perseguindo outra a troco de nada. Mas a loucura real se caracteriza pela incapacidade de a pessoa distinguir o que é real do que não é, de não saber o que faz e diz, portanto, ser inimputável. E Fernandes sabe muito bem o que faz, apenas não tem limites morais. A entrevista abaixo é de 1995 (original aqui):
Em 85 Teca (que era uma grande oradora), Miriam e eu nos separamos por várias razões e Rosely entrou, uma lésbica muito forte, de origem pobre, branca muito combativa. Eu tinha rompido meu relacionamento com Miriam (sic). Rosely e Miriam começaram um relacionamento duas fortes lideranças que foram assumidas publicamente e Rosely foi a televisão num programa de Hebe Camargo, um patrimônio vivo da história da televisão, as pessoas a adoram porque é sincera e no final do programa ela deu a caixa postal. Milhões de lésbicas estavam assistindo e recebemos milhares de cartas dizendo "Eu não vou mais me matar, porque eu sei que não estou sozinha "cartas emocionadíssimas”. Todas elas foram respondidas, nós éramos militantes, demos nosso tempo, fizemos bingo para conseguir dinheiro, fizemos muitas coisas, não tínhamos financiamento, o grupo não tinha recursos, era autossustentável. Tínhamos uma reunião específica para as novas "grupo de identificação".
Bem, a Teca deixou o Grupo Lésbico-Feminista (LF) em outubro de 1980 (ver abaixo a entrevista de Teca ao Mulherio (n. 9, set./out. 1982), e a Fernandes em junho de 1981 (ver entrevista dela abaixo). Só eu e a Rosely que tínhamos sido do LF (Rosely só nos últimos 4 meses do coletivo) seguimos com a militância lésbica e fundamos o Grupo Ação Lésbica Feminista em outubro de 1981. Portanto, eu, Teca e a Fernandes não nos separamos em 1985 por inúmeras razões. Sobretudo, eu não tinha rompido relacionamento algum com essa figura lastimável. Antes de namorar a Rosely, eu namorava a Teca, fora alguns namoricos com outra Marisa, mas essa de sobrenome Fiori. Isso na época do lésbico-feminista (05/79-06/81). E Fernandes nunca esteve no GALF, então, essa história das cartas emocionadíssimas que “nós” recebíamos (ela se incluindo no grupo) nunca existiu. Todo o parágrafo acima é pura cascata.

Entrevista de Teca ao Mulherio (n. 9, set/out 1982)

Comparemos com um trecho da entrevista que a própria Fernandes deu para a tese Trajetória da Imprensa Lésbica No Brasil (1981-1995), de Paula Silveira Barbosa (2019). Nesse trecho da tese (p. 209-210), ela diz a verdade sobre seu afastamento da militância na década de 80, embora minta sobre ter ido se desintoxicar (no entrevero que tivemos em 1988 seu consumo de drogas continuava bem presente). Ela afirma que se afastou de coletivos na década de 80, não podendo, portanto, ter participado do GALF e auferido o impacto da participação da Rosely no programa da Hebe Camargo.
Paula: Agora, o LF, que depois se tornou GALF, teve várias fases, mas você disse que só participou no início. Depois que sai aquela edição especial do Chana, em 81, acontece um hiato. Ele só volta em dezembro de 82, já em formato de boletim. O que aconteceu nesse meio tempo? Foi a partir daí que você se afastou?
Marisa: É, é. (Risos). Acompanhei até o grupo conseguir uma sede própria na rua Aurora (julho de 1981). Depois, eu precisei me afastar, por questões de saúde. Minha questão de saúde era uma desintoxicação mesmo. Eu tava abusando de substâncias psicoativas e álcool. Enfim, tudo o que tinha. Para segurar tanta energia, tanto trabalho, porque eu era bastante ativa. Então, eu estava muito intoxicada e resolvi sair de São Paulo, para fazer essa desintoxicação.
Parei com o ativismo em coletivos, em grupos. Mas quando eu retornei para São Paulo, eu nunca deixei de ir, por exemplo, às reuniões organizativas do 8 de março, mas eu era autônoma.
P: E quando você volta?
M: Ah, que pergunta difícil! Não tenho muita memória. Mas, eu me desliguei de coletivos. Por quê? Porque a gente fazia as reuniões bebendo, fumando e cheirando. Quando a gente saía, sempre tinha alguém que falava: “vamos tomar uma?”. Ou você se desliga um pouco desse social que te leva a tanta dependência ou você faz o seu caminho muito mais difícil. Então, foi uma questão de saúde mesmo, uma escolha que eu tive que fazer. Saí do ativismo coletivo, mas me mantive de forma autônoma. (p.209)
P: É, mas em 90, vem o CFL. E você é uma das fundadoras.
M: Aí já era outra coisa. [...] Bom, aí nós colocamos o nome do nosso grupo de Coletivo de Feministas Lésbicas de São Paulo. Quando a gente foi registrar o grupo, uns quatro anos depois, foi muito engraçado. Por exemplo, o oficial lá do cartório de registro se recusou porque era a contra a moral e os bons costumes.
P: Em 90?!
M: É. Em 1994, em São Bernardo do Campo. (p.210)
Neste outro parágrafo abaixo também da tese da mexicana Norma Mogrovejo, Fernandes parte para a difamação e a calúnia simplesmente, aproveitando-se de uma carta que um punhado de levianas desumanas de um tal fórum feminista do Rio resolveu circular sobre uma suposta omissão de nomes num artigo que fiz para o boletim Um Outro Olhar número 9 a respeito da primeira década da organização lésbica brasileira (1979-1989: 10 anos de movimentação lésbica no Brasil (p.8-17). Aqui se nota que Fernandes se baseou em pura fofoca com a intenção de me desacreditar em sintonia com as levianas citadas que na verdade detestaram foi o conteúdo do artigo porque listava os percalços do GALF no movimento feminista. Detestaram sobretudo a minha conscientização de que não valia a pena estar nesse movimento e era mais producente partir para um movimento autônomo. Um movimento autônomo de lésbicas era uma heresia para elas naquele momento. Como não tinham como rebater o escrito com argumentos, resolveram partir para a baixaria.

Mas vamos desconstruir Fernandes e suas mentiras por partes. Disse a nefasta na “entrevista” à também antiética Mogrovejo que publicou semelhante coisa:
Num 8 de março, Miriam termina com Rosely e Rosely ficou com problemas psiquiátricos e cometeu suicídio.
Eu terminei meu relacionamento com Rosely em outubro de 1987, não num 8 de março. Separações não levam ninguém a ter problemas psiquiátricos que são transtornos do desenvolvimento e da neuroquímica do cérebro das pessoas. As únicas causas externas capazes de promover surtos psicóticos são o uso de drogas ou algum vírus que afete o cérebro do paciente, produzindo, por exemplo, a meningite.

Por outro lado, Rosely já estava se comportando de forma muito estranha antes de apresentar alucinações, vendo bruxas e coisas cintilantes inexistentes, durante o IV Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, em outubro de 1987, no México. Quando recebi as integrantes do ILIS (Serviço Internacional de Informação Lésbica) em meu apartamento, em setembro de 87, ela já começara a se comportar do nada de forma agressiva e não relacional. Ao chegar ao México, depois de mim, porque havia perdido a passagem, continuou nesse mesmo estado, o que me levou a dizer-lhe um “então, tá, a gente se separa”, considerando que não queria conversa comigo (isso no contexto de uma relação que já tinha um bom nível de desgaste). E ela não estava nem aí com o que falei. Após o surto de fato, as pessoas do encontro se mobilizaram para encontrar uma médica que prescreveu um antipsicótico para Rosely e disse que, quando de volta ao Brasil, ela precisava ser internada e afastada da militância. Quando a trouxe de volta a São Paulo, ela foi morar com a família, a quem avisei do acontecido, mas ninguém levou muito a sério o relato até que outros surtos acabaram por fazê-los cair na real. Segue a infame Fernandes:
Antes do suicídio, Rosely conta às feministas do Rio uma série de histórias de Miriam que deixam as feministas assustadas, não sabemos se eram verdadeiras ou não porque ela estava em tratamento psiquiátrico.
Em 2 anos e 10 meses, desde outubro de 1987 até agosto de 1990, Rosely teve 5 internações psiquiátricas. Quando surtada, dizia e fazia as coisas mais sem noção porque estava doente. E qualquer pessoa que não fosse cega podia perceber isso ao lidar com ela, ainda que houvesse divergências sobre seu diagnóstico preciso. Segue trecho de carta dela para mim, datada de 7 de março de 1990, quando estava internada no Instituto Bairral, em Itapira (SP). Ocultei o nome da feminista a quem ela se refere, pois nem sei se está viva ainda. Rosely se refere ao momento anterior a sua nova internação, em função de mais um de seus surtos. Transcrevo (original aqui):
Eu falei bobagens de você na casa da Vera. Aí estamos em família. Quando fui ao fórum feminista, acabei não entrando no fórum. Fiquei numa outra sala com a xxxx e outras poucas mulheres. Nesta ocasião eu falei que você e a Vera eram dois machões. E falei mais da Vera ou somente da Vera. Não falei de ti.
Uma das coisas que, no meu entender pode ter precipitado o suicídio de Rosely, além da doença em si, claro, foi ela ter ido parar no Rio de Janeiro, longe da família e de suas verdadeiras amigas. Quando estava em São Paulo, finalmente medicada, como insistia em militar, participou de algumas reuniões internas do GALF e mesmo se hospedou em meu apartamento um par de vezes. Morava com a irmã, mas a situação estava difícil porque a mana, também lésbica, vivia um fim de caso tumultuado que a presença de Rosely supostamente agravava. Nós chegamos a enviar uma carta para as associadas do GALF solicitando ajuda para uma possível hospedagem temporária de Rosely ou pedindo endereço de pensões para moças com contato para sua irmã Shirley. E teríamos conseguido alguma alternativa, se ela tivesse permanecido em SP.

Mas ela conheceu Vera, provavelmente via boletim Um Outro Olhar, e foi viver com ela no Rio. Infelizmente, contrariando ordens médicas de manter Rosely afastada da militância, Rosely foi parar em um fórum feminista local. Rosely chegou a se hospedar também na casa de uma dessas feministas. Quando soube da história, de imediato disse a Vera que aquilo ia dar merda. Rosely vivia saindo e entrando de surtos e, como relatei acima, dizia, quando fora de si, qualquer coisa que lhe viesse à cabeça, da namorada, de mim, do pai, de todas as pessoas mais próximas a ela. Quando voltava à terra, via medicação, reconhecia que tinha falado bobagens, como visto.

Claro que gente minimamente razoável não vai usar o que fala uma pessoa nessa condição para politicagem. Entretanto, leviandade é o que nunca faltou nesses ditos movimentos sociais tanto hoje quanto ontem. Na mesma roda de conversa paralela ao tal fórum, pregressa a uma de suas internações, onde admitiu ter dito bobagens (vide carta acima), Rosely também afirmou que não havia gostado do meu balanço da primeira década, publicado no boletim UOO 9, porque não a citava. Tratou-se de uma fala até banal perto do que costumava proferir, mas que só podia ser entendida dentro do contexto de sua doença, já que, nos vários históricos que fiz, desde o grupo lésbico-feminista, e principalmente no GALF, nunca citei ninguém, e ela nunca havia se incomodado. Aliás, ninguém nunca havia se incomodado porque raras tinham militado e mais raras ainda queriam aparecer publicamente como lésbicas.

Com a abulia, ou seja, a incapacidade para fazer as coisas, causada pela esquizofrenia, Rosely provavelmente temia que suas ações passadas desaparecessem também, já que não conseguia mais produzir. Muito improvável que isso acontecesse, porém, porque, mesmo que eu não tivesse preservado sua memória, fora uma figura pública e, cedo ou tarde, seria resgatada do limbo.

Aliás, quem de fato tentou metê-la no limbo, de 2003 até ontem, foram exatamente algumas das feministas da mesma turma que, no início de 1990, usou esse comentário banal dela como pretexto para me retaliar pelo retrato nada auspicioso que fiz da trajetória do GALF junto ao movimento feminista e por falar num movimento lésbico autônomo. Prova maior da desonestidade dessa carta, supostamente em protesto pelo apagamento de gente da história, foi exatamente toda a campanha que essa mesma turma fez contra o Dia do Orgulho Lésbico, lançado em abril de 2003, entre outras coisas, em homenagem à memória da Rosely Roth. Em agosto de 2006, eu dizia no texto Dia da visibilidade lésbica: 36 anos de uma história mal contada e sem registro.
No entanto, fica muito difícil para as promotoras do dia da visibilidade lésbica explicar por que elas não celebram a primeira manifestação de visibilidade lésbica ocorrida no Brasil em 1983. Fica difícil explicar por que não celebram a memória da ativista (Rosely Roth) que encarnou – como ninguém – o conceito que essas pessoas têm de visibilidade lésbica. Melhor apagar todos esses incômodos questionamentos apagando a lembrança do evento que os origina.
Voltando, numa carta-circular, assinada por gente minha desconhecida (só reconheci três das figuras), essas feministas (?), que nunca haviam levantado uma palha pelas lésbicas no MF, que inclusive viviam dando piti por nossa insistência na visibilização da questão lésbica no feminismo, resolveram me dar lição de moral (com que moral, né?) sobre uma suposta omissão de nomes de ativistas lésbicas (na verdade de comadres delas do ex-LF que submergiram no armário feminista), no balanço da década de 80 (1979-1989: 10 anos de movimentação lésbica no Brasil (p.8-17). A coisa é tão patética que elas citaram a Rosely, uma figura pública, ao lado de nomes de mulheres sem sobrenome que eu supostamente teria deixado de revelar, leviandade da qual Fernandes, que parece até vilã de história em quadrinhos de tão mau-caráter, vai se aproveitar no “relato” à mexicana Mogrovejo:
Em seguida, Miriam publicou um artigo em uma revista tentando resgatar a história do movimento lésbico e omitiu a participação de várias mulheres que foram fundamentais na história e que causou grande desconforto nas feministas do Rio de Janeiro que se sensibilizaram, dando apoio a Rosely e escreveram um artigo respondendo a Miriam que o movimento não foi feito apenas com sua participação e colocou o nome de todas no plural: que o movimento foi feito com muitas Marisas, muitas Roselys, Marias, Tecas e um repúdio a esse artigo foi feito.
Pelo que lembro, a maioria citada eu sequer soube quem era e das que presumi reconhecer só uma, Silvana, me pareceu ser Silvana Afram, fotógrafa do grupo lésbico-feminista, porque o nome não é tão comum. As outras que supus reconhecer citadas no plural foram, das Teresas, provavelmente a Teca, das Vilmas, a Monteiro? e das Marisas sabe-se lá quem (já que houve 4 Marisas no LF e das quatro apenas uma, a Fiori, não se meteu no clube das comadres feministas homossexuais do armário. Nunes, Sanematsu e Fernandes se meteram direitinho. Basta lembrar que Fernandes dizia não ser possível organizar lésbicas no Brasil em setembro de 1987).

Então, supondo que houvesse algo realmente de escuso em citar só fatos e nomes de grupos em históricos, de que adiantaria colocar o nome de Teresas, Vilmas, Marisas e mesmo Silvanas sem sobrenome? Como isso as identificaria? Quantas mulheres são conhecidas com esses prenomes? Vale lembrar que a maioria das lésbicas que escrevia no Chana usava só o prenome exatamente porque assim não seriam identificadas. Eu mesma só passei a usar meu segundo nome a partir do boletim Um Outro Olhar 3, embora, no estatuto do GALF, ele conste lá por completo. Então, as fulanas me cobraram citar nomes de pessoas que elas mesmas não se deram ao trabalho de individualizar? O mundo ainda deve o Guiness da cara-de-pau para essas senhoras, sendo delicada.

Mas, vamos, de qualquer forma, dar uma olhada a quantas andava a visibilidade da Fernandes e da Teca em 23 de junho de 1991 para conferir se haveria alguma sombra de razão na cartinha falaciosa. Na matéria abaixo, da Folha de São Paulo, publicada no boletim Um Outro Olhar, pode-se conferir que a Teca tinha entrado no armário de tal forma que nem o apelido ousava colocar publicamente. Apareceu só como T., e a opção pela invisibilidade está ali bem declarada. No caso da Fernandes, já revelando seu pendor para as falsas identidades, ela aparece como Marisa Gonzales e sua namorada, a Rosana Zaiden, como Rosa.


Pois, então, se Fernandes não se assumia publicamente em junho de 1991, como poderia estar reclamando de supostamente ter sido omitida num texto do final de 89?

Continuo com o final do depoimento infame.
Uma feminista de São Paulo me ligou para contar sobre o artigo do Rio e me pediu para falar com outras líderes para fazer outro artigo, eu não fiz isso, ninguém mais fez e Miriam começou a me odiar porque alguém disse a ela que eu tirei aquele artigo para um 8 de março e eu não fiz isso e agora ela me odeia e diz que eu não tinha participação na história do Movimento.
Bem, eu soube que tentaram passar a carta-palhaçada carioca aqui em São Paulo e que Fernandes participou da iniciativa, como citei no artigo sobre o vídeo Memória de Mulheres, mas nunca ouvi falar que alguém tivesse tentado fazer outro artigo em cima do que já era absurdo. Portanto, Fernandes tirou essa história de que eu a odiaria, por algo de que não tive conhecimento, do mesmo lugar que tirou a Gonzales com que apareceu na FSP. Aliás, essa história de ódio é mais com ela mesma, que o tem como combustível de sua vida medíocre. Idem para a história de que eu teria dito que ela não tinha tido participação na história do movimento. Ela inventou essa história como outra desculpa para atacar minha credibilidade como real ativista e historiadora orgânica do movimento a fim de poder contar suas mentiras impunemente.

Aqui em São Paulo, de fato, a cartinha leviana deu com a porta na cara. A única manifestação de um grupo feminista sobre a situação envolvendo a Rosely veio do Sexualidade e Saúde quando de sua morte. Foi uma carta de solidariedade a nós pelo falecimento dela porque, sim, quem havia perdido a companheira éramos nós. Aliás, esse coletivo foi o único que se comportou da forma que compreendo o que é ser feminista nessa história toda. Se não me falha a memória, foi por meio de uma de suas integrantes também que Rosely conseguiu ser internada no Instituto Bairral em Itapira, onde deveria ter ficado muito mais tempo.

As feministas da cartinha apenas acrescentaram mais estresse a uma situação que já era dramática por si só. Aliás, criaram mais estresse para a própria Rosely que nada teve a ver com a iniciativa, mas ficou mal comigo e com outras integrantes do GALF, já que usaram suas “bobagens” como pretexto para a carta. Nos seus últimos 5 meses no Rio, segundo me escreveu, a namorada inclusive não quis que ela as contatasse mais. Da mesma opinião eram as psiquiatra e terapeuta de Rosely, conforme ela relatou a Naná Mendonça, uma das integrantes do GALF/UOO à época. Transcrevo trecho da carta (original aqui):
Não estou conseguindo sair na rua sozinha. Vera me acompanha até o local do tratamento. Uma das minhas médicas disse para eu me afastar momentaneamente do feminismo e me concentrar unicamente no meu tratamento. Tenho uma médica que cuida dos medicamentos e outra que é psicoterapeuta. Eu preciso de sua amizade. Não estou bem! Não consigo fazer nada, tipo cozinhar, lavar roupa, etc. Vou me despedindo com um grande beijo para você. Não se esqueça de mim. Me escreva.
Concluindo a dissecação da tese-armação 1, o sórdido “relato” de Fernandes na tese da Mogrovejo, deveu-se à cisma patológica dessa mulher comigo somada ao desejo de retaliação por supostamente tê-la impedido e a Botassi de realizar o IV Encontro Lésbico Latino-americano e do Caribe em São Paulo. (Provavelmente, nunca soube que Botassi a chamava de a “louca”). E, claro, a falta de ética de uma “pesquisadora”, amiga de Botassi, que abriu espaço para pessoas serem difamadas e caluniadas em sua tese baseada em “história oral”.

Infelizmente, só fiquei sabendo dessa tese 9 anos depois de publicada, o que praticamente inviabilizou uma resposta à altura. Mesmo assim quem me enviou uma cópia da tese, a escritora Rita Colaço, me sugeriu que fizesse alguma coisa em 10 de abril de 2009. Disse ela (ver original aqui):
Míriam,
eu fiquei (e ainda estou) profundamente indignada. Me remoeu as vísceras, quando li algo de tamanha sordidez. Ainda mais agora, você me relatando que não deu nenhuma entrevista [sobre o que aparece na tese]. Imagino você, como não deve estar se sentindo.
Jamais toquei no assunto Rosely com você por respeito às presumíveis (em minha imaginação) dores que envolvem perdas, ainda mais em condições de suicídio. Não sabia que tinha tido um relacionamento com ela, apenas supunha. Inclusive imaginava que quando de seu falecimento (cujas circunstâncias somente sei isso que agora você comentou) vocês estivessem se relacionando. Nunca soube que ela morou no Rio, nem que aqui falecera...
Embora não tenha me pedido nenhuma opinião, afirmo que, caso queira, pode escrever à UNAM (universidade da Mogrovejo) fazendo a denúncia. Desculpe o meu envolvimento emocional, mas acho que essa moça bem que merecia um processo ético por parte de sua universidade, a fim de inclusive perder o título de doutora.
Quanto à entrevistada [Marisa Fernandes], bem, você sabe o que pode fazer. Seria interessante inclusive confrontar se, à época em que ela deu esta entrevista já cursava história... Abs,
Mas Colaço não foi de forma alguma, a única a já ter me aconselhado a tratar a “louca” pela via judicial, mesmo porque sua impunidade tem dado espaço a outras sórdidas como ela a repetirem seus feitos como se pode ver abaixo.

Dissecando a segunda tese-armação

Retornando ao tópico das teses-armação, como disse no início desse texto, dado o meu histórico de militância, passei a receber pedidos de entrevistas de pesquisadoras sobre meu ativismo e as publicações que produzi, em especial sobre o GALF e o Chanacomchana, desde os anos 2000. Embora tenha atendido a poucos desses pedidos, atendi as gurias que iriam fundar o tal de "Arquivo Lésbico Brasileiro", de fato um grupo de militância e não um acervo documental propriamente dito. Ao ler essas teses dessas gurias, como explanei na introdução, onde constavam entrevistas minhas entre outras, me deparei com estranhas especulações sobre a morte da Rosely Roth até chegar à tese de Carolina Maia (hoje se diz Caio), "Entre Armários e Caixas Postais", onde a figura resolveu concorrer com a Marisa Fernandes para ver quem poderia ser mais parasita e mau-caráter.

Para começar, essa guria, que fez uma tese inteiramente sobre o boletim Um Outro Olhar, me alugou para tirar cópias de todos os boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar (naquela época eles não estavam digitalizados), reclamou de ter que pagar pelo serviço, reclamou de ter me entrevistado por Skype, usou uma listagem minha de nomes de grupos e publicações como base para seu resgate da organização e imprensa lésbica e, como gratidão, resolveu atacar minha credibilidade em seu trabalho.

Tive que fazer muito esforço de memória para lembrar que foi a própria Carolina que me perguntou sobre a Rosely, o que me levou a citar o causo da cartinha das levianas desumanas, sobre quem discorri acima, que resolveram capitalizar a condição precária da moça a fim de “responder” pelas vias tortas ao balanço que fiz da primeira década da organização lésbica no Brasil (1979-1989: 10 anos de movimentação lésbica no Brasil (p.8-17). Carolina não me enviou nem o áudio da entrevista (até já requisitei) nem a própria tese que obtive por outras vias, o que é bastante compreensível considerando o que aprontou.

Sua tese se baseia nas redes formadas a partir dos textos publicados no boletim Um Outro Olhar, mas a carta leviana nunca apareceu em qualquer edição do periódico. Rosely havia me pedido, em março de 90, quando soube da minha intenção de responder às levianas, que não queria que as associadas da Rede soubessem de seus problemas de saúde e suas internações. Como não era possível falar do assunto sem tocar nesses tópicos, eu desisti de responder no boletim.

No editorial do boletim UOO 12, sobre a morte de Rosely, apenas citei de forma bem vaga “às lastimáveis oportunistas que infectam mesmo os movimentos alternativos”. Também falei da doença dela nos termos que minha ignorância à época permitia, dada à falta de informações acuradas sobre seu quadro e a incompetência de alguns que a trataram. De fato, ela não tinha problemas emocionais que a levaram a uma série de crises maníaco-depressivas, hoje chamada de bipolaridade, já que a bipolaridade não leva a surtos psicóticos, a não ser em casos muito graves, e não deriva de problemas emocionais. No número 10 do boletim UOO, na seção Cartas Na Mesa, também não consta a tal cartinha leviana nem resposta minha. Agora, gente com quem de fato fazíamos rede, várias leitoras e leitores, incluindo integrante do GGB, comentaram positivamente o artigo.


De fato, eu nem sei como o boletim UOO 9 foi parar no tal fórum feminista: talvez porque alguém do fórum tivesse comprado um exemplar ou porque a própria Rosely tivesse levado um para lá. O Um Outro Olhar era um boletim enviado fundamentalmente para as associadas do GALF, depois da Rede, que o bancavam com suas cotizações, e eram poucos os remetidos para grupos, por questões financeiras inclusive, e não lembro de o tal fórum feminista estar na lista da nossa mala-postal. As pessoas que o compunham, pelas assinaturas da cartinha leviana, me eram majoritariamente desconhecidas inclusive de nome. Na época, Vera chegou a me dizer que a iniciativa da carta partira de uma feminista que queria “aparecer” para a Rosely porque a estaria cortejando, e as demais embarcaram na onda. Seriam ainda mais levianas então, mas não compro muito essa ideia, embora não descarte o ingrediente por completo. Vera, por seu lado, parecia botar fé nessa história, pois proibiu Rosely de falar com a suposta cortejadora.

Ao que tudo indica, portanto, o boletim foi parar nesse tal fórum de forma excepcional, não porque esse espaço fizesse parte das redes que o boletim estabelecia, como inventou Carolina. As feministas da época eram, em geral, alienadas da organização lésbica que se formava. No máximo, tinham ouvido falar da Rosely, por ter sido figura pública, mas pouco ou nada sabiam do GALF, dos boletins CCC e UOO, muito menos dos grupos e publicações lésbicas da década de 80 que cito no balanço da década. Daí minha surpresa também, fora o conteúdo, por receber a tal carta vinda de um grupo de desconhecidas.

Não obstante essa realidade, para poder reproduzir as difamações de Fernandes, Carolina vai estabelecer uma suposta rede entre o boletim UOO e o tal fórum no sentido aí de rupturas por uma questão delicada. O trecho parece claramente enxertado na tese, destoando do conjunto do texto. Ela vai usar como gancho para essa inserção o que supostamente falei a respeito da Rosely (ver aqui). Supostamente porque não dá para assegurar que eu tenha dito exatamente o que publicou, pois se negou a me remeter o áudio, embora o trecho citado não destoe muito do que já disse sobre o assunto quando abordei o falso depoimento de Fernandes.

De fato, eu devo ter concedido entrevista para essa guria em 2016, já que a tese é de 2017, portanto, nem estava certa, após 26 anos, em que condições a Rosely havia dito que não gostara do texto. Resgatando algumas de suas cartas, bem como de sua namorada, para mim e Naná Mendonça, é que pude reconstruir melhor a história. De qualquer forma, como já disse, sua declaração só poderia ser entendida como fruto de sua doença (ela não tinha noção de contexto), pois nunca havia reclamado dos históricos do GALF anteriores, onde também não a citava.

Daí eu afirmar – e reafirmar agora – que aquelas levianas desumanas resolveram usar a fala de uma mulher àquelas alturas com 4 internações psiquiátricas nas costas como pretexto para fazer retaliações políticas contra a autora de um texto que não souberam contestar com argumentos (porque não os tinham). Quanto às outras supostamente apagadas da história, repetindo, as próprias levianas da carta não as individualizaram com seus sobrenomes, não podendo, portanto, cobrar algo que elas mesmas não fizeram. E elas não faziam porque todas estavam no armário. Exemplifiquei, com o recorte da FSP, que duas das citadas que supus identificar, a Teresa (provavelmente a Teca) e uma das Marisas (codinome Gonzales) não se assumiam em meados de 1991, imagine no final de 1989.

Cumpre, contudo, salientar que não há nada de escuso em se fazer um texto mesmo hoje citando apenas nomes de grupos e fatos, sobretudo em artigos de periódicos, como o meu balanço da organização lésbica da década de 1980. Como exemplo, cito o texto, sobre a imprensa lésbica brasileira, que a própria Carolina, agora como Caio (Caiolina) e suas parças do pseudo Arquivo Lésbico Brasileiro fizeram para o site Diadorim. O artigo intitulado Imprensa lésbica brasileira: 40 anos de existência e muito por fazer não cita o nome de nenhuma das produtoras dos boletins ou revistinhas que elas listam, embora soubessem bem o nome das realizadoras porque pesquisaram sobre o assunto. Não vou acusá-las, porém, de querer apagar gente da história, apesar de no meu caso quererem sim. Feio foi elas terem usado uma foto que ilustra um texto meu que nada tem a ver com imprensa lésbica, roubado pela larápia Fernandes, para encabeçar o artigo.

Vale lembrar também que, em várias teses ou livros sobre o movimento de gays e lésbicas do passado, como os trabalhos de João Silvério Trevisan, Edward MacRae e James Green, só há citação de nomes de grupos e fatos, mas nunca vi acusações de que teriam apagado gente da história por isso. Suspeito é quando se vê teses onde os autores, tomados pela paixão, citam uns e não outras, independentemente de seu papel histórico, ou, quando inventam falsos currículos de gente que sequer militava, por exemplo, na década de 80.

Voltando ao texto da Carolina. O boletim Um Outro Olhar, repetindo, não formava nenhuma teia relacional com o tal fórum feminista, e a maneira como o texto sobre a organização lésbica foi recebido por lá, de forma excepcional, não foi o que levou o GALF a se afastar do MF, processo iniciado em 1985 e que foi se expandindo até o final da década de 80, como bem descrito no balanço da década de 80 (1979-1989: 10 anos de movimentação lésbica no Brasil (p.8-17) e inclusive transcrito pela própria Carolina em sua linda tese. O afastamento se deu porque era contraproducente permanecer num movimento que não aceitava visibilizar a questão lésbica (então, né?) e frequentemente nos envolvia em altas baixarias.

O GALF em seus últimos anos já era um grupo bem distante do feminismo local, focado na construção de redes entre lésbicas e, por isso mesmo, gerador da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar. Ver no balanço da década, página 14.

A baixaria da cartinha das levianas desumanas foi só a gota d’água que reiterou nossa decisão, a cereja do bolo amargo e indigesto que comêramos por muito tempo. Para mim, a cartinha leviana – aí sim - significou uma ruptura inclusive com a identidade feminista, que embuti na palavra lésbica simplesmente, embora as reflexões teóricas ditas feministas tenham permanecido na minha lista de leituras. Curiosamente, hoje, feministas mesmo heterossexuais estão no exterior fazendo lives sobre sua saída da esquerda e do feminismo em função desse movimento ter abandonado os direitos das mulheres e os substituído por teorias pós-modernas que não interessam ao sexo feminino. E por causa dos ataques contra a liberdade de expressão das mulheres que ousam se opor à misoginia gritante dessas teorias.

Continuando, problema então é que Carolina, na produção de sua tese, a partir do meu comentário sobre a baixaria da circular, que ela mesma provocou, foi seguramente se consultar com Marisa Fernandes e – numa enoooorme coincidência – ao que tudo indica com uma das feministas que identifiquei entre as assinaturas da cartinha leviana, Maria Luiza Heilborn, integrante de sua banca inclusive. Que mundo pequeno esse, não?

Daí que, embora ao longo do texto tenha identificado várias vezes Fernandes como uma das fundadoras do LF e do Somos (05/79-06/81) e, posteriormente, na década de 90, do Coletivo de Feministas Lésbicas [2], consciente, portanto, de que ela não militara na década de 80, Carolina vai reproduzir a lorota da figura de que teria estado no GALF, em 1985, e teria presenciado o impacto da presença de Rosely no programa da Hebe: “milhões de lésbicas estavam vendo e recebemos milhares de cartas que diziam ‘não vou mais me matar, porque sei que não estou sozinha’, cartas emocionadíssimas. Todas foram respondidas”. Como disse, ao dissecar a tese-armação 1, todo o parágrafo, onde consta essa declaração, é pura mentira.

[2] Exemplos: 1) “Agradeço à Marisa Fernandes, uma das fundadoras do LF e, posteriormente, do Coletivo de Feministas Lésbicas, ambos de São Paulo, pelas informações fornecidas por e-mail”, p. 61; 2) “Marisa Fernandes, ativista que participou da criação do LF (e da elaboração da edição do Lampião que discutiu o “amor entre mulheres”, de maio de 1979) e do Coletivo de Feministas Lésbicas, fundado em 1990 em São Paulo”, p. 67; 3) Marisa Fernandes [...] que participou da criação do LF (e da escrita da matéria para o Lampião da Esquina) e atualmente integra o Coletivo de Feministas Lésbicas – CFL (p. 62).


Vai reproduzir também o restante do difamatório e calunioso depoimento de Fernandes à antiética Mogrovejo, onde ela fala que eu teria publicado um resgate da organização lésbica numa revista. Carolina sabia muito bem também que o resgate fora publicado no boletim Um Outro Olhar, mas referenda essa mentira mesmo assim. Igualmente reproduz o restante da falação infame, com um detalhe diferenciado, porém: onde Fernandes diz “Num 8 de março, Miriam termina com Rosely e Rosely ficou com problemas psiquiátricos e cometeu suicídio”, Carolina vai editar a frase retirando o “e cometeu suicídio”. Isso porque Fernandes, talvez até inadvertidamente, tenha confirmado que Rosely cometeu suicídio em função de seus problemas psiquiátricos, mas Carolina teve interesse de passar outra versão da história (p. 104).
Depois, com base no festival de mentiras de Fernandes, Carolina vai afirmar que mudara de opinião sobre o boletim ter sido o desencadeador da sequência de eventos que descrevera, embora fosse ele a resposta óbvia para a reação das tais do fórum. Vai dizer que sua opinião se baseara na minha memória que, por sua vez, se ancorava nesse histórico “talvez como forma, consciente ou não, de minimizar seu (meu) papel nos eventos que se seguiriam” (p. 105). Mas, primeiro, que sequência de eventos? A sequência de eventos dessa história se inicia exatamente com o texto do balanço da década de 80 (11/1989), 1979-1989: 10 anos de movimentação lésbica no Brasil (p.8-17), seguido da cartinha das levianas (de janeiro ou fevereiro de 90) falando da suposta omissão de suas comadres no meu texto que elas mesmas não identificaram, seguido do suicídio de Rosely em agosto de 90. Depois, tem-se um salto temporal de 5 anos, com o “relato” mitômano de Fernandes, em 1995, à mexicana Mogrovejo. Por fim, o meu conhecimento desse “relato” que é de 2009. E, por último, em 2016, a própria Carolina indo se inspirar em levianas e vigaristas para atacar moralmente a pessoa do qual sua tese é tributária da cabeça aos pés porque ser fdp pouca é bobagem.

Ao que tudo indica, Carolina, com o papo do “talvez como forma, consciente ou não, de minimizar seu (meu) papel nos eventos que se seguiriam” quis, primeiro, referendar a vigarice de que eu teria apagado gente invisível da história do movimento e, segundo, tendo retirado exatamente a parte do “depoimento” de Fernandes em que ela afirma ter Rosely se suicidado em função dos problemas psiquiátricos, dar a entender que eu teria responsabilidade na morte da moça por não tê-la citado num texto de boletim (sic.) Como disse, ela resolveu concorrer com Fernandes na corrida da parasitagem e da canalhice. Páreo duríssimo.

Seja como for, reproduzo trecho de uma carta enviada por Rosely, datada de 13/08/1990, que demonstra bem que ela tinha feito apenas um comentário de passagem sobre meu texto do boletim UOO 9, numa roda de conversa, capitalizado por gente leviana, que o texto do balanço da década não teve qualquer repercussão em sua vida e de que, de fato, ela é que estava preocupada com o efeito da cartinha leviana em nosso relacionamento. Transcrevo para facilitar a leitura (original aqui):
Continuo com dificuldades para fazer as coisas. Quanto a sua mágoa pelo abaixo-assinado, vê se esquece. A única coisa que fiz numa reunião paralela ao fórum feminista, foi dizer que não gostei do texto. Foi só isto que fiz e não foi no fórum, mas numa reunião paralela.
Quero ser sua amiga, manter um intercâmbio por carta, portanto é importante que você me responda o mais breve possível. Se telefonar é caro, o jeito é a troca de cartas para não perder o contato.
Gostaria de saber o que você faz no seu dia a dia e nos fins de semana. Há quanto tempo está casada novamente. Sinto saudade dos 6 anos em que convivemos juntas, por mais difícil que tenha sido a vida, foram meus anos mais produtivos. Te gosto muito. Por favor, escreva. Mande um abraço para a Luiza. Com carinho. Rosely Roth.
Não havia internet na época, nem e-mails, Whatsapp, redes sociais, etc. Telefone era investimento, e um telefonema interurbano bem caro, dinheiro que eu não tinha. Então, ou ela e a Vera me ligavam ou a gente se escrevia. Mas eu dei um breve telefonema para ela no dia de seu aniversário, 21/08. Uma semana depois, sua namorada me ligou para me pedir ajuda a fim de acalmar Rosely que já havia tentado se matar. Falei com ela que, entre falas lúcidas e outras delirantes, disse que não queria mais viver do jeito que vivia. De qualquer forma, o suicídio pode ter ocorrido apenas em função do novo surto. E eu nem pude dizer adeus a ela, já que, além da falta de dinheiro, conseguir ir ao Rio e me deparar com as asquerosas da cartinha leviana poderia implicar mais de um funeral.

Por fim, numa tese coalhada de citações de outros autores (muleta para pensamento manco), a Carolina vai assumir seu real objetivo que é questionar minha credibilidade inclusive sobre meu próprio trabalho, particularmente aliás (sic):
Estes tópicos devem ser retomados num próximo esforço de pesquisa para pensar a atuação de Miriam Martinho enquanto uma das “historiadoras orgânicas” do movimento lésbico brasileiro (particularmente na documentação dos grupos de que fez parte e das redes em que estes se inseriram), bem como para discutir as disputas acerca da construção desta memória – das quais o episódio que narro aqui faz parte.
Em outras palavras, o que Fernandes tentou fazer indiretamente divulgando a história falaciosa de que ela (codinome Gonzales) e outras de suas comadres enrustidas haviam sido apagadas da História, ou seja, atacar a minha credibilidade, Carolina vai fazer explicitamente. Aliás, no meio da chatice do excesso de citações da tese, tive a impressão de que a moça se ressente do fato de eu ser memorialista (sou mesmo) e historiadora orgânica do movimento porque as circunstâncias de décadas de ativismo me colocaram nesta situação. Traduzo essa espécie de dor-de-cotovelo dentro do contexto da tentativa dela e de suas compas & parças de reescreverem a história do movimento com “relatos” como os da Fernandes, ou seja, em cima de um monte de mentiras.

Resumindo esse capítulo do novelão da armação, tópico teses-armação, na tese-armação 1, da antiética Mogrovejo, pois permitiu difamações e calúnias em seu trabalho, o “relato” de Fernandes se deveu à cisma patológica dessa mulher comigo somada ao desejo de retaliação por supostamente tê-la impedido e a comadre Botassi de realizar o IV Encontro Lésbico Latino-americano e do Caribe em São Paulo. É o que decorre da sequência de eventos da época.

No caso da tal Carolina Maia (fora a também completa falta de ética, claro), com quem não tive qualquer conflito, aliás, nem sei quem é, o objetivo se trata obviamente de minar minha credibilidade como relatora do meu próprio trabalho inclusive diante de outras possíveis pesquisadoras (sou citada em várias teses). Seguramente foi influenciada por Fernandes durante a feitura da tese e possivelmente de uma das integrantes de sua banca, Maria Luiza Heilborn, uma das três assinaturas que reconheci entre as assinaturas da cartinha das levianas do Rio. Mesmo assim, é preciso imaginar mais coisas para alguém ser tão escrota gratuitamente contra uma pessoa que propiciou o trabalho que lhe rendeu uma tese, não? Pelo visto, seu texto já se incluía nesse projeto maior de sequestro das minhas atuações e publicações tão valiosas que excitaram uma súcia de ladrões.

Dissecando o sequestro da memória de Rosely Roth

Como disse anteriormente, ao passar a ler as teses de integrantes do pseudo Arquivo Lésbico Brasileiro, no início de 2021, eu estranhei as especulações sobre a morte da Rosely, sobretudo quando observei as integrantes da organização próximas da nefasta Marisa Fernandes. Por que alguém estaria fazendo especulações sobre a morte de uma pessoa que se suicidara há 30 anos? Após finalmente ler a tese de Carolina Maia, o estranhamento deu lugar ao espanto, ao me deparar com a reprodução do suposto “relato” de Fernandes, de 1995, um amontoado de mentiras sórdidas, com vistas a atacar minha credibilidade. Tudo indicava, então, que também estavam (estão) tentando reescrever as causas da morte de Rosely, revelando, além de tudo, ser ignorantes e preconceituosas.

No final da década de 80, nós não tínhamos internet para consultar o oráculo do google onde encontrar informações sobre os sintomas da Rosely e dirimir dúvidas sobre os diagnósticos apresentados. Ela foi diagnosticada com esquizofrenia de cara, mas também foi levantada a possibilidade de bipolaridade (como se diz hoje) e de meros problemas emocionais, embora ninguém negasse seus surtos. Para nós, leigos, restava muita confusão só dissipada anos depois do suicídio da moça com o advento da Internet e mais informações sobre as doenças psiquiátricas.

Para mim, há quase duas décadas, deixou de haver qualquer dúvida sobre o diagnóstico de esquizofrenia de Rosely porque os sintomas que tinha se encaixavam inteiramente nos da doença. O diagnóstico absurdo era o dos tais problemas emocionais, pois estes são provocam surtos, como depois fiquei sabendo. Surtos psicóticos são provocados por distúrbios cerebrais e só um médico psiquiatra tem condições de, a partir de exames clínicos e outros, fechar um diagnóstico sobre cada caso e prescrever medicações. Uma pessoa em surto se torna um perigo para si mesma (pode se mutilar ou se suicidar), e para os outros (pode até matar alguém). Corretamente medicada, porém, pessoas portadoras da doença estão conseguindo, cada vez mais, levar uma vida praticamente normal, algo impossível de se pensar até há pouco tempo.

Os casos mais graves da bipolaridade também podem provocar surtos, mas, segundo psiquiatras, não apresentam os sintomas negativos da esquizofrenia como a abulia. Rosely tinha também os sintomas negativos da doença, como se pode constatar por suas cartas, embora não haja como saber o subtipo e o grau de sua enfermidade. Ela era tratada por psiquiatras exatamente porque seu problema era psiquiátrico, não emocional. Para problemas emocionais, bastam psicólogos, entre outros tipos de ajuda. E ter pudores para falar de sua esquizofrenia, atualmente, vai na contramão de tudo que se prega para combater o estigma relacionado à doença e ajudar os pacientes a se aceitarem e conseguirem administrar seus desafios. Todas as doenças graves, o câncer, a AIDS, por exemplo, perderam bastante do seu impacto quando passaram a ser encaradas de frente e discutidas abertamente. Com a esquizofrenia é a mesma coisa. Escrevi sobre o tema extensivamente no texto Rosely Roth: ouçam nossas vozes no dia mundial da pessoa com esquizofrenia

Sobre o sequestro político da imagem de Rosely, vale dizer que ela era libertária e autonomista em oposição aos que queriam desde o início do movimento homossexual atrelá-lo à esquerda ortodoxa e seus partidos. Os mesmos, aliás, que agora querem a fórceps meter seu trabalho numa suposta luta contra a ditadura militar. E querem também colocá-la como pioneira do movimento LGBTQI+, esquecendo-se que as denominações adotadas pela luta pelos direitos homossexuais, ao longo das décadas, também têm uma história particular que precisa ser preservada. Fora que, no espírito e nas demandas, existem poucas semelhanças entre o MHB e o movimento atual.

freepic.com
Dissecando as tentativas de sequestro do Chanacomchana

Um pouco depois, no final de maio, comecei a me dar conta de outra parte do novelão da armação relativa ao ChanacomChana em particular. Recebi pedido, da editora Companhia das Letras, para autorizar a reprodução de capas do Chanacomchana, no livro do escritor Renan Quinalha, intitulado "Contra a moral e os bons costumes". Esse autor, que trabalhou na comissão da verdade, já havia me contatado em 2018, por ter lido a tese de Patrícia Lessa sobre meu trabalho, para entrevista em vídeo a respeito do Chanacomchana e a ditadura militar (homossexualidade e ditadura são seu filão literário). Declinei do convite por não concordar com a tese de que os militares tenham tido política de estado contra homossexuais durante o regime autoritário e pelo Chana nada ter a ver com resistência à ditadura.

Entretanto, sem minha autorização para usar os Chanas, em 2018, Quinalha contatou então sua compa & parça, Marisa Fernandes, a quem chamou de editora do Chana (sic) no vídeo citado porque já haviam “trabalhado” juntos na encenação da peça Apocalipse Zumbi de Gays e Lésbicas durante a ditadura militar. Um conhecido me denunciou a farsa e me remeti ao pessoal do vídeo exigindo a correção do desplante. Vieram com a conversa mole de que tinha ocorrido um “engano” da produção, do tipo de “engano” que vêm se repetindo em outras circunstâncias, mas venho desfazendo aos poucos. Em 2021, Quinalha voltou então à carga querendo ilustrar, com o Chana, sua história de repressão aos grupos LGBT no período militar, supostamente ocorrida “com ataques, tortura, censura, violência em todos os níveis […] e a perseguição e censura aos seus meios de comunicação (livros, jornais, revistas, zines), espaços de convivência (bares, boates), etc.” Respondi o seguinte para o contato da Cia das Letras:
Bem, não concordo - outros ativistas também não - com essa tese do Quinalha nem no que se refere ao período do AI-5 (1968-78), o período ditatorial propriamente dito do regime militar que não foi um todo homogêneo. (Há tantos outros ângulos a partir dos quais ver esse período além da narrativa hiperdimensionada da ditadura que vem sendo contada). A opressão de gays e lésbicas no período da ditadura se deveu ao forte preconceito da sociedade em geral contra a homossexualidade e à marginalidade e à falta de cidadania de gays e lésbicas comuns a gays e lésbicas em todas as democracias ocidentais. Aliás, até pior em alguns países democráticos. Posteriormente, abordarei esse tema com mais detalhes no tópico sobre o contexto do início do movimento homossexual.

Imagine então se teria sentido essa conversa para o período de produção do Chana que é da redemocratização, no final de 1982, às vésperas das Diretas Já e do retorno do poder aos civis. O pessoal do Lampião da Esquina, que surge em 78, ainda foi de fato vitimado por um inquérito policial, que durou 12 meses, terminando o jornal, porém, por questões internas em meados de 1981. Os editores, portanto, tinham de fato algo a contar em termos de repressão de parte do sistema. Agora, eu não, nem ninguém que atuou no GALF ou colaborou com o Chana, organização e publicação da época da abertura. Aliás, se tivesse ocorrido algo nesse sentido, eu teria sido a primeira a ter problemas porque já havia sido fichada no episódio da invasão da PUC-SP pelo coronel Erasmo Dias (22/09/1977). As mulheres não se identificavam no periódico pelo medo da lesbofobia da sociedade brasileira, não da ditadura, sentimento que só vai começar a amainar na década de 90. E isso inclusive no exterior, basta lembrar o impacto do coming out da Ellen Degeneres na TV americana (04/1997).

Não obstante, porém, eu ter deixado claro que nunca houve qualquer repressão ao GALF ou ao Chana, na apresentação do livro em e-book, no site da Amazon, como constatei recentemente, lê-se:
Além de revelar a sistematização da violência em todos os níveis — perseguição e censura a veículos como Lampião e Chana com Chana, fechamento dos pontos de encontro da comunidade, prisões, espancamentos, tortura —, Quinalha demonstra como um movimento social tão jovem como o LGBT conseguiu não apenas sobreviver, mas trilhar um caminho de conquistas de direitos fundamentais.
Então, além de torturar os fatos para eles confessarem o que ele quer ouvir, Quinalha quer torturar o trabalho alheio para encaixá-lo em sua narrativa ideológica. Eu teria que mentir sobre o meu próprio trabalho para endossar as distorções históricas de um ideólogo travestido de pesquisador. Também nunca ouvi falar que algum(a) ativista gay ou lésbica do período tivesse tido problemas com os militares. Aliás, no tópico final deste texto, transcrevo a opinião da Facção da Convergência Socialista, de 1981, à guisa de comparação com essa falácia.

E, claro, ele vai permear o texto com várias referências à ativista de aluguel, sua compa & parça Fernandes, que interpretou a lutadora contra a ditadura na historinha “lésbicas e ditadura militar”, do livro “Ditadura e homossexualidades”. Pela abordagem usurpadora dada ao Chana, a busca da verdade passou ao largo dos textos desse autor. Também por essa razão, ele próprio demonstrou que sua tese não é apenas discutível, mas também insustentável. No que diz respeito a Fernandes, a título de gozação, um colega do movimento, que também sabe o quanto Fernandes é mitômana, me enviou não lembro se fotos ou vídeo dela recebendo até prêmio por uma suposta luta contra a ditadura, se não me falha a memória do Jean Wyllys (ao final do texto retomo as falsas identidades da Fernandes).

Para meu grande azar, convivi com Fernandes exatamente no período do AI-5, e, claro, ela nunca moveu uma palha sequer contra a ditadura militar, a não ser participar de algumas manifestações estudantis de protesto contra o regime. Fernandes era uma típica jovem daquele período, de predomínio da mentalidade contracultural, e sua preocupação, como a maioria de nossa geração, era fundamentalmente com sexo, drogas e rock’n’roll. Aliás, ela muito mais do que eu que nunca fui viver em casinhas comunitárias ripongas em montanhas e riachos. Outra razão de seus problemas comigo é que sei muito bem o que ela fez em verãos passados.

Entretanto, a constatação de que, a despeito da verdade sobre o Chana, Quinalha havia preferido mentir sobre o periódico foi recente. Em 2021, tive outros espantos a respeito do mau uso da minha publicação. Em 24 de maio, recebi pedido do Acervo Bajubá para autorizar a venda de capa do Chanacomchana 4 para uma campanha da AMBEV. Estava acabando de lhes dizer que tinha liberado o Chana nesse acervo apenas para consulta porque eu ainda não o havia digitalizado, por uma série de problemas com os originais, e a campanha já estava no ar com a imagem do Chana. Acabamos nos entendendo e, com informação do contato da AMBEV pelo Acervo, fechei o licenciamento da capa do Chana com o pessoal da própria associação via a produtora dos vídeos da campanha.

Pouco depois, no início de julho, tendo em vista as especulações sobre a morte da Rosely, percebidas nas teses de integrantes do ALB, e especialmente a abordagem difamatória e caluniosa da integrante Carolina Maia, em sua tese sobre meus boletins Um Outro Olhar, resolvi solicitar a exclusão das publicações de minha produção no citado acervo (CCC, UOO, Revista UOO). No mínimo, precisa haver respeito pelos produtores dos materiais que um acervo deveria preservar apenas para consulta não para usos ideológicos inclusive incompatíveis com a realidade histórica das obras.

Confirmando sua má-fé e sua intenção de se apropriar de trabalho alheio, as figurinhas carimbadas tiveram o desplante de solicitar o que seria estritamente de minha autoria no meu trabalho, demonstrando desconhecer ou fingindo desconhecer a lei autoral do país. Constitui então uma advogada especializada em direito autoral para esclarecê-las sobre o assunto e confirmar minha solicitação de retirada do material do acervo virtual desse “arquivo”.

A advogada lhes esclareceu que os direitos autorais sobre o conjunto das obras coletivas, segundo o parágrafo 2 do Artigo 17 da Lei nº 9.610 (a lei de direitos autorais), é dos seus organizadores, ainda que assegurada a proteção às participações individuais (§ 2º Cabe ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra coletiva). Trocando em miúdos, os direitos autorais sobre o ChanacomChana e Um Outro Olhar (boletim e revista) são meus que os organizei. As participações individuais estão protegidas no sentido de que suas autoras podem reproduzir suas colaborações em outros locais, como, aliás, sempre aconteceu. E vice-versa. Algumas contribuições ao Chana e ao Um Outro Olhar já haviam sido publicadas em outra mídia.

Agora, eu fui bem mais do que só organizadora dos Chanas e Um Outro Olhar. Fui produtora deles da concepção (conteúdo, seções) à confecção (pois era um produto artesanal), editora, revisora, tradutora, diagramadora, sem falar nas contribuições como autora. Se se fosse retirar minha participação desses periódicos, eles simplesmente deixariam de existir enquanto tais. E as figuras do ALB sabem bem disso, como registrado na tese da Paula Silveira sobre a imprensa lésbica que já citei acima. Entrevistando Célia Miliauskas, que participou do GALF do final de 1982 ao final de 1984, Paula pergunta sobre o Chanacomchana:
P: Sim. Mas aí, depois, como ficava quando vocês decidiam as pautas? Míriam editava… Quem fazia cada uma das tarefas?
C: Pois é. Durante muito tempo, Míriam editava sim. (p. 180)
Eu produzi e editei todas as publicações dos grupos dos quais fui cofundadora, com exceção do Lésbico-Feminista (o Chanacomchana tabloide não é produção minha. Nele estou só como colaboradora). Resumindo, as figuras da ALB recuaram de seu assalto diante da notificação da advogada, mas demonstrando que não respeitam a lei (não se estranha), posteriormente, publicaram matéria sobre seu acervo, na Folha de SP, com imagens das minhas publicações. Receberam então nova notificação solicitando que fosse colocada nota de esclarecimento na matéria informando que não tinham autorização de uso do material. A autora da matéria, amiga delas, colocou uma nota dizendo que eu “alegava” ser proprietária e titular dos direitos autorais das publicações "ChanacomChana" e "Um Outro Olhar”. Mais uma prova de sua propensão ao sequestro de bens alheios. Há que se ter cuidado com a carteira e o celular ao cruzar com elas.

Aliás, a mais recente picaretagem da turminha é sair dizendo que eu fui uma das editoras do Chana ou a principal, segundo me disseram, inclusive usando matéria de jornal em que a Rosely aparece como editora do Chana a fim de referendar mais essa mentira cujo propósito já apontei neste texto. Rosely era porta-voz do GALF e divulgadora também do Chana. Onde ia levava um exemplar do boletim, por isso deve ter sido inadvertidamente referenciada como editora, atividade que nunca foi sua praia. Aliás, todos os textos da Rosely nos Chanas foram editados por mim. Também o Chana não tinha expediente, com o nome integral de suas produtora e colaboradoras, o que facilita a má-fé dessas fulanas. E ninguém mais do GALF tinha formação ou interesse em fazer esse tipo de trabalho custoso e não remunerado. 

Retomando, aproveitei a constituição da advogada a fim de enviar também uma notificação para o Acervo Bajubá ratificando que os Chanas deveriam ser disponibilizados apenas para registro e consulta, devendo a organização se abster de autorizar, fazer a gestão e fixar preço sobre qualquer item da coleção “ChanacomChana”. Obtive outra resposta positiva da organização a essa notificação na ocasião.

Não obstante, no começo de outubro, fui abordada por outro pessoal que ia fazer a exposição 'Memória da Resistência - Elas vão às ruas', faltando 6 dias para a realização do evento. Para me indicar as imagens que queriam utilizar tanto do Chana quanto de dois desenhos meus, apresentaram uma planilha de imagens do Acervo Bajubá (sic), embora dissessem que as teriam obtido do Centro de Documentação Prof. Dr. Luiz Mott - CEDOC/ LGBTI+. Em suma, uma grande confusão de informações, quanto aos termos do licenciamento, o propósito da exposição, tudo a toque de caixa para eu bater carimbo de autorizo em imagens péssimas. Tomei então a decisão de só licenciar imagens que eu mesma aprove ou forneça, por uma questão de qualidade e de contexto, a partir de condições de uso bem claras.

Vale destacar aqui, no geral dessa história sobre o Chana, a estranheza quanto à forma desses institutos de memória LGBT lidarem com publicações que têm direitos autorais, pois na própria internet se acha sem grande esforço publicações específicas orientando como agir nesses casos. A FGV, a exemplo, produziu um manual sobre direito autoral para museus, arquivos e bibliotecas relativamente recente. Instituições de memória não podem autorizar o uso de publicações protegidas por direitos autorais que pertencem aos seus organizadores, autores ou sucessores, sendo deles o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra (arts. 28 e 29 da LDA). Os acervos LGBT abrem esse tipo de empreendimento sem consultar a lei de direitos autorais?
Foi a primeira vez que me sentei com advogados, a despeito do constrangimento, para defender meu patrimônio intelectual não da direita conservadora, fascista, homofóbica, blá-blá-blá, mas sim de quem deveria estar aí respeitando e preservando esse trabalho. E, claro, dada à espantosa postura dessa gente, percebi igualmente a necessidade da manutenção dessa assessoria e de outras ações a serem tomadas na mesma perspectiva. Espantosa também é a decadência de um movimento que já foi um sonho e da área de humanidades que hoje forma sobretudo militantes e ideólogos não pesquisadores de fato. Picareta acadêmico é o pior tipo de picareta, pois usa título acadêmico para dar selo de autoridade às suas mentiras.
Aliás, antes que me esqueça, se precisam tanto de uma publicação lésbica para incluir no conto da grande repressão e perseguição a gays e lésbicas mesmo sob a redemocratização, sugiro que contratem um bom designer gráfico para fazer uma versão retrô de boletim lésbico. Hoje há fontes que imitam perfeitamente a tipografia das antigas máquinas de escrever, filtros vintage para dar impressão de algo antigo. Para completar o boletim fake, coloquem a Marisa Fernandes como editora. Escrevam o monte de mentiras costumeiras e façam a rotina nazistófila de repeti-las mil vezes até transformá-las em "verdade".

Attilio Mussino, ©Bridgeman Images 
Dissecando as tentativas de sequestro do Dia do Orgulho Lésbico

Além de ataques difamatórios e caluniosos a minha pessoa, tentativas de reescritura da vida e da morte da Rosely e de sequestro do Chanacomchana, ainda houve, (há) nesse grande novelão da armação, as tentativas de usurpação do dia 19 de agosto, o dia do orgulho lésbico, por gente que inclusive no passado tentou apagá-lo da História bem como a memória da Rosely.

A indefectível Fernandes, por exemplo, na época do lançamento do dia do orgulho em abril de 2003, seguido de intensa campanha contrária das nada democráticas criadoras do dia da visibilidade, saiu dizendo que era mórbido lembrar de mulheres que se suicidaram (como Rosely) e que era preciso “criar” datas mais “alegres” para celebrar, como o dia da visibilidade lésbica. Hoje, com sua visceral hipocrisia, Fernandes anda dizendo que admira a Rosely. Ela e suas compas e parças celebrando a memória da Rosely equivale a, guardadas as devidas proporções, neonazistas celebrando a memória das vítimas do Holocausto. Você pode passar quase duas décadas combatendo algo para depois dizer que admira quem tentou destruir?

Pergunta meramente retórica, já que todo mundo sabe que não, todo mundo que tem um pouco de decência pelo menos. O fato é que o Dia do Orgulho Lésbico, que tanto combateram, voltou à tona bem como o interesse pela década de 80 e as publicações da época, em particular o Chanacomchana.

E esse pessoal tem um modus operandi que não muda há mais de 40 anos. Primeiro tentam destruir o que não lhes convêm. Depois, quando não obtêm sucesso, e o que tentaram eliminar sobrevive e ganha evidência, tentam oportunisticamente se apoderar do que tentaram destruir. Foi assim com o Grupo Lésbico-Feminista que submergiram no armário feminista na década de 80 porque não era conveniente para as ditas feministas homossexuais a visibilização da questão lésbica no movimento feminista de então. Quando a causa gay e lésbica, nos anos 2000, tomou as ruas e as mídias, elas resolveram pegar carona na luta e viraram paladinas da visibilidade lésbica que combateram ou negligenciaram por quase 20 anos. Quando o dia do orgulho foi lançado em 2003, ele não convinha às bonitas da visibilidade lésbica, que o viam como uma concorrência, e as ditas feministas homossexuais o atacaram de todas as formas enquanto cooptavam o incipiente movimento lésbico autônomo do período a ponto de, depois disso, se ver grupos feministas organizando SENALES e caminhadas lésbicas. Ver meu artigo Orgulho Lésbico: o happening político do Ferro’s Bar.

E, agora, repetindo o mesmo ciclo, tentam sequestrar a história do GALF, do Chana, do dia do orgulho, da Rosely, para seu projeto de reescritura da História, onde personagens, produções e eventos das vésperas do retorno à democracia meia-boca que temos até hoje figurariam como história das lésbicas sob a ditadura, com suas compas e parças a dar “depoimentos” sobre o que de fato não viveram e não fizeram. Fernandes deu cria a outras mentalidades reptilianas como a dela.

Sobre o dia do orgulho lésbico, a exemplo, um grupo de gurias, em julho de 2021, me abordou para entrevista sobre a manifestação do Ferro’s, que chamaram de levante, dizendo que seria para seu trabalho de conclusão de curso de Jornalismo da ESPM-SP. Concedi a entrevista em 12 de agosto, mas achei muito estranho, quando conversamos, o aparente desconhecimento delas sobre o assunto que diziam estar pesquisando desde 2020. Algumas nem se identificavam como lésbicas, o que aumentou meu estranhamento sobre as entrevistas que serviriam para fazer cinco podcasts. Inclusive, considerando que só conseguiram, do GALF, fazer entrevistas comigo e a Elisete Neres (logo depois ela faleceria), restava saber a quem mais estariam entrevistando. Deixei claro que não queria ver meu depoimento misturado com conversa mole de gente que não estivera no evento e pedi que me avisassem quando o tal projeto estivesse no ar.

Nem respeitaram o meu pedido de não ter minha entrevista misturada com as das mitômanas de plantão nem, claro, me informaram sobre o lançamento do tal “projeto”. Quando o encontrei na Internet, vi que minhas suspeitas sobre a falta de ética das gurias eram procedentes. Com um eixo temático de contar a “verdadeira história do Stonewall brasileiro” (sic), as bonitas misturaram meu depoimento e o de Elisete Neres com os de gente que sequer foi contemporânea do GALF ou do Chana, várias do Rio de Janeiro inclusive. Uma nem era nascida na época da manifestação. Sob a desculpa de estar dando espaço para a pluralidade de discursos das mulheres em relação à manifestação (no suposto contexto político em que dizem que ela ocorreu), visaram exatamente o oposto: roubar protagonismo e distorcer a história do evento.

Até a Angela Ro Ro virou ativista lésbica nesse circo, só porque ela conta nesse “projeto” uma história de violência que teria sofrido da polícia na época da ditadura. Entretanto, na entrevista que concedeu ao tabloide Chanacomchana 0 (documento de época, portanto), Ro Ro afirma, ao ser perguntada se se assumia como lésbica (p. 2):
Angela - [...] eu não me disse lésbica hora nenhuma. Não me envolvam, eu me envolvo. Não é preconceito, sabe, com esta palavra. Eu acho que vocês têm uma motivação para estarem usando este termo. Mas acho esta motivação fraca porque é vulnerável. No momento pode funcionar, espero que funcione, mas realmente eu usaria outros – mulher, pessoa, ser humano.
Perguntada sobre o Movimento Lésbico, respondeu:
Grupo – Como você vê o Movimento Lésbico?
Angela – Eu nem sabia que existia um movimento lésbico. Desejo boa sorte. É estranho, mas é válido. Estranho porque [...] o que eu faço na cama é o que eu gosto. Se eu vou para a cama com rapazes, com moças, com gatos ou cachorros, cabe apenas a mim e a pessoa que me acompanha nesta jornada de delícias. [não dá para ser usado a título de movimento].
Ro Ro desfilou nessas falas um discurso muito comum à época entre artistas e intelectuais de não assumir uma identidade homossexual para evitar supostos rótulos que restringiriam as possibilidades da sexualidade humana. Diziam inclusive que quem aceitava rótulo era garrafa. Ela nunca foi ativista. Também não deixa de ser curioso observar o contraste entre o depoimento cool, descolado de Ro Ro na entrevista ao Chana 0, do período da abertura do regime militar, com o relato de uma intensa repressão policial que teria sofrido então, dado às figurinhas do podcast. Na última parte desse texto sobre essa armação ilimitada, quando falarei da ditadura militar, vou acrescentar outro depoimento da Angela Ro Ro à guisa de comparação.

Outras cariocas que aparecem falando de uma manifestação paulistana de uma época na qual não militavam, foram Virginia Figueiredo, que surge no ativismo na década de 90, e Camila Marins, editora da revista Brejeiras que nasceu em 1984 e o que sabe sobre o período de existência do GALF e do regime militar aprendeu com as compas mais velhas e os famosos professores de “história” das escolas brasileiras que encheram os cérebros das gerações posteriores a 1984 com toneladas de groselha mistificadora.

Das paulistanas, falaram também Alice de Oliveira e Angélica Lemos. Angélica Lemos fez um vídeo, com imagens do Ferro’s Bar, em torno de minha música com Gisele Fink, a Fanchitude de Fancha. O vídeo é de 1989, mas só fiquei sabendo do mesmo em 1998. E, quando soube do vídeo, com música minha que não pediram autorização para usar, Lemos me deu canseira para fornecer uma cópia dele. Como a maioria das feministas homossexuais da época, Lemos não teve ativismo especificamente lésbico na década de 80 nem esteve na manifestação do Ferro’s Bar. (Aliás, no vídeo, o nome das autoras da música não é registrado integralmente porque na época (89) as pessoas não se assumiam).


Alice de Oliveira também não teve. Fez parte do grupo Somos-SP, grupo misto de gays e lésbicas, mas não do LF. Destacou-se exatamente por não querer deixar esse grupo para se juntar ao Lésbico-Feminista, quando o LF tentou sem sucesso convencer as lésbicas remanescentes do Somos a aderir ao grupo exclusivo de lésbicas no dia do racha do Somos, 17 de maio de 1980. Como relatei anteriormente, na dissecação da tese-armação 1, sobre a tentativa de organização do IV Encontro Lésbico-Feminista e do Caribe, em 1993, nessa ocasião Alice veio me dizer que reconhecia, passados 13 anos, como disse anteriormente, que o Lésbico-Feminista estava certo ao querer a separação do Somos porque os gays eram sexistas, machistas, blá-blá-blá. Tentava nos fazer desistir da organização do VII EBLHO. Nesse podcast e em perfil do pseudo arquivo lésbico brasileiro (para ver como se trata de uma armação conectada), ela aparece agora se dizendo fundadora do Lésbico-Feminista (LF), do Terra Maria e inclusive organizadora do VII EBLHO (sic). Utiliza a mesma estratégia de sua compa & parsa Marisa Fernandes que sempre falou na segunda pessoa do plural, o “nós”, para fingir participação em grupos e eventos nos quais nunca esteve de fato. Com o fim do Somos, em 1983, Oliveira também migrou para o clube das comadres feministas homossexuais. Lembro de tê-la visto numa oficina que o GALF realizou num encontro feminista em Petrópolis.

Em 19 de agosto de 2021, também recebi pedido de entrevista de uma produtora de audiovisuais igualmente fazendo entrevistas sobre a manifestação do Ferro’s que, conversa vai, conversa vem, não quis me dizer a quem mais ela estava entrevistando sob a desculpa esfarrapada de que não podia dizê-lo por questão de confidencialidade. Como alguém pode falar de confidencialidade em torno de algo não sigiloso como entrevistas a serem tornadas públicas? Óbvio que havia algo de errado.

Em abril deste ano, outra das integrantes do projeto veio me pedir autorização para usar material meu nesse “documentário” sobre o Levante do Ferro’s (sic). Foi aí que percebi, inclusive, que chamar a manifestação do Ferro’s de “levante” não era simples modo de dizer das figuras do podcast, mas sim uma redefinição do evento a partir de uma perspectiva belicosa que ele não teve em momento algum. Novamente solicitei o nome das pessoas entrevistadas e então a moça desfilou as seguintes pessoas, a que se acrescentaram outras posteriormente: Adriana Arco-Íris, Alice Oliveira, Cristina Calixto, Gisele Cerqueira Cezar, Hanna Korich, Iara Rosa, Fernanda Pompeu, Maria Angélica Lemos, Marisa Fernandes, Mônica Pita, Nívea Cerqueira Cezar, Rita Quadros, Sheila Costa, Sonia Brantys, Terezinha Vicente e Zuleika Aguiar.

No texto sobre o Dia do Orgulho de junho deste ano, já falei um pouco sobre o assunto:
[...] Também vi minha foto e de Rosely com imagens do Ferro’s junto a fotos de gente que nunca vi na vida. Algumas que reconheci são useiras e vezeiras em reescrever a História para se colocar como protagonistas do que não viveram e não fizeram. Também me deparei, na mesma página do Facebook de um desses “documentários”, com fulana (Angélica Lemos) perguntando a beltrana (Edna Tofanetto) se ela estava nas fotos do Ferro’s, o que por si só é surreal, pois, se estivesse, como não teria sido reconhecida? Ao que a beltrana respondeu que não aparecia nas fotos, mas tinha estado lá e, ainda por cima, com mais umas 30 pessoas do grupo lésbico-feminista extinto em junho de 1981.
Mentira, claro, não houve a presença de integrantes do extinto LF, com exceção da Teca, na manifestação, o que mostra mais uma vez a intenção de deturpar a história do evento e de roubar o protagonismo das reais protagonistas.

Como se pode ver na lista de nomes acima, repetiram-se algumas das figuras do podcast, como Alice de Oliveira e Maria Angélica Lemos, somadas agora a gente do coletivo do lésbico-feminista (05/79-06/81), como a garantidora de fraudes por sua simples presença, Marisa Fernandes, Edna Toffanetto (a das 30 pessoas) e Rita Colaço, última adesão à turma que aparece com vários títulos acadêmicos na história para dar selo de autoridade acadêmica a uma grande mentira.
Aliás, vale fazer um aparte para falar de Colaço. Como demonstrei acima, com seu e-mail de 2009, foi ela que me enviou cópia da tese-armação 1, onde Fernandes destila sua maledicência, todo seu tenebroso esplendor. Na ocasião, me aconselhou a agir, como pode se constatar na cópia do e-mail que reproduzi acima, contra a tal Mogrovejo e a Fernandes, dizendo-se indignada com tanta sordidez. Nesse mesmo ano, contudo, me convidou para escrever no seu blog Memórias do MHB/MLGBT, definido por ela como espaço a “vir a ser o ponto de partida para uma recuperação sistemática e coletiva desses percursos - para além de personalismos, disputas, capitalizações.”

Jacaré em pele de cordeiro
Embora já tivesse minhas próprias páginas, decidi ajudar o projeto e postei alguma coisa esparsamente. Entretanto, com o tempo, Colaço passou a postar off-topics sobre política em geral, mas, quando fiz o mesmo, só que de uma perspectiva diferente da dela, simplesmente apagou as postagens. Como não aceito censura, pedi a retirada de todas as minhas postagens do seu blog, já que, embora vivesse dando sermão em todo o mundo das listas de discussão sobre capacidade de diálogo que se deveria ter, que se deveria discutir temas e não pessoas, etecétera, na prática, agia de forma oposta a seu próprio discurso. Lembro que, na época, eu a zoei muito nas listas de discussão por essas incongruências, e ela, que havia me censurado, se saiu com a história de que eu é que a teria ofendido. Sua partição nessa armação ilimitada por certo tem esse lastro, entre outras coisas. Posteriormente, soube também que se incorporou ao projeto “Ditadura e Homossexualidades”, onde parece ter se entendido com a sórdida Fernandes a ponto de recentemente ter descoberto que a estava referenciando como integrante do GALF e organizadora do ChanacomChana (como eu disse, armação ilimitada) em páginas onde impera. Seus valores morais parecem variar ao sabor do vento e das conveniências. E, claro, foi contemporânea do GALF e do Chana e sabe bem que nenhuma Fernandes rolava no período.

Finalizando sobre esse tal “documentário”, ele continua em andamento (talvez já finalizado - não me atualizei), falando de um levante que não houve protagonizado por gente que nunca se deu ao trabalho de organizar nada pelas lésbicas nos anos 80. Se fosse só para falar da experiência das lésbicas no Ferro’s não haveria problema algum, mas óbvio que o buraco dessa história é bem mais embaixo.

Por fim, nesse tópico do sequestro do Dia do Orgulho, termino falando de uma guria, integrante de um grupo judaico chamado Gaavah, do Rio, que, também em agosto de 2021, me solicitou dados sobre a filiação da Rosely para resgatar sua ancestralidade. Estava também programando uma cerimônia religiosa, chamada Kaddish, uma reza, a ser feita por uma rabina, para judeus falecidos, importante para o espírito da pessoa encontrar a paz. Toda a semana de comemoração parecia ser algo da e entre a comunidade judaica.

Passei esses dados e aproveitei para perguntar se ela poderia tentar localizar a namorada da Rosely já que não conseguia encontrá-la pela Internet, inclusive para lembrar do local do sepultamento da moça pois não encontrava por aqui. Passei o endereço que tinha de Vera, que ela disse não saber, mas nunca tive retorno sobre esse pedido. Em compensação, como eu havia dito também, na mesma conversa, que nem haviam me deixado ver a notícia sobre o suicídio da Rosely que saíra num jornal, a guria do nada me envia exatamente essa notícia do jornal O Povo com foto da Rosely estatelada no chão (ver trecho abaixo). E, no texto, do jornal, estava lá o endereço da Vera. Por que então pedira o endereço da moça e com quem conseguira a matéria? De qualquer forma, a nota é histórica porque inclusive confirma que o suicídio de Rosely foi causado por seus problemas psiquiátricos (pois até isso estão tentando reescrever, como relatei), embora a história de que ela tenha se jogado da janela repentinamente tenha rolado apenas para encerrar qualquer especulação.


Um pouco depois a guria me enviou a programação completa da celebração, e, entre os convidados para debater a questão homossexual na comunidade judaica, estavam a feminista Schuma Schumaher e o gay James Green. Contextualizando, Schuma foi uma das 3 assinaturas que consegui reconhecer da cartinha lá do início de 1990 do punhado de levianas que saiu me acusando de apagar as comadres delas (ausentes) da história da organização lésbica, sendo que elas próprias não as identificaram. Posteriormente, Schuma me pediu (pois é!) que escrevesse o verbete sobre Rosely para seu “Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade”, de 2000, pedido que atendi. Entretanto, quando do lançamento do dia do orgulho lésbico, em 2003, entre outras coisas em homenagem a Rosely, foi seu grupo REDEH que me convidou para uma suposta entrevista com intuito de me constranger com perguntas sobre o dia da visibilidade lésbica, como se houvesse algo de errado em querer se comemorar uma data histórica da organização lésbica do país como o 19 de agosto. Essa entrevista fez parte da campanha de apagamento do dia e inclusive da própria memória da Rosely.

James Green é considerado historicamente o pivô do racha do Somos por tentar, com sua Convergência Socialista, cooptar e aparelhar o nascente movimento homossexual do final da década de 70, início da oitenta (documentos da Facção Gay da Convergência Socialista confirmam esta consideração). Mais recentemente, foi autor com Renan Quinalha, aquele que resolveu inventar que o Chana foi vítima de perseguição e repressão da ditadura sem ter sido, do livro “Ditaduras e Homossexualidades”, onde também aparecem Fernandes e Colaço. Dá para fazer um gráfico com as conexões entre essas figuras. Rosely que era libertária e autonomista não se sentiria homenageada por pessoas que sempre agiram em oposição ao que ela pensava sobre a esquerda ortodoxa e os movimentos sociais.

Bem, eu disse tudo isso à Daniela Wainer, do tal grupo judaico que parece não ter gostado de minhas colocações. Este ano, no dia 19 de agosto, esse grupo, mais as lindas do pseudo Arquivo Lésbico, mais outras gurias do Cine Sapatão, envolvido no tal “documentário” sobre a manifestação do Ferro’s que não podia declinar o nome das entrevistadas, resolveram fazer “homenagem” a Rosely no Museu Judaico em frente ao local onde ficava o Ferro’s.

Precisa-se ser muito idiota, ainda mais considerando tudo que descrevi até aqui, para não sacar que essa suposta homenagem a Rosely, num dia que marca a primeira manifestação lésbica promovida pelo GALF, com apoio do grupo Outra Coisa e outros protagonistas, é apenas uma forma de tentar reduzir o evento de toda uma coletividade a uma de suas participantes. Fora dizer que a Rosely seria pioneira do movimento LGBTQI+, movimento que muito pouco se assemelha com o Movimento Homossexual do qual Rosely participou, como apontei quando dissequei a tentativa de sequestro de sua imagem. Rosely pregava a autonomia das lésbicas não só em relação a partidos políticos como também em relação a outros movimentos. Impossível imaginá-la tendo algo a ver com um movimento que sequer reconhece o direito de autodeterminação sexual das lésbicas.

Se é para homenagear exclusivamente a Rosely – merecidamente – o dia correto é o de sua primeira participação no programa da Hebe (25/05/1985) onde ela estava por conta própria. O sucesso da manifestação do Ferro’s só foi possível pela ação coordenada de vários ativistas de grupos e de indivíduos que possibilitaram a entrada no bar e o compromisso dos donos do Ferro’s de não mais impedirem a venda do Chana no local. Ainda que tenha tido destaque no evento, por ter subido em cadeiras e feitos discursos, Rosely não teria tido condições de realizar semelhante feito sozinha. Utilizar a imagem dela segurando o Chana para tentar burlar direitos autorais e ilustrar teses fraudulentas, reescrever a História do happening do Ferro’s e do próprio movimento lésbico da década de 80, para roubar protagonismos, é simplesmente nojento e um aviltamento da memória da moça que não está aqui para se defender desses ultrajes travestidos de homenagens. Se estivesse viva e lúcida, repetindo, simplesmente mandaria um sonoro VTNC para todas essas oportunistas.


Capítulo 2: Uma palavra sobre a ditadura militar

Contextualizando

Considerando que essa armação ilimitada tem o objetivo de sequestrar o GALF, suas manifestações e produções, a fim de encaixá-los anacronicamente numa suposta resistência das lésbicas à ditadura militar, me pareceu importante abordar brevemente o período dos presidentes-generais. Ele se insere no contexto macropolítico e econômico da Guerra fria, a guerra por procuração entre as duas potências da época: os EUA, representando as sociedades abertas, de democracias liberais e economia de livre mercado (vulgo capitalista) e as sociedades fechadas dos regimes totalitários comunistas, de economia planificada ou semiplanificada.

As duas potências apoiavam respectivamente quem combatia e quem apoiava o comunismo. Lembrando que comunismo naquela época era um perigo real, não esse xingamento meio caricatural e folclórico com o qual os bolsonaristas rotulam aqueles que não lhes são espelho. Da mesma forma, que a esquerda xinga todo o mundo que não é seu espelho de fascista. A maioria que usa esses dois “cumprimentos” nem sabe direito do que está falando, desconhece as raízes históricas dos dois termos.

No contexto sociocultural e comportamental, o mundo ocidental vivia a revolução da Contracultura, aquele grande guarda-chuva neorromântico que abrigava movimentos e movimentações da esquerda libertária, as várias nuances, em particular a pacifista, das correntes anarquistas. Ainda que fosse antissistema, a revolução contracultural vai ironicamente contar com uma forcinha da indústria cultural que floresce naquele período via os avanços tecnológicos dos meios fonográficos, da televisão e das comunicações em geral. Graças a ela, a trilha sonora da Contracultura, o rock e suas variações, chega aos 4 cantos do mundo, inclusive atravessa a cortina de ferro. E, naturalmente, chega ao Brasil, quase em tempo real, com o rock básico, nos anos 50, depois com a Jovem Guarda, e sobretudo com o Tropicalismo na década de 60. E é essa esquerda que vai fazer a cabeça sobretudo da juventude dos anos 70, período do AI-5, até o início da década de 80. O marxismo e seus filhotes saem de moda no mundo inteiro, sob pesadas críticas em função de seus resultados (socialismo real), e, aqui no Brasil também em razão da perseguição dos militares contra a esquerda ortodoxa. Entre uma coisa e outra, a juventude do período preferiu o desbunde à luta armada.

Mitos e fatos sobre o regime militar

Nesse muito breve apanhado, vale salientar que o período do regime militar que dura 21 anos não foi homogêneo nem totalitário. Saliento essa frase porque existe um hiperdimensionamento da ditadura militar como se nós tivéssemos vivido uma espécie de Gilead por aqui, aquela sociedade distópica do Conto da Aia onde os agentes de repressão acompanham as mulheres para todos os lados, os corpos dos dissidentes são pendurados nos muros, nos postes, nas árvores. Nada mais falso no que diz respeito ao Brasil daqueles tempos, o que não significa negar a repressão e abusos contra os direitos humanos ocorridos.

De qualquer forma, houve sim um golpe, não por terem derrubado um presidente de esquerda, mas porque houve quebra da ordem institucional. Em regimes democráticos presidencialistas, presidentes têm que ser depostos pelo instrumento institucional do impeachment. O governador de São Paulo Adhemar de Barros quis até ir pelo caminho institucional e fazer o impeachment do presidente João Goulart (Jango), mas a nossa tradição autoritária prevaleceu mais uma vez e preferiram chamar as Forças Armadas para dar o nono golpe da nação chamada Brasil. Enquanto Jango viajava pelo país em busca de apoio para resistir ao golpe, a cadeira da presidência foi considerada vaga, assumindo o presidente da câmara Ranieri Mazzili e depois, ao longo de duas décadas, a sequência de cinco presidentes militares. E Jango, por fim, se exilou no Uruguai.

Os governos Castelo Branco e Costa e Silva

Nos primeiros quatro anos do regime militar, governos Castelo Branco (15/04/1964 a 15/03/1967) e Costa e Silva (15/3/1967 a 31/8/1969), o Brasil se tornou uma espécie de democratura, porque ainda manteve relativa liberdade na área cultural, de comunicações (não houve censura direta e oficial até 1968), a despeito da Lei de Imprensa [3]-[4], mas perdendo progressivamente características do Estado democrático de direito, com organizações sendo proscritas, como as organizações estudantis (11/64), cassações de mandatos, até algumas primeiras prisões políticas, a imposição do bipartidarismo (1965), o fim das eleições diretas para presidência (10/1965) e governadores (1967).

[3] Lei de Imprensa. Disponível em: <https://bit.ly/3tM6Ld2>
[4] Jornais ligados a Goulart, contudo, foram atacados, nesse período, bem como grandes jornais como Última Hora e Correio da Manhã


Apesar disso, a efervescência cultural daquele período foi intensa com a esquerda ortodoxa investindo nas músicas ditas engajadas, de protesto, e as classes populares embarcando no rock’n’roll que ganha versões brasileiras dos originais em inglês e depois adquire vida própria com a Jovem Guarda. Com a Jovem Guarda (1965-1969) já se tem os primeiros passos da Contracultura no Brasil, com mudanças visuais e comportamentais que alteram as imagens de garotos e garotas e a perspectiva de seus relacionamentos. Não deixa de ser curioso observar que, enquanto universitários e engajados em geral, de classe média alta, queriam falar em nome do povão sofrido, o povão estava mais interessado na garota papo firme do Roberto e em mandar tudo mais para o inferno.

Maria Bethânia, que substituiria Nara Leão no engajadíssimo Opinião, chama a atenção do mano Caetano para o frescor juvenil da Jovem Guarda e suas inovações. Um pouco depois, os nordestinos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Gal Costa, Tom Zé vão se juntar a eclética “carioca” Nara Leão e ao paulistano Mutantes (apadrinhados pelo Ronnie Von) e ao erudito também paulistano Júlio Medaglia para criar o disco Tropicália (07/68). Com a geleia geral brasileira da Tropicália, suas experimentações musicais, as roupas e cabelos extravagantes dos tropicalistas, já um pouco de androginia, a Contracultura aporta de vez em terras tupiniquins. E essa perspectiva de inovação estética e comportamental se expressa também nas artes plásticas, com a obra-ambiente de Hélio Oiticica, Tropicália, inspiração para o nome do disco, no teatro, com a encenação das polêmicas peças Rei da Vela e Roda Viva (janeiro de 1968) pelo Grupo Oficina, de José Celso Martinez Correa, e no cinema, com Terra em Transe de Glauber Rocha.

Na política, Carlos Lacerda, que havia apoiado o golpe militar, na esperança de se livrar do Jango, pelas vias tortas, para ser ele próprio presidente, se dá conta que dera um tiro no pé, pois os militares não demonstravam intenção de entregar o poder de volta aos civis como prometido. Articulou então com os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart (exilados), em 1966, a Frente Ampla, movimento para defender a necessidade de restauração da democracia no Brasil. Em 5 de abril de 1968, o governo de Costa e Silva proibiu o funcionamento desse movimento político e, ao final desse ano, após a promulgação do AI-5, Carlos Lacerda foi preso.

"Sejamos realistas, exijamos o impossível!"
"A imaginação no poder!!""É proibido proibir!!!"
Sob inspiração do maio de 68 francês (ao lado colagem sobre img da AFP), o movimento estudantil, apesar de proscrito, vai realizar manifestações de rua a partir da morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, de 18 anos (28/03/ 1968), assassinado pela polícia durante protesto contra o aumento dos preços das refeições no restaurante universitário Calabouço no Rio. Sucederam-se várias manifestações por todo o país, já durante o enterro do jovem, algumas sem incidentes com a polícia, outras já marcadas por sérios conflitos com os policiais, que inclusive produziram mortos e feridos. O ápice dessa movimentação foi a famosa passeata dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, que juntou, aos estudantes, artistas, intelectuais e inclusive religiosos. Autorizada pelas autoridades locais, marchou sem incidentes pelas ruas do Rio por 3 horas terminando diante do palácio Tiradentes, sede da Assembleia Legislativa carioca. Apesar da magnitude da manifestação não conseguiu sensibilizar o presidente Costa e Silva para suas reivindicações.[5]

[5] Domingues, Joelza Ester. Passeata dos Cem Mil, Rio de Janeiro. Ensinar História. Disponível em: < https://bit.ly/3ggh4mM>

Dissidentes do Partido Comunista Brasileiro, entre outros partidos e facções de esquerda oriundas do ambiente jornalístico e universitário, resolveram iniciar a chamada luta armada contra o regime com atentados, sequestros, assassinatos e roubos a banco e a particulares. Já em julho de 1966, fizeram um atentado à bomba, no aeroporto de Guararapes (Recife, PE), para matar o então presidente Costa e Silva, que deixou 2 mortos e 17 feridos. De 1966 a 1974, proliferaram vários desses grupos armados que se autointitulavam guerrilheiros urbanos e rurais. Os militares responderam com uma igual proliferação de sistemas de informação e repressão, além do Serviço Nacional de Informação (SNI) já fundado em 1964, em particular a partir da promulgação do AI-5 (dez. 1968) quando deram início a sua ditadura plena.

Anos de chumbo e de boom econômico

Durante o governo do presidente-general Emilio Garrastazu Médici (30/10/1969 a 15/3/1974), paradoxalmente o dos anos de chumbo e do milagre econômico, os militares se dedicaram a erradicar a luta armada no Brasil, sendo o último foco guerrilheiro, a guerrilha do Araguaia, dizimada em 1974. Cumpre salientar que ninguém da luta armada batalhava pela democracia como tem sido inventado recentemente a ponto de pintarem o Carlos Marighella de preto retinto e democrata, quando de fato era mulato claro e stalinista. A luta armada se inspirava nas revoluções cubana, maoísta e russa com vistas a derrubar a ditadura militar, mas não para trazer o país de volta a democracia e sim para instalar uma ditadura do proletariado (ver entrevista do historiador Marco Antonio Villa, aqui).
Quando militei na esquerda clandestina, durante a ditadura militar, sempre fomos claros a esse respeito: democracia, para nós, era palavrão. É ridículo ver Dilma Rousseff, que militou na mesma organização clandestina de que fiz parte, a Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária), dizer que, durante a ditadura militar, lutou pela democracia. É mentira. Nenhum de nós, na esquerda clandestina radical, lutou pela democracia. Antonio Risério

Hoje, eu continuo sendo socialista, portanto, de esquerda, mas sou uma pessoa que acredita que a democracia é uma questão essencial, coisa que nós, na época da esquerda leninista etc., nós não considerávamos. Nós éramos pela ditadura do proletariado. Nós éramos contra a ditadura militar, mas éramos a favor da ditadura do proletariado. Isso aí é preciso dizer a verdade toda. E às vezes eu ouço meias verdades. Como a ditadura militar nos oprimiu barbaramente, de forma violenta, muitas vezes as pessoas pensam que não existia no campo da esquerda coisa igual e até pior, em vários aspectos.” Eduardo Jorge

Todos os ex-guerrilheiros dizem que estavam lutando pela democracia. Mas se você examinar o programa que tínhamos naquele momento, queríamos uma ditadura do proletariado. Esse é um ponto de separação do passado. A luta armada não estava visando a democracia, ao menos não no seu programa", afirmou.  Fernando Gabeira

Inclusive muitos desses militantes já haviam recebido treinamento militar em Cuba, Pequim, antes dos militares chegarem ao poder em 1964 [6], o que demonstra que suas ações não eram simples reação ao regime militar. Os remanescentes desses grupos só aderiram a via democrática a partir de 1979 com a abertura do regime. Formaram, de fato, um exército de Brancaleone que só serviu para dar o pretexto perfeito para os militares recrudescerem o regime e sacrificar vários jovens no altar do crack ideológico, fruto de seu tempo, claro, mas nem por isso menos tóxico. Os heróis da Contracultura morreram de overdose, mas, pelo menos, não levaram ninguém junto com eles.

[6] FERNANDES, Cláudio. O que foi a Guerrilha do Araguaia?. Brasil Escola. Disponível em: <https://bit.ly/2Ody8p9>

Nessa conjuntura, os anos de Médici no poder foram os mais repressivos da ditadura, concentrando o maior número de prisões arbitrárias, denúncias de torturas e mortes de subversivos (como eles diziam) e nem tão subversivos que entraram no radar dos militares. Foram os anos também do auge da censura aos meios de comunicação e à cultura em geral (espetáculos e publicações, em jan. 70), via censura prévia com censores se instalando nas redações de jornais e outros periódicos, e a produção artística sendo amordaçada. Em janeiro de 1974, também tem início a censura prévia a rádios e TVs.

Não obstante, Médici foi o presidente mais popular do regime, pois, em seu governo houve o ápice do chamado milagre econômico (1967-1973), com a economia crescendo a até 11% ao ano, uma nova classe média surgindo, boa oferta de empregos, o país entrando na era da sociedade de consumo, da comunicação de massa, a seleção brasileira ganhando a Copa do México, muito ufanismo e patriotadas. No artigo As duas décadas dos anos 70, do livro Anos 70: Trajetórias, Maria Rita Kehl descreveu bem aquele momento:
Luiz Inácio Lula 
da Silva também abordou apropriadamente esse período paradoxal:

Há um paradoxo que possivelmente a esquerda não tenha compreendido no Brasil. É que o Médici que foi o presidente mais duro do regime militar possivelmente era o mais popular dos presidentes do regime militar. Por quê? Porque nos anos 70 era o auge do milagre brasileiro[7]. [...] Emprego era uma loucura, era uma loucura... Os trabalhadores estavam na porta da Volkswagen procurando emprego, passava ônibus de outra empresa convidando eles pra ir pra outra empresa para ganhar mais. [...] Eu penso, que, se houvesse uma eleição e o Médici fosse candidato naquele tempo, ele ganharia.

[7] Milagre econômico brasileiro. Disponível em: <https://bit.ly/3XmX5Dl>


Geisel e o governo da distensão

Finda a luta armada e findo o milagre econômico, base do apoio ao regime, devido às crises do petróleo e da dívida externa, o presidente-general Ernesto Geisel (15/03/1974 a 15/03/1979) vai dar início ao seu governo de distensão com vistas à abertura política "lenta, gradual e segura”. A repressão aos “subversivos” de vários tipos e a censura arrefecem. Em 1975 e 1976, os jornais Estado de São Paulo e da Tarde e a revista Veja deixam de ter censura direta. Não obstante, outros periódicos da chamada imprensa alternativa, como o Opinião, não resistiram à censura e as pressões econômicas terminando em abril de 1977.

Com a crise econômica e o aumento da inflação e recessão, afetando em particular as classes populares, o regime perde prestígio perante a sociedade, a oposição cresce no parlamento e nas ruas, e Geisel começa a preparar a saída dos militares do poder não sem idas e vindas nesse processo. Para limitar o avanço da oposição, com o MDB já obtendo boa votação nacional em 1974, Geisel passou a lei Falcão (1976) e o Pacote de Abril (1977) [8] quando fechou o Congresso Nacional [9] e passou a governar por meio de decretos. Resquícios desse pacote perduraram até 1980.

[8] Paganine, Josiana. Há 40 anos, ditadura impunha Pacote de Abril e adiava abertura política. Agência Senado. Disponível em <https://bit.ly/3tNGkne>

[9] O Congresso Nacional foi fechado, durante o regime militar, por três vezes: em 20 de outubro de 1966, Castelo Branco decretou recesso por um mês; em 13 de dezembro de 1968, Costa e Silva baixou o AI-5, fechando o Congresso por dez meses e, em abril de 1977, Ernesto Geisel, fechou o Congresso novamente por duas semanas. Fontes: Agência Câmara de Notícias e Aos Fatos


De qualquer forma, Geisel termina com a censura prévia em 8 de junho de 1978 e promulga a Emenda Constitucional n° 11, em 13 de outubro de 1978, que revoga o AI-5, reestabelecendo o habeas corpus e proibindo o poder executivo de cassar mandatos, impor recesso parlamentar, demitir servidores públicos e privar os cidadãos dos direitos políticos.

Figueiredo e a abertura

O governo do general João Baptista de Oliveira Figueiredo (15/03/1979 a 15/03/1985) marca o período da abertura política do regime e o início da redemocratização. Seus 6 anos de duração foram marcados pela aprovação, em 28 de agosto de 1979, da anistia a presos políticos e aos exilados, permitindo seu retorno à vida político-partidária, mas também aos agentes da repressão envolvidos em assassinatos e práticas de tortura. Não foram beneficiados os condenados por sequestro ou terrorismo. A luta pela anistia foi promovida pelos comitês brasileiros pela anistia, que agregavam vários setores da sociedade, já iniciados no governo Geisel.

Também retorna o pluripartidarismo com a Arena, partido do governo, se tornando Partido Democrático Social (PDS) e o MDB se tornando PMDB. Surgiram também o Partido Democrático Trabalhista (PDT), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Em novembro de 1982, foram realizadas eleições diretas para todos os cargos, inclusive para governadores. Vale lembrar que o regime militar sempre permitiu eleições, mas elas eram muito manipuladas ou indiretas. Em novembro de 82, o Brasil teve eleições diretas inclusive para governadores e prefeitos, excetuando-se os das capitais. Faltava restabelecer o voto direto para presidente, mas isso ainda iria tardar.

Figueiredo herdou a crise econômica do regime já presente no governo Geisel, o que levou às greves dos trabalhadores do ABC paulista, a princípio, com a bandeira dos reajustes salariais, depois com reivindicações como a volta do direito de greve e a livre negociação com os empregadores. A eles se uniram outras categorias de trabalhadores e do funcionalismo público exercendo grande pressão sobre o governo.

Embora estivesse prevista a sucessão de Figueiredo pelo voto indireto, em março de 1983, o deputado federal pemedebista, Dante de Oliveira, apresentou uma emenda constitucional que estabelecia eleições diretas para presidência da República, deflagrando um dos maiores movimentos sociais da história brasileira, as Diretas Já. Apesar de reunir multidões, agregando de lideranças políticas a populares, a emenda foi derrubada no congresso, onde o governo ainda tinha força, em abril de 1984.

Posteriormente, o PDS (partido do governo) lançou o paulista Paulo Maluf para a sucessão presidencial, desagradando a ala nordestina do partido e levando a um racha que culminaria na fundação do Partido da Frente Liberal (PFL). Este partido vai apoiar a candidatura de Tancredo Neves, do PMDB-MG, à presidência, que acabou eleito pelo colégio eleitoral em 15 de janeiro de 1985, pondo fim a 21 anos de ditadura militar. Infelizmente, Tancredo adoeceu e faleceu antes de tomar posse, tendo seu vice, José Sarney, assumido o cargo. Somente em 1989, porém, os brasileiros vão poder voltar a eleger diretamente o presidente da República, tendo sido vitorioso Fernando Collor de Mello.

O governo de abertura de Figueiredo contou, em seus primeiros anos, com a oposição de correntes mais radicalizadas das Forças Armadas que não queriam o fim do regime e promoveram atentados a bomba a sedes de partidos políticos, igrejas, editoras, órgãos de imprensa, bancas de jornal, culminando com a tentativa de atentado ao Centro de Convenções do Riocentro, em abril de 1981, onde trabalhadores estavam realizando um show. A bomba que iria detonar no local, por obra de um sargento e um capitão do Exército, porém, acabou explodindo no colo de um deles.

A ilustração da letra dos Beatles por Alan Aldrige, 1968. 
VICTORIA & ALBERT MUSEUM, LONDRES

A Contracultura fez a cabeça da geração do AI-5

Como disse no início desse apanhado sobre o período que abrange o regime militar, este se inseriu no contexto macropolítico e econômico da Guerra Fria e no contexto sociocultural e comportamental da Contracultura, aquele grande guarda-chuva neorromântico que abrigava movimentos e movimentações da esquerda libertária, as várias nuances, em particular a pacifista, das correntes anarquistas, onde as artes tiveram papel fundamental. Faço aqui também uma abordagem bem sucinta do tema da Contracultura, suas linhas gerais para chegar a sua influência no surgimento do movimento homossexual brasileiro e das duas organizações lésbicas do período, o Grupo Lésbico Feminista e o Grupo Ação Lésbica Feminista e seus boletins, em particular o ChanacomChana. Primeiro, farei minhas as palavras de alguns meus contemporâneos para traçar um retrato daquele tempo tão cheio de sonhos e ilusões que, no entanto, concretizaram muitas mudanças sociais.

O grande guarda-chuva neorromântico da Contracultura abrigou da revolução sexual à criação dos computadores pessoais, da política do corpo à antipsiquiatria, do pacifismo e da desobediência civil ao “faça você mesmo”, das manifestações estudantis, contra a Guerra do Vietnã e o armamentismo nuclear, às campanhas pela liberdade de expressão nas universidades. Foi a mãe também dos contemporâneos movimentos feminista, negro, gay e sobretudo do ambientalista (seu filho dileto).

Iniciou-se já na década de 50, nos EUA e na Europa, atravessou as décadas de 60 e 70, terminando no início da década de 80 com a chegada da AIDS. De caráter internacional, chegou também ao Brasil a despeito da ditadura, embora a esquerda ortodoxa a considerasse um produto alucinado do regime militar. O antropólogo Antonio Risério refutou essa argumentação, no artigo, Duas ou três coisas sobre a Contracultura no Brasil, p. 27, do livro Anos 70: Trajetórias:

De fato, com a palavra de ordem geral do drop out, o cair fora do sistema, a Contracultura vai fazer a cabeça da geração da década de 70 no Brasil, promovendo o surgimento do hippismo “clássico”, com o pessoal pegando a estrada, de mochila nas costas, indo parar em alguma comunidade nas montanhas ou na orla marítima, para viver de artesanato, entre viagens de maconha ou ácido. Ou vivendo também em comunidades alternativas na área urbana, muito comuns entre grupos estudantis. Ou ainda incorporando o hippie de boutique, um hippie mais de fachada, adepto do sexo, drogas e rock’n’roll, porém com um pé no “sistema” por sobrevivência. O fato é ninguém da década de 70 passou incólume pela avalanche contracultural.

A juventude da esquerda ortodoxa, contemporânea da contracultural, sai de cena seja porque suas ideologias e métodos passam a ser considerados discutíveis, caretas, seja porque sobre ela se abateu a mão pesada do estado ditatorial. No livro Impressões de Viagem (link na nota para baixar), um fidedigno quadro do período, a escritora Heloísa Buarque de Holanda pontua:
Realmente, assim como o drop out, outro dos conceitos-chave da contracultura era a ideia de que não poderia haver uma revolução ou transformação sociais sem haver uma revolução ou transformação individuais. Daí a politização do cotidiano, das relações interpessoais, da relação ser humano e meio ambiente. A luta deixa de ser a de classes, do “proletariado revolucionário”,[10] para focar nas “minorias” (p. 77)

[10] HOLLANDA, Heloisa Buarque. Impressões de Viagens: CPC, Vanguarda e Desbunde (1960/70).


Em seu neorromantismo contrário à racionalidade tecnocrática do período da Guerra Fria, a Contracultura vai contestar a cultura ocidental e buscar em outras culturas alguma verdade maior perdida. Se no exterior (EUA e Europa) predominou o interesse pela cultura asiática (Budismo, o Zen em especial, Taoísmo, ioga, tai-chi, macrobiótica, vegetarianismo), que também cresceu por aqui, no Brasil, vai rolar especialmente o interesse pelas culturas ameríndias e afro-brasileiras (pela umbanda e pelo candomblé em particular), tornando a Bahia uma espécie de meca contracultural da época.

Antonio Risério, em seu artigo sobre a Contracultura (p. 26), do livro Anos 70: Trajetórias, descreveu um sentimento que também foi meu nesse período: tudo parecia ao alcance das nossas mãos.
A já citada psicanalista Maria Rita Kehl, no artigo As duas décadas dos anos 70, do livro Anos 70: Trajetórias, p. 34-35, também faz um relato de sua experiência de vida em comunidades urbanas em São Paulo, onde se acreditava poder virar a vida do avesso, superar todos os hábitos e a cultura onde os jovens tinham sido criados.
Kehl também descreve o quanto o interesse desbundado por culturas “exóticas” possibilitou o conhecimento da realidade nordestina através das viagens para aquela região e a vinda de poetas e compositores de lá para o “sul maravilha”. Fala ainda das trocas culturais com os argentinos que se abrigavam nas comunidades urbanas fugidos da ditadura argentina, bem pior do que a brasileira. Um fato que também pude constatar quando namorei com a Teca, a catalisadora do surgimento do lésbico-feminista, que dividiu apartamentos com dois argentinos durante nosso convívio, um deles o poeta Nestor Perlongher (p. 35-36).
Por fim, Kehl reflete sobre os pontos positivos e negativos da revolução sexual (p. 36), opinião com a qual também me identifico. De fato, as gerações dos anos da Contracultura eram muito cheias de energia e criatividade retidas num container muito pequeno. Da década de 50, quando falar de sexo era tabu, em diante, essa energia foi crescendo e acabou explodindo pedaços das várias repressões existentes para todos os lados. A revolução sexual fez parte desse afã de desrepressão, sendo positiva nesse sentido, mas negativa por acabar impondo uma nova receita de relacionamentos, a das relações não-monogâmicas, “abertas”, que, no fim, degeneraram em mera promiscuidade. De fato, a única coisa realmente revolucionária em termos de relações erótico-afetivas é não haver receitas de desejos e amores. As relações são revolucionárias quando simplesmente satisfatórias para as pessoas envolvidas. Mas, claro, para chegarmos ao mantra do “toda forma de amor vale a pena”, tivemos que primeiro passar pela revolução sexual.
O professor de ciências da comunicação, Martin César Feijó fala um pouco sobre a revolução sexual da contracultura. Discordo apenas de que a gente lia mais sobre sexo do que fazia. A gente fazia muito sexo também. Clique no vídeo para ver.


“A gente tava cagando pra ditadura”



A ditadura militar implicava com todo mundo, principalmente agrupamentos de jovens, cabelos ao vento, reunidos, o que significava de vez em quando fechar feiras hippies, shows de rock, bailes do Black Rio, levando os organizadores presos por vadiagem para a delegacia, alguns lá ficando por uns dias. Em geral contraculturais eram mais frequentadores das delegacias do que dos porões da ditadura, ao contrário dos chamados guerrilheiros. Também a postura contracultural em relação à repressão e a censura era mais blasé do que a da esquerda ortodoxa e a estratégia mais a da “mosca de bolo”. Fechavam as feiras hippies, o pessoal abria outras. Impediam os shows de rock, daqui a pouco lá estavam os ripongas fazendo outros. Nessas, rolaram vários shows de rock durante a década de 70 e início da 80, reunindo milhares de jovens a emular o Woodstock americano, com direito a piscinas de ácido, gente pelada e grupos de rock da época. O Festival de Águas Claras (foto acima), por exemplo, reuniu, entre 17 e 19 de janeiro de 1975, um público de 30 mil jovens numa fazenda de Iacanga, munícipio de Bauru (SP), tendo sido considerado o Woodstock brasileiro.

O fato é que os desbundados que não queriam tomar o poder, que preferiam “cair fora do sistema” e estavam mais preocupados com sexo, drogas e rock’n’roll do que brigar contra os militares fizeram mais para erodir a ditadura do que os guerrilheiros que só a recrudesceram. Como disse o historiador Marco Antonio Villa, em seu livro Ditadura à Brasileira.
O conservadorismo da censura aprofundava o fosso entre o governo e as mudanças comportamentais da sociedade brasileira. A urbanização, a ampliação da classe média, os novos padrões morais da “revolução sexual” dos anos 1960, a contracultura, tiveram enorme impacto no país. [11] 

[11] Villa, Marco Antonio. Ditadura à Brasileira (p. 139). Leya. Edição do Kindle.


A censura tinha duas vertentes: a política, que buscava controlar informações sobre as ações e do governo, em particular, sobre os abusos contra os direitos humanos, e a moral que queria garantir os bons costumes da sociedade brasileira em meio as inevitáveis mudanças comportamentais trazidas pela Contracultura. Alguns autores afirmam que a contracultura foi bem visada pela ditadura [12], outros que nem tanto porque a censura era um tanto burra e não conseguia entender muito bem a extensão do caráter subversivo daquela onda. O fato é que, em pleno governo Médici, aporta nos teatros brasileiros a peça Hair (69 a 72), um libelo hippie antimilitarista (pois é) e os Dzi Croquettes (1972 a 1976) e sua irreverência andrógina. Em ambos os casos, a censura esteve mais preocupada com a nudez dos atores e dançarinos do que com as outras mensagens bem mais libertárias das danças e do enredo. Fora a androginia também de Ney Matogrosso dos Secos e Molhados, grupo que existiu de 71 a 74 em sua formação original.

[12] Júnior, Gonçalo. Liberdade cabeluda. O inusitado caráter político da contracultura brasileira. Disponível em: https://bit.ly/3Oubjys>

Aproveito para reproduzir parte de uma entrevista (2014) [13] dos desbundados Ney Matogrosso, Angela Ro Ro e Leiloca (das Frenéticas) e o que eles diziam sobre censura e repressão. Vale também para observar o contraste entre o que Ro anda dizendo hoje sobre enormes dramas que teria sofrido na ditadura e o que diz aqui:
“CRIAR EM TEMPOS DE DITADURA

Ney: É um paradoxo. Nós vivíamos sob uma ditadura, e o comportamento era uma válvula de escape. Não tinha essa história de politicamente correto de hoje, que é chata pra cacete. Todo mundo era liberado, talentoso, chegando com o pau duro querendo fazer coisas boas... Hoje, dá pra contar nos dedos quem faz coisas interessantes. Naquela época, era em bloco.

Leiloca: Pegamos carona na loucura dos anos 1960, 1970, sexo, drogas, rock'n'roll. A gente comprou aquele pacote. Todo mundo era paz e amor.

Angela: A gente estava numa ditadura, mas não estávamos tragicamente ligados a ela. A gente fez uma guerrilha sem armas. Nossa arma era a arte.

Ney: A minha era a libido! Eu jogava minha libido na cara deles e esfregava [espalma uma mão com a outra].

CENSURA

Ney: A preocupação do governo era com a política partidária, com o comunismo. Eu me apresentava na televisão seminu. Só tinha um tapa-sexo e, por cima, eram trapos e franjas, que eu rodava e aparecia minha bunda. Eu acho que o Secos e Molhados passou [pela censura] porque a gente nunca falou "abaixo a ditadura", a gente tava cagando pra ditadura.

Angela: A polícia nem entendia do que se tratava aquela gente parecendo que tinha saído do filme "Hair". Você podia estar com um baseado de maconha no meio da praia e não acontecia nada. Além disso, a turma era de classe média e alta, tudo neto de general, filho de coronel, costas quentes.

Leiloca: Em 1970, a gente ficava viajando de ácido, na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, a polícia passava e não falava nada.”

[13] Kuchler, Adriana. Ney Matogrosso, Angela Ro e Leiloca discutem loucuras dos anos 70 e 80. Disponível em: <https://bit.ly/3tJTBx8>


Com humor e com afeto

No hiperdimensionamento da ditadura militar muito em voga em tempos recentes, onde a experiência da censura e da tortura é estendida para toda a sociedade da época, como se todo o mundo tivesse ido parar no pau de arara, já ouvi muito vigarista dizendo até que não havia humor no período devido à terrível repressão.

Onde se encaixa a poesia marginal (geração mimeógrafo) e o Pasquim sobretudo nessa tristeza toda da suposta Gilead em que vivíamos? A chamada poesia marginal, da geração mimeógrafo, porque os poetas recorriam ao mimeógrafo para reproduzir seus livros artesanalmente, era marcada por uma miscelânea de fotografias e quadrinhos, ilustrando textos cheios de gírias, coloquialidade, ironia, sarcasmo e humor. O boletim Chanacomchana, aliás, é bastante tributário dessa mistura e dessa estética, embora seu conteúdo fosse mais sério, militante. E a venda desses livrinhos se dava, também como no caso do Chana nos bares das lésbicas, para o público restrito dos locais e bares contraculturais. Entre os representantes da poesia marginal, Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski, José Agripino de Paula, Waly Salomão, Francisco Alvim, Torquato Neto, Chacal, Cacaso. Na música, Jards Macalé, Luiz Melodia Tom Zé, Jorge Mautner, Sérgio Sampaio. Vale salientar que são considerados poetas marginais também alguns pioneiros do Movimento Homossexual Brasileiro como Glauco Mattoso e Leila Míccolis. Navilouca foi um dos produtos coletivos da turma.

Como se poderia falar de falta de humor no período ditatorial se tínhamos o Pasquim, um jornal marcado exatamente pelo humor, o deboche, ainda que de forma indireta, metafórica, para criticar e rir da censura e da repressão? Através de charges e matérias até meio surreais o jornal replicava as censuras sofridas com outras matérias e charges ironizando a atitude repressora. Mesmo censurados e até presos, os jornalistas e cartunistas do Pasquim nos fizeram rir bastante e serviram de exemplo para outros jornais alternativos.

De fato, tínhamos muito mais humor e afeto nos anos 70 do que hoje, onde imperam o vitimismo, o cancelamento e uma incrível incapacidade das pessoas de rirem de si mesmas e do espetáculo sempre ridículo da política brasileira e sua democracia de fachada. Na década de 70, a Contracultura, entre seus acertos e excessos, nos permitia inclusive uma liberdade que não mais existe. Citando novamente Antonio Risério:

A Contracultura foi a matriz do Movimento Homossexual Brasileiro

Tanto o Lampião da Esquina quanto o Somos surgem, em 1978, na esteira da Contracultura prevalente na década de 70 e da abertura política que marca o final do regime militar autoritário. No Lampião da Esquina, as chamadas “minorias”, mulheres, negros e particularmente os homossexuais ganharam visibilidade inédita na mídia e na sociedade brasileira. No Somos-SP, gays e depois as lésbicas vão se reunir para discutir suas dores e delícias de ser homossexuais numa sociedade ainda bastante conservadora e heterossexista. Pouco depois algumas lésbicas passaram a se reunir separadamente tendo em conta sua dupla discriminação como mulheres e homossexuais, gerando um dos subgrupos do Somos que veio a ser intitulado subgrupo lésbico-feminista. Tanto no Somos e, particularmente, no LF, vigorava a receita contracultural da política como algo a ser vivido no cotidiano, do combate as hierarquias e centralizações da política tradicional, das chamadas relações abertas, como supostas formas de questionar a monogamia importada das relações heteropatriarcais, do alto consumo de drogas lícitas e ilícitas e uma frágil coalisão em torno mais de simpatias fugazes do que de um projeto qualquer de grupo.

De qualquer forma, no primeiro ano do Somos-LF, 1979, prevaleceu um clima de ufanismo por aquele momento inusitado de confraria dos mais discriminados entre os discriminados que de repente se reconhecem com possível força para deixarem a situação de vítimas marginalizadas pela de sujeitos políticos. O sonho acabou com a chegada ao Somos de integrantes da Convergência Socialista, organização da esquerda tradicional, trotskista, com seu dirigismo e já naquela época querendo atrelar aquele incipiente movimento à luta pró-trabalhador e ao recém-nascido PT. Para esse pessoal, segundo suas Teses para a Libertação Homossexual, “as forças pequeno-burguesas/anarquistas que pregam uma pseudo-independência e autonomia do MH acabam capitulando diante da burguesia. [...] A CS é a única tendência que oferece uma clara direção pró-trabalhador para o MH e, sendo assim, tem as condições de dirigir esta corrente. (p.7)”

Após o I Encontro Brasileiro de Homossexuais (I EBHO), em abril de 1980, o conflito entre os gays fundadores do Somos, de perspectiva contracultural e autonomista e a CS dirigista só aumenta, levando ao já famoso racha do Somos, quando também saem da organização as integrantes do subgrupo lésbico-feminista, adotando a partir de então o nome de Grupo Lésbico-Feminista (p. 8). As lésbicas do LF de fato apenas ratificam, com sua saída, uma situação que já vinha ocorrendo naturalmente, ou seja, sua separação do grupo misto de gays e lésbicas, por considerarem fundamental um grupo exclusivo, e sua aproximação do Movimento Feminista. Após essa separação, o grupo lésbico-feminista vai se aproximar ainda mais do Movimento Feminista, sofrer um racha em outubro de 1980, onde perdeu duas de suas integrantes destacadas, e ter ainda uma sobrevida de 8 meses, período em que lançou o tabloide Chanacomchana, encerrando-se em junho de 1981. Um resumo de sua trajetória pode ser lido aqui.

O coletivo do Lésbico-Feminista se dispersou no exato momento em que algumas de suas integrantes conseguiram até um espaço próprio, uma sede alugada na Rua Aurora, centro de São Paulo, em julho de 1981, o que mostra bem o descompromisso com o ativismo da maioria de suas componentes. Grupos quando adquirem um espaço próprio tendem a ganhar mais estabilidade e até crescer e não se diluir. Mas o fato é que o MHB florescente dos anos 79 e 80 já entra em crise em meados de 81 e vai refluindo progressivamente até 1984. Duas remanescentes do grupo lésbico-feminista (LF), eu mesma e Rosely Roth, após tentativas infrutíferas de reunir ex integrantes do grupo, em torno ao menos da publicação de um novo número do Chanacomchana tabloide, decidimos deixar o passado para trás e seguirmos em frente a princípio praticamente sozinhas, posteriormente com outras lésbicas que vieram a se aglutinar ao novo coletivo que formamos, o Grupo Ação Lésbica Feminista, registrado em cartório no dia 17 de outubro de 1981, com o nome fantasia de Grupo Ação de Liberação Feminista devido à ainda forte lesbofobia do período. O histórico do GALF pode ser lido aqui.

Final: contextualizando o GALF e o boletim Chanacomchana

O que me levou à escrita desse texto, repetindo, foram as inacreditáveis tentativas de sequestro da história do GALF, do Chanacomchana, da memória da Rosely Roth e do Dia do Orgulho Lésbico com vistas a reescrever a história da organização lésbica, tentar usurpar direitos autorais, e apagar reais protagonismos substituindo-os por farsantes de vários níveis. O objetivo dessas tentativas é anacrônica e desonestamente inserir o GALF, suas ações e produções, numa historieta de resistência à ditadura militar que teria tido uma política de estado contra homossexuais durante o período do regime autoritário. Após descrever as ações gangsterísticas de vários agentes dessa história surreal, me embrenhei brevemente na história do contexto político-econômico e sociocultural e comportamental dos anos 60 e 70 até 1985 para chegar ao contexto específico do GALF e do Chanacomchana, em particular, objetivo de cobiça de uma vigaristada impressionante.

O GALF ainda foi tributário da visão contracultural não mais no aspecto da tríade “sexo, drogas e rock’n’roll”, mas no que dizia respeito a ideia de politização do cotidiano, onde a (homo) sexualidade também era política, como negação da heterossexualidade compulsória, onde se buscava mais horizontalidade nas relações, sem hierarquias e lideranças, e se sonhava com a união das ditas “minorias” na invenção de uma nova política que prescindisse do atrelamento a partidos políticos e seus projetos de poder. O texto Autonomia de Rosely Roth, que ilustrei com uma charge irônica (ver abaixo) contra a ideia de “revolução” da velha esquerda, representada pelo velho Marx em papo com outro patriarca muito influente, seu Freud, demonstra bem isso. Cito um trecho:
[...] acredito que toda e qualquer mudança depende de cada um de nós e, neste sentido, repito: os grupos verdadeiramente autônomos, organizados conjuntamente, na unidade da diversidade, podem, através da prática interna levar à transformação total da sociedade. Os movimentos autônomos provam que é possível militar e atuar como força alternativa aos partidos. Não dá mais para acreditar em tomada de poder. Então para que os partidos?

O Chanacomchana por sua vez é tributário da perspectiva “Do it yourself” (faça você mesmo) igualmente presente nos trabalhos da geração mimeógrafo (como comentei) e dos punks, também contraculturais, mas raramente citados como tais já que, ao contrário dos hippies, não eram dados ao “paz e amor”. Inclusive sua estética de colagens e mistura de tipos gráficos, com uma miscelânea de textos políticos, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas) reflete a mentalidade contracultural bem como sua venda corpo a corpo junto ao público-alvo. Venda corpo a corpo que geraria inclusive o happening do Ferro’s, sendo a própria definição de happening algo bem contracultural. Nada a ver com o belicoso papo de levante que inventaram agora de quem não entendeu o espírito da coisa. Nossa luta nunca foi armada.

No contexto macropolítico, o GALF e o Chana surgem no período da chamada redemocratização do Brasil, quando o país caminhava a passos largos para o fim do regime militar. Quando passei a produzir o primeiro boletim Chanacomchana, no final de 1982, nós acabáramos de ter tido eleição direta para todos os cargos eletivos, menos para prefeitos de capitais, inclusive para governadores (ver Debates Marcaram Redemocratização nas Eleições), tanto que logo em seguida estaríamos nos reunindo com o governador Franco Montoro para reivindicar o fim da abordagem preconceituosa da polícia contra gays e lésbicas.

Já vi principalmente gente mais jovem que fica impressionada com o fato de a polícia ter sido chamada para nos retirar do Ferro’s Bar e não ter feito nada. Isso se dá porque receberam uma deseducação que lhes meteu na cabeça uma versão hiper e unidimensionada da ditadura militar, onde só os aspectos da repressão foram salientados como se houvessem estado presentes no cotidiano de todos os brasileiros até as vésperas da redemocratização. O período do governo Figueiredo pode ser inclusive definido como uma democratura novamente, evoluindo para uma democracia eleitoral. Já não estávamos sob o AI-5, rolara a anistia, liberando presos políticos e permitindo a volta dos exilados, voltara o pluripartidarismo, a possibilidade de manifestação sem prisão. Sobrava do entulho autoritário sobretudo a censura, embora muito amainada, que seria renegada com a Constituição de 1988.

Em 1983, multidões foram as ruas reivindicar o retorno do voto direto para eleição do presidente da República, na campanha das Diretas Já, culminando com a manifestação do Anhangabaú, da qual participei com Rosely, em abril de 1984. Embora a emenda para a eleição direita não tenha passado no Congresso, pela via indireta foi eleito o primeiro presidente civil, Tancredo Neves, após 21 anos de generais-presidentes. Infelizmente, Tancredo faleceu antes de assumir e, em seu lugar, ficou José Sarney, político do PSD (anterior Arena) e depois Frente Liberal.

Imaginar, portanto, que no contexto da redemocratização, quando já tínhamos até representação política para ir conversar com um governador de estado, o Chanacomchana poderia ter sido perseguido e reprimido sem que isso tivesse virado notícia é muito anacronismo e vigarice. Como relatei no tópico sobre as tentativas de sequestro do Chana, eu teria sido a principal vítima de uma repressão por já ter sido presa e fichada no episódio da invasão da PUC-SP (22/09/1977). Fora isso, imagine-se só se um grupo que costumava vir a público para denunciar as discriminações que sofria, como no protesto do Ferro’s Bar e no nosso despejo da casa (CCC 7, p. 8) que deveria ter sido para todos os grupos feministas de Sampa, mas virou “propriedade” de um só, iria silenciar sobre perseguições e discriminações que estivesse sofrendo de parte do Estado. Aliás, a censura sofrida por minha música com Gisele Fink, Fanchitude de Fancha, apresentada durante o I Festival das Mulheres nas Artes, em setembro de 1982, foi devidamente registrada no primeiro Chana (ver aqui). 

Fora isso, alguém leu em algum Chanacomchana qualquer notícia sobre perseguições e repressões que estaríamos sofrendo dos militares? Claro que não porque tal fato não ocorreu em momento algum. Por isso, não tem sentido se colocar o Chanacomchana como resistência à ditadura já que, de fato, como disse o Ney Matogrosso, nós inclusive estávamos cagando para ela. Ou, como disse a Ro Ro, em 2014, nós não estávamos tragicamente ligadas a ela. Salientando que eles se referiam ao período do AI-5, não ao período da redemocratização.

Agora, mesmo falando do período do AI-5, a ideia de que nós vivíamos num regime totalitário nesse espaço temporal, como na Gilead do Conto da Aia ou como algumas relíquias macabras ditas comunistas que ainda rolam por aí, é absurda. Os militares instalaram um regime autoritário no Brasil, com apoio de vários setores da sociedade temerosos de que Jango encaminhasse o país para alguma versão tupiniquim da URSS, China ou Cuba. Deveriam ter feito o impeachment do cara, como manda o figurino, mas preferiram seguir a tradição autoritária brasileira e deram mais um dos golpes que permeiam nossa história. Depois muitos se arrependeram, pois inclusive acabaram vitimados pela ditadura, mas aí já era tarde.

De qualquer forma, os militares não impuseram um regime totalitário por aqui nem no governo Médici, o mais repressivo de todos. Para começar, com perdão da obviedade, regimes totalitários não admitem partido de oposição como o MDB. Mesmo que, a princípio, o partido tenha sido mais pró-forma, porque as eleições eram manipuladas e havia voto indireto para alguns cargos, quando os militares perderam o prestígio com o fim do milagre econômico, já em 1974, ele se torna um real partido de oposição e passa a ter papel importante na derrocada do regime.

Quanto ao povo em geral, os militares limitaram nossos direitos políticos, de cidadania e nossa liberdade de expressão, mas não invadiram nossa privacidade, nossa individualidade, como é típico dos regimes totalitários, onde há inspetores de quarteirão nos bairros, vizinhos fazem cursos para aprender como dedurar vizinhos, e o Estado decide até a roupa e o corte de cabelo das pessoas. Inclusive, graças ao sucesso do milagre econômico, mesmo nos anos de chumbo, a maior parte da população estava bem satisfeita com a situação, porque havia boa oferta de emprego para todos, e a classe média estava se beneficiando da entrada do país na sociedade de consumo.

Citei o depoimento de várias pessoas a respeito do período para trazer uma outra perspectiva sobre uma realidade abordada hoje exclusivamente do ponto de vista da censura, repressão e tortura criando um quadro bem distorcido da História. Resumo também um pouco da minha experiência sobre o assunto, experiência comum a todos do meu entorno social e geracional. Para nós, que não estávamos de qualquer forma em oposição ao regime, a vida corria normalmente (só tive problemas com repressão quando me somei ao movimento estudantil em 1977 em protestos nas ruas de SP). Os jovens trabalhavam e/ou estudavam, iam ao cinema, ao teatro, a exposições de arte, a shows, a casa dos amigos, para tomar todas, tocar e cantar músicas. Fazíamos passeios pela cidade ou viagens interestaduais. Não havia blitz a cada esquina ou nas divisas dos estados. Como todos os jovens dos anos 70, estávamos mais preocupados com sexo, drogas e rock’n’roll e em ir pra Salvador do que com a ditadura, embora não fôssemos alheios a ela. Estávamos todos imbuídos dos valores da Contracultura, em maior ou menor grau, que nos permitia fazer uma revolução social e comportamental debaixo do nariz da ditadura e não nos deixava tão vulneráveis à repressão. Sem falar que foi a Contracultura a nos trazer a possibilidade do questionamento do machismo e do heterossexismo tão fortes do período e a consciência ecológica.

E o machismo e o heterossexismo são as lembranças mais amargas que guardo daquela época. Nós fomos uma geração de ruptura com um conservadorismo muito entranhado não só na sociedade brasileira, mas em todo o mundo ocidental. Mulheres eram consideradas perdidas e não mais achadas se fizessem sexo antes do casamento. A homossexualidade era doença, sem-vergonhice ou pecado, e gays e lésbicas não tinham nem a cidadania limitada dos outros brasileiros. Sofri preconceito e discriminação de meus próprios pais, fui enviada a psicólogos, para me curar, e aguentei ataque lesbofóbico na rua. Homens importunavam mulheres até quando estavam dirigindo porque ainda não era algo tão comum.

Nada disso, porém, era decorrente de ação específica do Estado militar, mas sim reflexo da sociedade conservadora onde ele próprio estava inserido e de cujos valores compartilhava. Inclusive a própria esquerda ortodoxa, a da luta de classes, era bem homofóbica. Para essa esquerda, em geral, feminista era burguesa desocupada e homossexualismo fruto da decadência da burguesia. Em termos de organização, consideravam as lutas das ditas minorias como divisionistas ou menores. Vale também lembrar que órgãos de informação, mesmo em regimes democráticos, monitoram pessoas, grupos e movimentos sociais que julguem representar rupturas da ordem constituída. Nos EUA, o FBI monitorava e inclusive agia contra integrantes dos movimentos sociais de lá nos anos da Contracultura (ver Os 7 de Chicago). O FBI monitorava até a Aretha Franklin e a Marilyn Monroe. Sem falar da célebre caça aos comunistas do macartismo que nem por isso representou as ações de um estado autoritário, sendo os EUA considerados a democracia mais estável do mundo, apesar do trumpismo recente.

Na verdade, o que temos nessa história de tentativas de sequestro do GALF, do CCC, do 19 de agosto e da imagem da Rosely Roth, fora o fator Fernandes, é a ação de remanescentes ou herdeiros daquela velha esquerda, que levou ao racha do Somos, no afã de fazer passar suas narrativas ideológicas como História. Como já disse anteriormente, a Contracultura dos anos 50-60-70-início do 80, transformou costumes e até a própria concepção de política, mas terminou de vez no início da década de 80 com a chegada da AIDS que põe fim a revolução sexual.

Por outro lado, a esquerda ortodoxa se viu livre dos militares, mas quase em seguida teve que amargar a queda do Muro de Berlim, o fim da União Soviética e da Guerra Fria. Na Europa, a esquerda evoluiu para a social-democracia contemporânea com seus enormes estados de bem-estar social, mas sustentados por economias de mercado das mais livres do mundo e com respeito real à democracia. Na América Latina, contudo, a esquerda ortodoxa se rearticulou a partir da década de 90, mas permaneceu estagnada em ideias da década de 60, mudando apenas a forma de chegada ao poder, agora pela via democrática, mas tendo-a como valor estratégico e não universal, e incorporando as demandas das chamadas minorias que, por sua vez, descambaram para as pós-verdades da vida e políticas de cancelamento. Triste ver movimentos que nasceram no bojo libertário da Contracultura censurando todo o mundo com base no ofendidismo, no vitimismo. Seria impensável, para a geração dos anos 70 e 80, censurar pessoas e mídias por palavras e opiniões. Naquele tempo, isso era coisa dos generais.

Não por menos, a capa de uma publicação da Facção Homossexual da Convergência Socialista, de 1981, é praticamente a mesma do livro de Renan Quinalha e James Green, “Ditadura e homossexualidades: Repressão, Resistência e a Busca da Verdade” (ver abaixo). Essa foto de uma manifestação do 1 de maio de 1980, em São Bernardo do Campo, vem aparecendo também em outras mídias, e onde ela aparece quem está falando são os remanescentes e herdeiros daquelas mesmas ideias que não tiverem vez no início do MHB. Essa manifestação do 1 de Maio foi um evento isolado dentro do conjunto das movimentações do MHB que, como bem disse, tinha matriz contracultural, libertária e não queria se ver atrelado à chamada luta maior.


Nesse próprio livrinho Homossexualismo: da Opressão à libertação, os autores, homossexuais ditos socialistas, confirmam o que digo sobre a visão prevalente no começo do movimento.
Nos primeiros debates sobre o movimento homossexual levados nas universidades era quase inevitável que alguém se manifestasse para colocar, se a luta homossexual não seria uma questão a ser resolvida depois da transformação política, econômica e social do sistema, que culminaria no desaparecimento do Estado. Implícita nesta colocação, no entanto, estava sempre a perspectiva de "solução" da questão homossexual através do afogamento dos homossexuais, que também desapareceriam.

A este tipo de questionamento seguiam-se, também inevitavelmente, frágeis contestações de algum grupo do movimento homossexual com suas invariáveis e acaloradas argumentações contra a esquerda, que "não serve para nada" e que "em Cuba, por exemplo, levaram os homossexuais para cortarem cana, depois da revolução".

O movimento homossexual, ainda segundo a frágil argumentação dos grupos que dirigiam esses debates, seria um novo fenômeno social de marginalizados ou minorias, que em seu conjunto formam a maioria da sociedade. Os homossexuais, ao lado das mulheres, dos negros, dos índios e ecologistas, formariam o cenário das lutas reivindicatórias dos anos 1980, à revelia e quase contra qualquer outro movimento político ou social que lutasse pela transformação do sistema.

O balanço destes debates também aparecia como inevitável: as "lutas maiores" relegavam aos homossexuais. o espaço de "luta menor" e, portanto, de pouca importância, ou pelo menos, de pouca importância imediata. Sobrava, então, o movimento homossexual prensado, por um lado, pela esquerda ortodoxa com sua moral burguesa (?), que ridicularizava o movimento e, por outro, pelos grupos de homossexuais que ignoravam qualquer discussão sobre uma possível combinação da luta homossexual no contexto da luta de todos os explorados e oprimidos.

No mesmo ano de 1980, os debates dentro do próprio movimento homossexual começaram a tomar outros rumos. Preocupava ao movimento uma suposta postura oportunista das esquerdas brasileiras em relação à discussão homossexual. Essa preocupação leva todos os grupos do movimento homossexual a colocarem-se "contra qualquer tipo de poder" (menos o da ditadura militar!) e a senha para esses grupos passou a ser "autonomia".
A partir de meados de 81, o Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) já entra num refluxo que vai atingir seu ápice em 1985, com os grupos remanescentes em todo o Brasil podendo ser contados nos dedos de uma mão. A CS deixa o Somos antes de ele terminar, em 1983, abrindo espaço para algum retorno da perspectiva contracultural, sob o mentorado do argentino e barroco Nestor Perlongher. O próprio Perlongher e outros integrantes do Somos vão participar do protesto do Ferro’s que, entre outros marcos históricos, representou o canto do cisne tanto do Somos quanto de sua contraparte autonomista, o grupo Outro Coisa.

Mas o discurso da facção convergente mostra bem que esse pessoal era uma nota fora no primeiro ciclo do movimento que começa em 1978 e vai até 1984. De fato, a maioria dos grupos do período se colocava contra os pressupostos da CS e pregava a autonomia. Em suas “Teses para a Libertação Homossexual – II", a CS já demonstrara seu pendor para a cooptação do incipiente MHB. Temia-se então o que havia ocorrido com a revista Versus, editada em São Paulo de 1975 a 1979, que tinha uma levada contracultural e inovadora e acabou reduzida a um veículo de difusão e propaganda partidária da CS.
Os primeiros 23 números de Versus foram publicados sob a coordenação de seu fundador e editor chefe, Marcos Faerman. Os 11 números restantes saíram sob as ordens da organização trotskista Convergência Socialista. Durante sua primeira fase, a aposta ideológica de Versus se realizou com inegável renovação da linguagem jornalística e editorial, meticuloso esforço criativo e cuidado gráfico especial. A perda dessas características foi ocorrendo à medida que a revista passava das mãos de Faerman e sua equipe de colaboradores ao controle da Convergência Socialista, que acabou por reduzi-la a um veículo de difusão e propaganda partidária.[14]

[14] Crespo, Regina Aída. Versus: um espaço da América Latina na imprensa alternativa (1975-1979), p. 284. Disponível em: <https://bit.ly/3tJRJV4>

 Voltando ao MHB, a maioria dos ativistas do período realmente percebia os homossexuais, ao lado das mulheres, dos negros, dos ecologistas, como um novo fenômeno social que criaria formas de fazer política em bases distintas das da velha esquerda (vide o texto Autonomia da Rosely Roth).

Ainda que isso tenha se mostrado ilusório em alguns aspectos, basta ver a invisibilidade que o movimento feminista impôs às lésbicas em seu interior, em especial na década de 80, a ideia de autonomia nada tinha de frágil. E, não, ela não estava ligada a ideia de recusa à interação com a política tradicional, o que seria impossível inclusive pela necessidade da conquista de direitos. Mesmo com o movimento tomando um caráter mais reformista, após a chegada da AIDS, porém, a importância da autonomia dos grupos em relação a partidos políticos permaneceu presente.
Aliás, a afirmação da autonomia era tão pertinente que, após hiato de cerca de uma década (1983-1993), o ressurgente movimento GLT da década de 90 vai ser progressivamente atrelado ao PT e a outros partidos congêneres a ponto de serem chamados jocosamente, com o passar dos anos, de movimentos sociais amestrados do PT. Hoje me impressiona ver os jovens acharem perfeitamente natural partidos organizarem até eventos de dias históricos dos movimentos, como o 8 de Março (Dia Internacional da Mulher). Não têm sequer ideia do que seja um movimento de fato.
Na história desses sequestros e reescrituras do meu trabalho e da História do movimento lésbico, que denunciei neste texto, retomo o pra lá de indigesto caso da mitômana Marisa Fernandes, responsável pelo início dessa baixaria já nos idos dos anos 90 quando retornou à militância por razões que a própria razão desconhece. Esse processo começa com sua volta, primeiro no entorno do movimento feminista, depois no movimento homossexual que renascia em 1993 como movimento de gays e lésbicas. Fernandes fez parte do primeiro coletivo lésbico, o Grupo Lésbico-Feminista, que surgiu como subgrupo do Somos, em maio de 79, tornou-se autônomo em maio do ano seguinte, sofreu um racha, em outubro de 1980, e se diluiu em junho de 1981. Como reconheceu na tese “Imprensa Lésbica No Brasil” (1981-1995), de Paula Silveira Barbosa (2019), Fernandes se afastou de coletivos por quase toda a década de 80 e fundou o Coletivo de Feministas Lésbicas (CFL) em 1990 e o registrou em 1994. Tendo estado ausente por praticamente toda a década de 80, ela evidentemente não poderia ter participado do Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF), fundado em outubro de 1981 e findo em março de 1990. Muito menos poderia ter sido organizadora ou editora do Chanacomchana.

Não obstante esse fato, não fez outra coisa, desde que retornou à militância, em particular a GLT, a partir de 1993, do que tentar se meter no GALF, onde nunca esteve, se dizer até editora do Chanacomchana, com o qual jamais colaborou sequer com um artigo e participante da manifestação do Ferro’s onde também não esteve nem por perto. Com minha ausência da militância presencial desde 2009, como relatei na introdução deste texto, ela se sentiu mais à vontade para aprofundar seu projeto de roubo da minha produção como militante e editora de publicações do GALF. Vale destacar, porém, que Fernandes só teve a possibilidade de inventar falsas identidades e se colocar como protagonista do que não viveu e não fez porque encontrou (e encontra) terreno fértil para isso. Sobretudo a partir de 2014, quando lançaram a narrativa de que haveria uma política de Estado contra gays e lésbicas na época da ditadura, ela encontrou palco e apoio de gente fina como ela para suas performances teatrais e suas tentativas de roubar o Chanacomchana e se colocar como integrante do GALF. Também, óbvio, tem obtido vantagens pessoais às custas do meu trabalho e é difícil para parasitas largar o osso. Mas vai ter que largar.

Fernandes sempre foi uma pessoa de baixíssimo nível moral e intelectual que nunca fez nada de significativo e vive de interpretar personagens e de usurpar trabalho alheio. Não fosse tão mau-caráter, seria caso de ter pena porque é triste, por mediocridade, uma pessoa passar a vida como uma fraude. Ao morrer, irá para o oitavo círculo do inferno de Dante, onde se encontram os falsificadores. Forçoso concluir que nunca fez nada de significativo ao se observar que o Coletivo de Feministas Lésbicas, que parece ter durado décadas, surge como mera referência em seu currículo. E o subgrupo lésbico feminista (LF) do qual participou, embora de forma secundária, a não ser em seu último semestre, agora ela tenta transformar em Grupo de Ação Lésbica Feminista que teria surgido após o racha do Somos, quando o grupo, como se pode constatar pelo link ao lado na pág. 8 do Lampião da Esquina, tornou-se simplesmente Grupo Lésbico-Feminista, identidade que manteve até seu final. Como esse grupo muito anárquico assinou documentos com 10 assinaturas (e contando...) que inclui “Grupo de Ação Lésbica-Feminista”, ela e sua turma pinçaram esse termo, entre os outros, para Fernandes poder se dizer cofundadora do GALF, o grupo que fundei com Rosely em outubro de 1981. 

Não tanto tempo atrás, porém, ela se dizia cofundadora do Lésbico-Feminista e do GALF (alimento um dossiê sobre a figura). Tudo isso por sua obsessão em integrar postumamente o GALF pelo qual nunca teve qualquer interesse enquanto vivo. Recentemente, em sua “biografia”, o LF e o CFL inclusive sumiram, e ela se apresenta como integrante do Somos, da Facção Lésbica-Feminista (?) e do GALF. Junto com seus mais recentes compas & parças, criou também a personagem da lutadora contra a ditadura e – é de pasmar – perseguida política. Isso demonstra que o desrespeito dessa gente pela memória e a luta verdadeira de ativistas atinge todo o espectro político. Colocar uma oportunista, vigarista, como Fernandes, cuja única luta na época da ditadura era para se manter um pouco sóbria, ao lado de pessoas que de fato foram até presas e torturadas pela repressão é da ordem da infâmia. Aliás, é da ordem da infâmia tudo que a envolve.  



Por último, o propósito deste texto, como disse a princípio, foi denunciar a armação ilimitada para sequestrar a história do GALF, do Chana, do Dia do Orgulho e da imagem da Rosely, não só pela parte que me toca naturalmente, mas também para evidenciar os processos degenerativos de um movimento que já foi um sonho, mas virou do avesso.

O Grito, Edvard Munch
Foi sob o signo do espanto que juntei as peças desse esquema de usurpação para formar o quadro todo. Ele mostra que as pessoas expostas aqui, em sua maioria sequer contemporâneas do GALF, ausentes da militância na década de 80, precisamente por isso, querem roubar trabalho e história alheia a fim de encaixá-los em narrativas ideológicas contrárias à história real e à perspectiva política da organização e suas produções. Fora jovens que entraram de gaiatas nesse navio, cabeças feitas por velhas velhacas.

Cumpri então o dever do registro dessa lástima toda, mas consciente de que é preciso ir além da exposição de seus agentes, pois, para quem age como relatado, denúncias são palavras ao vento. Não foi a primeira vez que denunciei as apropriações indébitas da mafiosa Fernandes, e de nada adiantou. Esses tempos de pós-verdades, de veritafobia imensa, facilitam a vida dos picaretas. Meu trabalho, por outro lado, nunca teve mentiras e farei o possível e o impossível para mantê-lo íntegro bem como a memória de Rosely agora usada para referendar coisas com as quais ela jamais concordaria se estivesse viva e lúcida. Termino afirmando que causas justas não precisam de mentiras para existir. Quando as mentiras prevalecem é porque algo de essencial se perdeu definitivamente. 

Fica aqui também um convite para que todos leiam mais sobre a Contracultura não só por sua abrangência temporal, sociocultural e comportamental mas também por sua participação decisiva para o ressurgimento ou surgimento dos movimentos sociais contemporâneos. Para o bem e para o mal, é impossível entender o mundo em que vivemos hoje sem conhecer esse fenômeno político.

Míriam Martinho
São Paulo, 18 de novembro de 2022


Dedico este texto à memória da musa do desbunde, Gal Costa, que acaba de partir. Ela iluminou com seu canto e presença as nossas vidas principalmente na década de 70 quando produziu seus discos mais inovadores e instigantes, em particular o Fa-Tal: Gal a Todo Vapor. Assistíamos aos shows dela, sentados no palco, em vez de nas cadeiras da plateia e íamos tietá-la no camarim. Saudades imensas dela e daquela época de tanta criatividade e tantos sonhos. Eu também estava cagando para a ditadura.

Sugestões bibliográficas sobre Contracultura e Anos 70 no Brasil

Pasta Contracultura (clique aqui):

Kaminski, Leon Frederico. Contracultura no Brasil, anos 70: circulação, espaços e organização, 1. ed., 234 p., Curitiba [PR], Editora CRV, 2019

Pimenta e Silva, Marcelo. A contracultura e a imprensa alternativa: revolução social através da informação. Revista Contemporâneos, 2010.

Buarque de Holanda, Heloísa. Impressões de Viagem: CPC, Vanguarda e Desbunde. Pimenta e Silva, Marcelo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004

Flor do Mal, número 4

Navilouca - 1974



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