
Conheci Vange Leonel, aos 18 anos, quando ingressou no Grupo Lésbico-Feminista (LF, 1979-1981), o primeiro grupo de ativistas lesbianas brasileiro, no primeiro semestre de 1981, em São Paulo. A organização tinha um subgrupo chamado LF Artes que reunia as integrantes do LF que gostavam de poesia, música, artes plásticas, fotografia. As garotas animavam as festas do grupo com boa cantoria ao som de violões. Desse subgrupo, três integrantes partiram para uma carreira profissional como musicistas, compositoras. Uma delas foi exatamente a Vange Leonel.
Após a diáspora promovida pelo fim do Grupo Lésbico-Feminista, em meados de 1981, apenas algumas de suas remanescentes permaneceram como ativistas lesbianas e formaram outro coletivo, o Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF, 1981-1989), para dar continuidade ao trabalho iniciado pelo LF. A maioria das integrantes da entidade, contudo, dispersou-se ou no movimento feminista ou no que a gente chamava na época de clandestinidade, ou seja, deixou de militar e foi seguir suas vidas particulares simplesmente.
No caso de Vange, ainda na década de 1980, ela integrou a banda Nau, formada também por Beto Birger (baixo), Zique (guitarra) e Mauro Sanches (bateria). Com essa banda, gravou o disco Nau, em 1987. Depois seguiu carreira individual, com os discos Vange Leonel, de 1991, que tem o hit Noite preta, e Vermelho, de 1996. Teve participação também em discos de outras bandas e coletâneas.
A partir de 1995, assume-se como lesbiana e começa a desenvolver uma espécie de ativismo individual, com a manutenção do blog Cio, no site do Mix Brasil, e a publicação de livros e peças que tematizavam a questão lesbiana e da mulher. Por exemplo, Lésbicas, Grrrls: garotas iradas, As sereias de Rive gauche e Balada para as meninas perdidas.
Em 1996, Vange concedeu uma entrevista para a
revista Um Outro Olhar, (edição de número 25), publicação que editei de 1987 a 2002. Nessa entrevista, ela falava um pouco de sua carreira, suas influências musicais, do mercado de música no Brasil, do lançamento do seu
CD Vermelho, do seu
coming out como lesbiana e do machismo das bandas de rock brasileiras.
Resgato a entrevista como uma homenagem à Vange, uma das artistas que primeiramente se assumiu como lesbiana no Brasil. Abaixo da entrevista, posto também alguns vídeos de sua época na banda
Nau, do hit
A Noite Preta e do CD
Vermelho. Fiquei tristemente surpresa com sua partida precoce. Que descanse em paz na ilha de Lesbos de seus sonhos.
Míriam Martinho, 16 de julho de 2014
A gata da Noite Preta
Um Outro Olhar: Vange,
primeiro, para esquentar, qual sua idade e signo?
Vange: Tenho 33 anos e
sou do signo de Touro com ascendente e Lua em Libra.
UOO: Depois, quando você começou a compor
músicas? Mais detalhadamente, quando passou da poesia para a música? Ou
simplesmente não houve passagem, mas um simples continuum?
Vange: Comecei a compor bem cedo. Na verdade,
me lembro de uma vez quando tinha 5 anos mais ou menos e comecei a cantarolar
uma melodia inventada na minha cabeça. Virei para minha mãe e perguntei:
"Mãe, se são só 7 notas como que as pessoas podem fazer tantas músicas
diferentes?" Foi aí que começou minha curiosidade com relação à música.
Tinha mais ou menos uns nove anos quando minha prima Quilha me levou para
assistir ao show Gal A Todo Vapor. Foi determinante para mim ter
visto esse show da Gal. Foi aí que eu decidi ser cantora e comecei a aprender
violão, depois piano, e nunca mais larguei a música.
Ao mesmo tempo sempre adorei escrever. Uma coisa sempre esteve
muito ligada a outra. Eu inventava umas melodias e já ia pondo letras nas
minhas músicas. Para mim, poesia e música sempre estiveram juntas. A única
coisa que eu sempre senti falta ao escrever, era ver a reação da pessoa que
iria ler depois meus poemas. Por isso cantar acabou se tornando minha atividade
principal. Adoro estar no palco e sentir a troca com o público in loco, ao
vivo. Escrever é algo muito solitário.
UOO: Se ainda faz também poesia, qual foi o
último livro que publicou? Cite também os primeiros.
Vange: Nunca publiquei um livro. Quando era
adolescente fazia umas edições limitadas, em xerox, e as vendia pessoalmente.
Agora estou com um livro de poemas pronto para ser publicado, mas esse ano que
passou (1995) acabei não tendo tempo para me dedicar ao projeto. O livro se chama
Virtual Bilitis, e é inspirado no Canções de Bilitis, de Pierre Louis, que por
sua vez se inspirou na vida da poeta grega Safo. Ou seja, são poemas lésbicos,
poemas que falam do amor entre mulheres. Gosto muito do livro e estou louca
para publicá-lo logo.
UOO: E suas preferências musicais? Quem você
ouve? Quais as bandas, os artistas de que gosta? Quem lhe influencia na hora
de compor?
Vange: Nossa, são tantos... Eu procuro não me
fechar para nenhum tipo de música. Mas com relação ao meu trabalho,
especificamente, quem mais me marcou foi Gal, como inspiração primeira, pelo
jeito de cantar, a sensualidade e principalmente a atitude dela no palco. No
começo dos 70, ela era uma das grandes vozes da contracultura brasileira. Me
lembro do show Índia, ela dançando descalça, rodando a saia, uma verdadeira
baiana em transe, e o batuque comendo solto no palco. Cantava compositores
novos como Macalé, Melodia, Caetano, caras que aprendi a gostar na voz dela.
Vozes femininas sempre me seduziram. Outro dia um amigo meu disse que acabamos
gostando mais de cantoras porque suas vozes talvez lembrem o canto de nossas
mães quando nos faziam dormir... O mais curioso: Gal foi uma influência forte
tanto para mim como para a minha parceira nas músicas, a Cilmara Bedaque.
Comecei a trabalhar com a Cilmara tipo em 89, quando ainda estava com o Nau, e
foi uma surpresa maravilhosa saber que tínhamos muitos gostos musicais em
comum. Outra pessoa que de certa maneira influenciou bastante o meu trabalho de
compositora foi a Marina. Quando escutei suas músicas, fiquei absolutamente
identificada. A batida do violão dela é única e cheia de feeling e o que ela
diz nas músicas tão pessoal, vai fundo, um mergulho corajoso. Eu gosto e me
identifico com isso. Fora que ela também tem esse negócio de trabalhar em dupla
com o Cícero, que é irmão dela, meio como que a minha parceria com a Cilmara,
já que a Cil faz mais as letras e a gente discute bastante os temas, o
que vai dizer na música, e acabamos sempre por escolher temas ligados à
nossa experiência. Tudo o que dizemos em nossas canções é fruto de um olhar
para dentro. Gosto do jeito como Clarice Lispector escrevia, a experiência
pessoal e íntima, uma fonte enorme e inesgotável de matéria prima para canções.
UOO: Sua carreira se iniciou com a banda Nau
e, depois, estourou para o sucesso com o hit Noite Preta. Fale um pouco dessa
trajetória e de sua relação com a fama.
Vange: Tento fazer minha fama em cima do meu
trabalho. O grande problema que hoje em dia você primeiro precisa ser famoso
para depois poder mostrar o seu trabalho. Não pode, tá errado! Nego só
consegue lotar um teatro se já for famoso. Sabe aquele negócio de só contratar
se tiver experiência?? A mesma coisa. Um saco!!
UOO: Do hit Noite Preta até o CD Vermelho,
houve uma grande distância. Por que isso aconteceu? Desacordo com as gravadoras
ou um processo de gestação demorado? Fale um pouco sobre o novo álbum.
Vange: As minhas gestações são um pouco mais
lentas sim, mas o que aconteceu foi que teve todo um tempo para eu sair da Sony
e abrir minha própria gravadora. Trabalhar num esquema independente e sem
grana significa ter que desenvolver uma paciência oriental. As coisas levam
tempo, você faz shows que não são divulgados e, para o grande público, fica a
sensação que você desapareceu. As pessoas estão cada vez mais ficando dentro
de casa e tornando-se dependentes da noticia que chega até elas. Aí é o poder econômico que fala mais alto. Vermelho é um álbum corajoso, uma produção
independente minha e da Cilmara. Temos muito orgulho desse disco, as canções
falam de temas super-atuais e sensíveis, e recuperei uma coisa que tinha com o
Nau. um lance mais rocker. A faixa Vermelho fala sobre menstruação. Meninas
sobre meninas prostitutas. To Fora é uma balada de cortar os pulsos. O disco é
super-visceral e o show que eu to fazendo agora também. Dionísio puro.
UOO: Você já gravou um vídeo-clipe ou pensa
em gravar um vídeo-clipe para divulgar alguma música do CD?
Vange: Fizemos o clipe da canção Vermelho. Deve
ser lançado no final de janeiro, começo de fevereiro. O clipe foi dirigido pela
Cilmara Bedaque, minha parceira, pela Ana Sardinha e pela Maria de Oliveira,
todas muito amigas minhas. A Cilmara já tinha dirigido o clipe da Noite Preta,
junto com o Luis Ferr. Super tranquilo para mim que ela dirija os clipes,
porque ela é autora da música e de uma certa maneira já faz a letra pensando
na imagem que virá depois. A adesão da Maria e da Ana, que trabalham em
publicidade e cinema, completou o que já era ótimo. Foi muito bacana
trabalhar com esse trio de diretoras. Hoje em dia, fazer vídeo-clipe no Brasil
não é fácil, já que fizemos em l6 mm, e cinema é uma coisa muito cara. Fizemos,
graças à ajuda e colaboração de muitas pessoas, um clipe a custo super-baixo.
Adorei fazer o clipe. Principalmente uma cena em que eu estou numa banheira.
As cenas que minhas três diretoras bolaram para mim são surpreendentes. Mal
posso esperar para ver esse clipe no ar! E garotas, o clipe só vai pró TOP 20
se vocês pedirem!
Eu nunca achei que ser lésbica fosse algo ruim. Daí eu nunca escondi nada. Apenas no começo da minha trajetória como figura pública, eu silenciava a esse respeito. Até que numa determinada hora, achei ridículo não tocar no assunto. Não levanto nenhuma bandeira e nem chego me apresentando: "Prazer, Vange, cantora e lésbica". Mas com certeza o fato de existirem pessoas públicas revelando sua homossexualidade só ajuda. Mostra que não tem nada de mais. Normal.
UOO: E, nas rádios, considerando toda a
pressão que as gravadoras fazem para determinar a programação, hoje voltada
para o gênero nordestino ou as misturas de rock com baião, você vê alguma
forma de furar o cerco pra divulgar um trabalho como Vermelho, independente,
ousado, com muito rock e temas ligados diretamente às mulheres?
Vange: Essa questão das rádios é tão espinhosa
quanto enigmática. Lógico que existem rádios mais comerciais e outras menos. A
grande questão para mim é que vivemos uma época onde as pessoas saem pouco de
casa, pelo menos nas grandes cidades. Proporcionalmente descobre-se menos
coisas. Assim como não existe mais aquela figura do caçador de talentos, que vai
descobrir o artista, o jornalista também está acostumado que as coisas cheguem
até ele e o telespectador comum só compra o disco de quem aparece na
televisão. Assim o poder econômico leva uma vantagem muito grande sobre outros
fatores, como talento, e mais ainda, merecimento.
UOO: O bom humor, as grandes sacadas
estão presentes em suas letras, além da liberdade como você trata os assuntos.
Esta é a vantagem de gravar um disco independente?
Vange: Não. Essa é a vantagem de ter
descoberto que a melhor coisa do mundo é ser o que se é, e não procurar
corresponder ao que esperam que você seja.
UOO: Mas, considerando as críticas positivas
que Vermelho vem recebendo, se pintar algum convite de uma grande gravadora
para fazer um trabalho mais comercial, você topa?
Vange: Claro! Nunca tive nada contra trabalhar
associada a grandes gravadoras. Já lancei pela CBS e pela Sony e aprendi
muito. Só não posso ficar parada enquanto espero que uma das 5 grandes resolva
me contratar.
UOO: No exterior, mais e mais cantoras vêm
assumindo suas relações com mulheres, tais como kd.lang, Melissa Etheridge,
etc... Aqui no Brasil, você é uma das poucas que fala da questão abertamente,
participando até de programas de TV sobre o assunto. Esta sua postura tem a ver
com o fato de você ter participado, no passado, de grupos organizados, como o
grupo lésbico-feminista (LF-79/81), ou simplesmente porque não vê razão para
esconder e acha que, como artista, pode ajudar a combater o preconceito?
Vange: O fato de eu ter participado do LF já
era resultado da minha completa descomplicação com relação a esse assunto.
Quando percebi que gostava de mulheres foi uma das descobertas mais
maravilhosas da minha vida. Não foi nada traumático. Era tão lindo descobrir o
que era amar, se apaixonar. A minha sorte é que meus amigos também achavam
lindo eu me apaixonar por garotas. Meus ídolos, tipo Janis Joplin, Gal,
Caetano, todos achavam lindo ser gay, aceitavam a homossexualidade própria ou
dos outros numa boa. Então eu nunca achei que ser lésbica fosse algo ruim. Daí
eu nunca escondi nada. Apenas no começo da minha trajetória como figura
pública, eu silenciava a esse respeito. Até que numa determinada hora, achei
ridículo não tocar no assunto. Não levanto nenhuma bandeira e nem chego me
apresentando: "Prazer, Vange, cantora
e lésbica". Isso é um rótulo. Minha sexualidade é bastante flexível e
inaprisionável, se é que existe essa palavra. Agora, faz outing quem quer! Essa
é uma questão muito pessoal. Primeiro porque suas preferências sexuais são
coisas muito íntimas e dizem respeito só a você. Tem pessoas que têm facilidade
em se expor assim. Outras não. Mas com certeza o fato de existirem pessoas
públicas revelando sua homossexualidade só ajuda. Mostra que não tem nada de
mais. Normal.
UOO: No cenário internacional, na área
musical, as mulheres estão acabando com a supremacia masculina via trabalhos
fortes e pessoais, como as já citadas k.d.lang, Melissa Etheridge e Courtney
Love, Sheryl Crow, Alanis Morissette e mesmo Patti Smith que voltou a gravar.
Aqui, no Brasil, como você vê a situação das cantoras e compositoras em geral?
Existe muito machismo no meio artístico?
Vange: Atualmente, no cenário Rock'n Roll do
Brasil, o que existe é um sexismo enorme. Só dar uma olhada nos video-clipes
para ver que, quando aparece mulher, é aquela gostosona que rodeia os cantores
da banda. Uma gostosona não! Um monte delas fazendo papel decorativo com
bundas maravilhosas em primeiro plano. Lindo! Quem não gosta de um corpinho
bonito? Mas ando meio cheia desse discurso onanista cheio de testosterona de
alguns moleques do rock. Mas o Brasil sempre foi muito bem dotado de mulheres
cantoras e compositoras. Se você pensar em Maysa, por exemplo, ela era muito
mais porrada que Courtney Love. O que precisa acontecer é o Brasil descobrir as
mulheres do Brasil! As mulheres do Brasil precisam descobrir as mulheres do
Brasil. Fui no show da Alanis, em São Paulo, e o público era 70% formado por
garotas! Todas cantando as letras e entendendo o que estavam cantando. Eu
sinto mais ou menos a mesma coisa com relação ao meu público. As garotas
gostam de ver uma mulher que compõe e canta suas próprias músicas e pode
liderar uma banda. Porque isso se parece com elas. No fundo ninguém tá
querendo exemplos para seguir. Elas querem ouvir alguém que tem os mesmos
problemas que elas e que falem coisas que elas vivem e sentem.
Fonte: revista Um Outro OLhar, nº 25, Ano 10, Dez 96/Abril 97, por Luiza Granado e Angela Gonçalves
Publicado originalmente em 17/07/2014