Retrospectiva 2014: Em Memória: A gata da noite preta. Entrevista de Vange Leonel à revista Um Outro Olhar

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015


Conheci Vange Leonel, aos 18 anos, quando ingressou no Grupo Lésbico-Feminista (LF, 1979-1981), o primeiro grupo de ativistas lesbianas brasileiro, no primeiro semestre de 1981, em São Paulo. A organização tinha um subgrupo chamado LF Artes que reunia as integrantes do LF que gostavam de poesia, música, artes plásticas, fotografia. As garotas animavam as festas do grupo com boa cantoria ao som de violões. Desse subgrupo, três integrantes partiram para uma carreira profissional como musicistas, compositoras. Uma delas foi exatamente a Vange Leonel.

Após a diáspora promovida pelo fim do Grupo Lésbico-Feminista, em meados de 1981, apenas algumas de suas remanescentes permaneceram como ativistas lesbianas e formaram outro coletivo, o Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF, 1981-1989), para dar continuidade ao trabalho iniciado pelo LF. A maioria das integrantes da entidade, contudo, dispersou-se ou no movimento feminista  ou no que a gente chamava na época de clandestinidade, ou seja, deixou de militar e foi seguir suas vidas particulares simplesmente.

No caso de Vange, ainda na década de 1980, ela integrou a banda Nau, formada também por Beto Birger (baixo), Zique (guitarra) e Mauro Sanches (bateria). Com essa banda, gravou o disco Nau, em 1987. Depois seguiu carreira individual, com os discos Vange Leonel, de 1991, que tem o hit Noite preta, e Vermelho, de 1996. Teve participação também em discos de outras bandas e coletâneas.

A partir de 1995, assume-se como lesbiana e começa a desenvolver uma espécie de ativismo individual, com a manutenção do blog Cio, no site do Mix Brasil, e a publicação de livros e peças que tematizavam a questão lesbiana e da mulher. Por exemplo, Lésbicas, Grrrls: garotas iradas, As sereias de Rive gauche e Balada para as meninas perdidas.

Em 1996, Vange concedeu uma entrevista para a revista Um Outro Olhar, (edição de número 25), publicação que editei de 1987 a 2002. Nessa entrevista, ela falava um pouco de sua carreira, suas influências musicais, do mercado de música no Brasil, do lançamento do seu CD Vermelho, do seu coming out como lesbiana e do machismo das bandas de rock brasileiras.

Resgato a entrevista como uma homenagem à Vange, uma das artistas que primeiramente se assumiu como lesbiana no Brasil. Abaixo da entrevista, posto também alguns vídeos de sua época na banda Nau, do hit A Noite Preta e do CD Vermelho. Fiquei tristemente surpresa com sua partida precoce. Que descanse em paz na ilha de Lesbos de seus sonhos.

Míriam Martinho, 16 de julho de 2014


A gata da Noite Preta

Um Outro Olhar: Vange, primeiro, para esquentar, qual sua idade e signo?
Vange: Tenho 33 anos e sou do signo de Touro com ascendente e Lua em Libra.

UOO: Depois, quando você come­çou a compor músicas? Mais detalhadamente, quando passou da poesia para a música? Ou simplesmente não houve passagem, mas um simples continuum?

Vange: Comecei a compor bem ce­do. Na verdade, me lembro de uma vez quando tinha 5 anos mais ou menos e comecei a cantarolar uma melodia in­ventada na minha cabeça. Virei para minha mãe e perguntei: "Mãe, se são só 7 notas como que as pessoas podem fa­zer tantas músicas diferentes?" Foi aí que começou minha curiosidade com relação à música. Tinha mais ou menos uns nove anos quando minha prima Quilha me levou para assistir ao show Gal A Todo Vapor. Foi determinante para mim ter visto esse show da Gal. Foi aí que eu decidi ser cantora e come­cei a aprender violão, depois piano, e nunca mais larguei a música.

Ao mesmo tempo sempre adorei es­crever. Uma coisa sempre esteve muito ligada a outra. Eu inventava umas melo­dias e já ia pondo letras nas minhas mú­sicas. Para mim, poesia e música sempre estiveram juntas. A única coisa que eu sempre senti falta ao escrever, era ver a reação da pessoa que iria ler depois meus poemas. Por isso cantar acabou se tornando minha atividade principal. Adoro estar no palco e sentir a troca com o público in loco, ao vivo. Escrever é algo muito solitário.

UOO: Se ainda faz também poesia, qual foi o último livro que publicou? Cite também os primeiros.

Vange: Nunca publiquei um livro. Quando era adolescente fazia umas edições limitadas, em xerox, e as vendia pes­soalmente. Agora estou com um livro de poemas pronto para ser publicado, mas esse ano que passou (1995) acabei não tendo tempo para me dedicar ao projeto. O li­vro se chama Virtual Bilitis, e é inspirado no Canções de Bilitis, de Pierre Louis, que por sua vez se inspirou na vida da poeta grega Safo. Ou seja, são poemas lésbicos, poemas que falam do amor entre mulheres. Gosto muito do livro e estou louca para publicá-lo logo. 

UOO: E suas preferências musicais? Quem você ouve? Quais as bandas, os artistas de que gosta? Quem lhe influen­cia na hora de compor?

Vange: Nossa, são tantos... Eu procu­ro não me fechar para nenhum tipo de música. Mas com relação ao meu trabalho, especificamente, quem mais me marcou foi Gal, como inspiração primeira, pelo jeito de cantar, a sensualidade e principal­mente a atitude dela no palco. No começo dos 70, ela era uma das grandes vozes da contracultura brasileira. Me lembro do show Índia, ela dançando descalça, rodan­do a saia, uma verdadeira baiana em tran­se, e o batuque comendo solto no palco. Cantava compositores novos como Macalé, Melodia, Caetano, caras que aprendi a gostar na voz dela. Vozes femininas sem­pre me seduziram. Outro dia um amigo meu disse que acabamos gostando mais de cantoras porque suas vozes talvez lem­brem o canto de nossas mães quando nos faziam dormir... O mais curioso: Gal foi uma influência forte tanto para mim co­mo para a minha parceira nas músicas, a Cilmara Bedaque. Comecei a trabalhar com a Cilmara tipo em 89, quando ainda estava com o Nau, e foi uma surpresa ma­ravilhosa saber que tínhamos muitos gos­tos musicais em comum. Outra pessoa que de certa maneira influenciou bastante o meu trabalho de compositora foi a Ma­rina. Quando escutei suas músicas, fiquei absolutamente identificada. A batida do violão dela é única e cheia de feeling e o que ela diz nas músicas tão pessoal, vai fundo, um mergulho corajoso. Eu gosto e me identifico com isso. Fora que ela também tem esse negócio de trabalhar em dupla com o Cícero, que é irmão dela, meio como que a minha parceria com a Cilmara, já que a Cil faz mais as letras e a gente discute bastante os te­mas, o que vai dizer na música, e acaba­mos sempre por escolher temas ligados à nossa experiência. Tudo o que dizemos em nossas canções é fruto de um olhar para dentro. Gosto do jeito como Clarice Lispector escrevia, a experiência pessoal e íntima, uma fonte enorme e inesgotável de matéria prima para canções.

UOO: Sua carreira se iniciou com a banda Nau e, depois, estourou para o sucesso com o hit Noite Preta. Fale um pouco dessa trajetória e de sua relação com a fama.

Vange: Tento fazer minha fama em cima do meu trabalho. O grande pro­blema que hoje em dia você primeiro precisa ser famoso para depois poder mostrar o seu trabalho. Não pode, tá er­rado! Nego só consegue lotar um teatro se já for famoso. Sabe aquele negócio de só contratar se tiver experiência?? A mesma coisa. Um saco!!

UOO: Do hit Noite Preta até o CD Vermelho, houve uma grande distância. Por que isso aconteceu? Desacordo com as gravadoras ou um processo de gesta­ção demorado? Fale um pouco sobre o novo álbum.

Vange: As minhas gestações são um pouco mais lentas sim, mas o que aconteceu foi que teve todo um tempo para eu sair da Sony e abrir minha própria gravadora. Trabalhar num es­quema independente e sem grana significa ter que desenvolver uma paciên­cia oriental. As coisas levam tempo, você faz shows que não são divulgados e, para o grande público, fica a sensa­ção que você desapareceu. As pessoas estão cada vez mais ficando dentro de casa e tornando-se dependentes da noticia que chega até elas. Aí é o poder econômico que fala mais alto. Verme­lho é um álbum corajoso, uma produ­ção independente minha e da Cilmara. Temos muito orgulho desse disco, as canções falam de temas super-atuais e sensíveis, e recuperei uma coisa que ti­nha com o Nau. um lance mais rocker. A faixa Vermelho fala sobre menstrua­ção. Meninas sobre meninas prostitu­tas. To Fora é uma balada de cortar os pulsos. O disco é super-visceral e o show que eu to fazendo agora tam­bém. Dionísio puro.

UOO: Você já gravou um vídeo-clipe ou pensa em gravar um vídeo-clipe para divulgar alguma música do CD?

Vange: Fizemos o clipe da canção Vermelho. Deve ser lançado no final de janeiro, começo de fevereiro. O clipe foi dirigido pela Cilmara Bedaque, minha parceira, pela Ana Sardinha e pela Maria de Oliveira, todas muito amigas minhas. A Cilmara já tinha dirigido o clipe da Noite Preta, junto com o Luis Ferr. Su­per tranquilo para mim que ela dirija os clipes, porque ela é autora da música e de uma certa maneira já faz a letra pen­sando na imagem que virá depois. A adesão da Maria e da Ana, que traba­lham em publicidade e cinema, comple­tou o que já era ótimo. Foi muito baca­na trabalhar com esse trio de diretoras. Hoje em dia, fazer vídeo-clipe no Brasil não é fácil, já que fizemos em l6 mm, e cinema é uma coisa muito cara. Fize­mos, graças à ajuda e colaboração de muitas pessoas, um clipe a custo super-baixo. Adorei fazer o clipe. Principal­mente uma cena em que eu estou numa banheira. As cenas que minhas três dire­toras bolaram para mim são surpreen­dentes. Mal posso esperar para ver esse clipe no ar! E garotas, o clipe só vai pró TOP 20 se vocês pedirem!
Eu nunca achei que ser lésbica fosse algo ruim. Daí eu nunca es­condi nada. Apenas no começo da mi­nha trajetória como figura pública, eu si­lenciava a esse respeito. Até que numa determinada hora, achei ridículo não to­car no assunto. Não levanto nenhuma bandeira e nem chego me apresentando: "Prazer, Vange, cantora e lésbica". Mas com certeza o fato de existirem pessoas públicas revelando sua homos­sexualidade só ajuda. Mostra que não tem nada de mais. Normal.
UOO: E, nas rádios, considerando toda a pressão que as gravadoras fazem para determinar a programação, hoje voltada para o gênero nordestino ou as misturas de rock com baião, você vê al­guma forma de furar o cerco pra divul­gar um trabalho como Vermelho, inde­pendente, ousado, com muito rock e te­mas ligados diretamente às mulheres?

Vange: Essa questão das rádios é tão espinhosa quanto enigmática. Lógico que existem rádios mais comerciais e outras menos. A grande questão para mim é que vivemos uma época onde as pessoas saem pouco de casa, pelo menos nas grandes cidades. Proporcionalmente descobre-se menos coisas. Assim como não existe mais aquela figura do caçador de talentos, que vai descobrir o artista, o jornalista também está acostumado que as coi­sas cheguem até ele e o teles­pectador comum só compra o disco de quem aparece na televisão. Assim o poder econômico leva uma vanta­gem muito grande sobre ou­tros fatores, como talento, e mais ainda, merecimento. 

UOO: O bom humor, as grandes sacadas estão presentes em suas letras, além da li­berdade como você trata os assuntos. Esta é a vantagem de gravar um disco independente?

Vange:  Não. Essa é a vantagem de ter descoberto que a melhor coisa do mundo é ser o que se é, e não procurar correspon­der ao que esperam que você seja.

UOO: Mas, considerando as críticas positivas que Vermelho vem recebendo, se pintar algum convite de uma grande gravadora para fazer um trabalho mais comercial, você topa?

Vange: Claro! Nunca tive nada con­tra trabalhar associada a grandes grava­doras. Já lancei pela CBS e pela Sony e aprendi muito. Só não posso ficar para­da enquanto espero que uma das 5 grandes resolva me contratar.

UOO: No exterior, mais e mais canto­ras vêm assumindo suas relações com mu­lheres, tais como kd.lang, Melissa Etheridge, etc... Aqui no Brasil, você é uma das poucas que fala da questão aberta­mente, participando até de programas de TV sobre o assunto. Esta sua postura tem a ver com o fato de você ter participado, no passado, de grupos organizados, como o grupo lésbico-feminista (LF-79/81), ou simplesmente porque não vê razão para esconder e acha que, como artista, pode ajudar a combater o preconceito?

Vange: O fato de eu ter participado do LF já era resultado da minha comple­ta descomplicação com relação a esse as­sunto. Quando percebi que gostava de mulheres foi uma das descobertas mais maravilhosas da minha vida. Não foi na­da traumático. Era tão lindo descobrir o que era amar, se apaixonar. A minha sorte é que meus amigos também achavam lindo eu me apaixonar por garotas. Meus ídolos, tipo Janis Joplin, Gal, Caetano, todos achavam lindo ser gay, aceitavam a homossexualidade própria ou dos outros numa boa. Então eu nunca achei que ser lésbica fosse algo ruim. Daí eu nunca es­condi nada. Apenas no começo da mi­nha trajetória como figura pública, eu si­lenciava a esse respeito. Até que numa determinada hora, achei ridículo não to­car no assunto. Não levanto nenhuma bandeira e nem chego me apresentando: "Prazer, Vange, cantora e lésbica". Isso é um rótulo. Minha sexualidade é bastante flexível e inaprisionável, se é que existe essa palavra. Agora, faz outing quem quer! Essa é uma questão muito pessoal. Primeiro porque suas preferências se­xuais são coisas muito íntimas e dizem respeito só a você. Tem pessoas que têm facilidade em se expor assim. Outras não. Mas com certeza o fato de existirem pessoas públicas revelando sua homos­sexualidade só ajuda. Mostra que não tem nada de mais. Normal.

UOO: No cenário internacional, na área musical, as mulheres estão acaban­do com a supremacia masculina via trabalhos fortes e pessoais, co­mo as já citadas k.d.lang, Me­lissa Etheridge e Courtney Love, Sheryl Crow, Alanis Morissette e mesmo Patti Smith que voltou a gravar. Aqui, no Brasil, como você vê a situação das cantoras e compositoras em geral? Exis­te muito machismo no meio artístico?

Vange: Atualmente, no ce­nário Rock'n Roll do Brasil, o que existe é um sexismo enor­me. Só dar uma olhada nos video-clipes para ver que, quan­do aparece mulher, é aquela gostosona que rodeia os cantores da banda. Uma gostosona não! Um monte delas fazen­do papel decorativo com bundas maravilhosas em primeiro plano. Lindo! Quem não gosta de um corpinho bonito? Mas ando meio cheia desse discurso onanista cheio de testosterona de alguns moleques do rock. Mas o Brasil sempre foi muito bem dotado de mulheres cantoras e com­positoras. Se você pensar em Maysa, por exemplo, ela era muito mais porrada que Courtney Love. O que precisa acontecer é o Brasil descobrir as mulheres do Bra­sil! As mulheres do Brasil precisam des­cobrir as mulheres do Brasil. Fui no show da Alanis, em São Paulo, e o públi­co era 70% formado por garotas! Todas cantando as letras e entendendo o que es­tavam cantando. Eu sinto mais ou menos a mesma coisa com relação ao meu públi­co. As garotas gostam de ver uma mulher que compõe e canta suas próprias músi­cas e pode liderar uma banda. Porque is­so se parece com elas. No fundo nin­guém tá querendo exemplos para seguir. Elas querem ouvir alguém que tem os mesmos problemas que elas e que falem coisas que elas vivem e sentem.

Fonte: revista Um Outro OLhar, nº 25, Ano 10, Dez 96/Abril 97, por Luiza Granado e Angela Gonçalves


Publicado originalmente em 17/07/2014

2 comentários:

  1. Muito obrigada por brindar a todas nós, fãs de Vange, com essa linda homenagem. A Vange nunca soube o quanto ela foi amiga, confidente e cúmplice minha e de mais um montão de garotas que a acompanhava pelas mídias, principalmente no mixbrasil.
    Ela é uma das poucas lésbicas que dava um modelo, um "norte" inteligente, altruísta e com muita bagagem cultural a um monte de meninas que, em sua maioria, assim como eu, nunca pode se assumir ou dificilmente encontrar outras lésbicas graças as dificuldades que sofremos pela invisibilidade que praticamos para a nossa própria. preservação e sobrevivência.
    Um a todas que vocês que escrevem pra nos dar a sensação de companhia.

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  2. Vange é .. e sempre será uma referencia positiva na minha vida.. Amo vc onde quer que esteja..vc sempre estará ...nas minhas noites,pretas ou não.. quando elas chegarem..
    Abraços nesse céu lindo onde vc se encontra hoje.

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