'Aos 50 anos, divorciada, conheci a Fulvia', conta Maria Rita, que está casada com companheira há 23 anos Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo |
Relacionamento entre Adriana Calcanhoto e Maitê Proença, que nunca tinha se relacionado com outras mulheres antes, reacende o debate sobre as late-blooming-lesbians, ou 'lésbicas tardias', em tradução livre
Na peça autobiográfica “O pior de mim”, em cartaz no Teatro Prudential, no Rio, a atriz Maitê Proença, de 64 anos, revisita episódios marcantes de sua vida. Lançado virtualmente em 2020, o espetáculo traz, entre temas diversos, comentários da atriz sobre os homens e o machismo, mas deixa de lado um evento que marcaria uma fase recente de sua trajetória: o relacionamento amoroso com a cantora Adriana Calcanhotto. O namoro, assumido publicamente no ano passado, é a primeira relação homoafetiva da atriz, que contou à revista Quem, em entrevista, que “gosta de homem” e que esta é sua “tendência”, mas que “gostou dela (da Adriana) e ela gosta de mulher”.
Embora a atriz não tenha declarado uma orientação sexual lésbica, a liberdade presente em sua escolha amorosa, já em idade madura, reacende o debate sobre as late-blooming-lesbians (traduzindo, “lésbicas tardias”). O conceito abarca mulheres que começaram a ter relações homossexuais somente após os 30 anos.
Segundo a professora Joana Ziller, coordenadora do Grupo de Estudos em Lesbianidades da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as primeiras pesquisas sobre lésbicas tardias datam da década de 1980, mas o fenômeno se intensificou na atualidade devido à quebra gradual de preconceitos contra pessoas homossexuais. Ziller pontua que não há uma explicação concreta para o fato de mulheres se sentirem atraídas por outras em idade mais madura. Cada caso é um caso. Mas, talvez, a ampliação da aceitação de possibilidades diversas de relacionamento propiciou as experiências.
O termo late-blooming-lesbians chega a ser poético por representar uma mulher que floresce como lésbica após a juventude. Mas, como quase tudo relacionado à sexualidade humana, não há resposta para esse fenômeno. É muito importante se questionar: o desejo floresceu realmente depois dos 30 anos ou a heteronormatividade foi tamanha que impossibilitou de se pensar no assunto? — questiona Joana.
‘Me arrepiei toda’
A psicóloga Maria Rita Lemos se descobriu lésbica aos 50 anos, após três décadas se relacionando apenas com homens. Maria Rita, hoje com 74, conta que levava uma vida nos “moldes tradicionais”: casou-se cedo, gerou duas filhas e, após ficar viúva, conheceu um outro homem com quem teve mais um filho. À época, nem passava pela sua cabeça a possibilidade de se relacionar amorosamente com uma mulher. Mas isso mudou no dia 16 de outubro de 1998, quando, em um bate-papo virtual, ela conheceu a motorista de aplicativo Fulvia Margotti, de 60 anos.
Eu me apaixonei pela foto de perfil dela. Ela estava de farda e segurando um cachorrinho. A Fulvia tinha tudo o que eu procurava, mas apesar de ter gostado dela, eu não sabia como seria nossa conexão física presencialmente, porque nunca tinha tido experiência com outra mulher. Quando nos vimos e ela encostou no meu braço no carro ao passar a marcha, me arrepiei toda — lembra Maria Rita.
Apesar de Fulvia ter sido sua primeira e única experiência homoafetiva, Maria Rita diz que em momento algum ficou apreensiva em relação à fluidez de sua orientação sexual:
Minha esposa me satisfaz em todos os sentidos da vida. O companheirismo é total e a vida sexual até melhorou, a mulher conhece mais o corpo uma da outra. Não gosto de rótulos. Desde que nos conhecemos não tive mais interesse por homens e nem por outra mulher — conta Maria Rita, casada com Fúlvia há 24 anos.
Se para Maria Rita, assumir-se lésbica foi tranquilo, para a aposentada Willman Defacio, de 74 anos, que descobriu que gostava de mulheres aos 38, a possibilidade de um namoro homoafetivo era nulo, pelo preconceito.
Somente depois de um casamento e de alguns outros relacionamentos heterossexuais, é que decidiu se abrir à experiência. Ela estava então em um processo de divórcio, interessou-se por uma colega de trabalho e o sentimento foi recíproco. Então percebeu que o tesão e a paixão que não sentia nas antigas relações era porque gostava de mulheres. Este ano, ela completa 28 anos de casada com Angela Fontes:
Eu nunca tinha saído com mulheres e aconteceu naturalmente. Eu sabia que não sentia prazer com o meu ex-marido, mas não entendia o motivo. Depois dessa experiência, só me relacionei com mulheres e hoje tenho a sorte de dividir a vida com a Angela.
Apesar da preocupação inicial, todo o processo de contar para a família sobre sua sexualidade foi fácil para Willman.
Amadurecimento afetivo
Por se descobrirem lésbicas após os 30, grande parte das late-bloomers já foi casada com homens e teve filhos. De acordo com a psicóloga Fabiana Esteca, que estuda gênero e sexualidade humana, toda essa descoberta requer autoconhecimento e independência para assumir possíveis preconceitos. Por isso é comum que aconteça em idade avançada.
Depois dos 30 existe um amadurecimento afetivo sexual, uma apropriação do próprio corpo. Elas se permitem experimentar outros tipos de relacionamentos e se encontram. Existe também uma parcela que tem uma sexualidade fluida e vai sentir atrações diferentes ao longo da vida — explica Fabiana.
Fabiana diz que se assumir tardiamente pode trazer impactos emocionais às mulheres, e é importante que elas sejam amparadas por familiares e amigos.
As late-bloomers constroem uma identidade social pautada na heterosexualidade. Ao se assumirem, muitas são lidas como farsantes, como se estivessem a todo esse tempo dentro do armário, o que não é a verdade. Esse questionamento faz elas duvidarem da própria sexualidade novamente e é o momento onde surgem conflitos internos — conclui.
Clipping Mulheres contam como se descobriram lésbicas após os 30 anos: 'Elas se permitem experimentar e se encontram', diz pesquisadora, por Pâmela Dias, O Globo, 01/04/2022
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