Memória lesbiana: Rosely Roth, amiga do coração!

sábado, 28 de agosto de 2021

Rosely Roth na sede do GALF/Outra Coisa em junho de 1983

Míriam Martinho

Escrevi vários artigos sobre Rosely, ao longo das últimas décadas, tais como Tributo a Rosely Roth, pioneira da visibilidade lesbiana no Brasil, onde resumo sua trajetória como ativista destacada que foi. E é ainda sobre sua militância que quero falar neste 28 de agosto, dia em que nos deixou há 32 anos.

Mas, no caso, mais para falar do que ela não fez ou do que de fato não lhe ocorreu. Com o crescimento do interesse por sua pessoa, em particular por sua participação na manifestação do Ferro's Bar (que vários grupos querem transformar em filme), muita fabulação vem rolando sobre sua vida e morte que vale a pena desmistificar.

Antes, mais algumas informações sobre ela. Fui contatada recentemente por uma jovem integrante de um grupo judaico LGBT que me pediu a filiação de Rosely. A partir dos dados que lhe passei, com ajuda do historiador Paulo Valadares, ela traçou a árvore genealógica dos Roth, trazendo dados bem interessantes. Assim, ficamos sabendo que sua família paterna era de origem húngara (o pai inclusive), e a materna, da Romênia. O pai de Rosely, Estevão Roth, tinha os olhos bem azuis e um sotaque peculiar. Daí provavelmente se explique os olhos esverdeados de Rosely, emoldurados por um cabelo bem preto. Rosely dizia também ter algum grau de parentesco com a Iara Iavelberg, companheira do Carlos Lamarca, mas isso não tenho como confirmar. Vale salientar, porém, que nem Rosely nem a família eram pessoas religiosas. Rosely era ateia e anarquista. 

Rosely veio de uma família abastada (o pai herdou até indústria) que, entretanto, foi perdendo o status social devido, até onde sei, às estrepolias financeiras do Sr. Estevão (talvez por incompetência e/ou irresponsabilidade). A mãe, que era o esteio da família, morreu cedo de câncer de mama, e as coisas parecem ter desandado a partir daí para a família. De qualquer forma, cresceu num ambiente de classe média, estudou em bons colégios e se formou, em Filosofia, na PUC-SP, uma universidade particular.


Já em fevereiro de 1985, passou a viver de uma bolsa da CAPES, para desenvolvimento de pesquisa sobre vivências lésbicas, complementando o orçamento com pesquisas de mercado para a empresa de uma sapata. Então, entrando na fase dos reparos contra tanta besteira que leio e escuto por aí e por ali, Rosely não foi expulsa de nenhum emprego por causa de sua participação nos programas da Hebe, de sua visibilidade lesbiana. Rosely não sofreu qualquer repressão por ser uma lésbica pública, pelo contrário.

Eu costumo dizer que Rosely teve uma militância iluminada exatamente porque, contrariando as expectativas da época, nunca sofreu qualquer hostilidade sequer de parte da população que a reconhecia na rua pelos programas da Hebe. Eu mesma presenciei gente que vinha abordá-la em feiras, restaurantes, filas de cinema, sempre de forma positiva. E ela nunca me disse que sofrera qualquer tipo de problema por ser abertamente lésbica. No editorial da edição 12 do boletim Um Outro Olhar, na primavera de 1990, dedicado a sua memória, eu salientava esse aspecto de seu ativismo: 


Rosely Roth e Míriam Martinho na sede do GALF/Outra Coisa (junho 83)

Também nem eu nem Rosely tivemos problemas no apartamento em que vivíamos por ela ser publicamente lésbica. Em suma, não foi por causa de qualquer hostilidade ou repressão devido a sua lesbianidade que Rosely teve os problemas psiquiátricos que a levaram ao suicídio. Tampouco nossa separação teve qualquer coisa a ver com isso, pois não foi em nada traumática, tanto que continuamos nos vendo e nos falando até seu último momento nesta vida. Traumática foi a experiência com a doença que a acometeu, não só pela doença em si, suficientemente grave, mas também pela ausência de apoio de sua família, já bem desestruturada à época, pela confusão de diagnósticos sobre seu problema e pela leviandade de quem resolveu fazer politicagem usando sua condição como pretexto (até hoje fazem, mas não perdem por esperar). Escrevi extensivamente sobre a doença que a acometeu em maio de 2021 no artigo: Rosely Roth: ouçam nossas vozes no dia mundial da pessoa com esquizofrenia.

Atualizando esta seção de reparos, cumpre salientar que Rosely foi porta-voz do GALF, mas não sua líder, pois o grupo não aceitava esse tipo de hierarquia, como bem colocado por Vanda Frias em seu texto sobre a manifestação do Ferro's Bar:
Rosely fez discursos em várias cadeiras. É bom deixar claro que ela não é e não quer ser líder do grupo, pois lutamos contra a hierarquia e o poder...

Ainda citando Vanda, o GALF era um grupo libertário e autonomista, que também não aceitava dupla militância não só em grupos e partidos como no grupo e em outros movimentos, embora procurasse manter boas relações com potenciais aliados em pontos comuns. 

Por sermos um grupo autônomo, o GALF é aberto às lésbicas dos mais diferentes horizontes políticos. Ao contrário de alguns outros grupos feministas, o GALF não aceita a chamada dupla militância: isto é, batalhar dentro de um grupo e, ao mesmo tempo, dentro de um partido político. Pensamos que a dupla militância foi um dos principais fatores de enfraquecimento dos grupos feministas dos últimos anos particularmente com as eleições de 1982.
Vale ler o texto da própria Rosely, intitulado Autonomia, para ver como ela pensava a respeito do assunto. Importante salientar isso porque hoje tem gente fazendo ligações espúrias entre sua pessoa e movimentos como o atual LGBTQIA+ que nada tem a ver com o Movimento Homossexual dos anos 80 do qual Rosely foi destaque, inclusive porque ligado a partidos de correntes de esquerda com os quais ela jamais concordaria. Fora que ela nunca aceitaria também ser ligada a um movimento que vem corroendo os direitos de mulheres e gays e lésbicas de maneira efetiva e buscando heterossexualizar homossexuais. Deve estar revirando no túmulo com semelhante falsa conexão. 

Outro reparo importante, Rosely nunca foi editora do Chanacomchana. Como ela era a única integrante do grupo que se assumia (só comecei a assinar Míriam Martinho na produção do Um Outro Olhar) e andava com o Chana para todo o lugar (inclusive entrevistas), colocaram-na como editora do fanzine em uma ou outra ocasião. Ninguém também ligava muito para essas coisas na época porque no movimento do período não havia ladras e ladrões como no desmovimento de hoje. De fato, Rosely era apenas colaboradora assídua do boletim, nunca teve nada a ver com sua produção. Além de escrever para o Chana, apenas levava seus bonecos para as gráficas. Rosely era boa de discurso, tinha boa presença, falava bem, mas a área de escrita não era sua praia. Todos os seus textos publicados no Chana e no primeiro número do Um Outro Olhar foram revisados e editados por mim que, aliás, era quem revisava e editava os textos de todos os Chanas. Leia aqui sobre o processo de produção do Chana. 

Por último, Rosely merece ser celebrada como pioneira da visibilidade lésbica - estranho que tenham levado 30 anos para isso - e pelo que de fato foi e pensava e não usada para projetos de reescritura da História, usurpação de protagonismos e inclusive de direitos. Por exemplo, ela jamais aceitaria ser usada, a não ser em surto, para apagar a história das e dos outros protagonistas da primeira manifestação lésbica contra a discriminação no Brasil que foi lançada em 2003 como Dia do Orgulho Lésbico e tocada a várias mãos. Mas ela está sendo usada para isso porque não pode se defender.
 
Enfim, Rosely sempre começava suas cartas dizendo "Querida Míriam, amiga do coração!" E, hoje, eu lhe respondo:
Querida, Rosely, amiga do coração, apesar do tanto que fizeram para nos separar e apagar sua memória, eu consegui mantê-la viva na lembrança não só das lésbicas, mas também da História deste país. Hoje as mesmas que só faltaram dar tiro em nossas cabeças, quando foi lançado o dia do orgulho lésbico, dizendo inclusive que a data era mórbida porque você havia se suicidado, estão aí com sua hipocrisia visceral falando do quanto lhe admiravam, participando de homenagens a sua pessoa, homenagens verdadeiras como notas de três reais. Agora tentam inclusive usurpar a manifestação do Ferro's, onde não estiveram, e até o Chana com o qual nunca sequer colaboraram. Faz de conta que a gente não lembra o quanto aprontaram contra nós. Mas continuamos aqui para desafinar do coro dos contentes e permitir que você descanse em paz.  Que o céu, para onde vão os puros de coração e os idealistas, continue lhe sendo uma morada acolhedora e terna. Você merece. Um beijo".

Ah, e fique com essa música que sempre me faz lembrar você, principalmente por causa do verso "no tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido":

Ver também: 

Rosely Roth: ouçam nossas vozes no dia mundial da pessoa com esquizofrenia
Memória lesbiana: o dia do orgulho lésbico já havia sido pensado em 2000 para homenagear Rosely Roth
Orgulho Lésbico: o happening político do Ferro's Bar (edição 2022) 
Autonomia
Memória Lesbiana: Míriam Martinho e o processo de produção dos boletins ChanacomChana e Um Outro Olhar


  


4 comentários:

  1. Eu conheci bem a Rosely muito antes de tudo isso acontecer e a família dela o pai e a irmã, fui caso da irmã dela a Shirley Roth e fiquei passada qdo soube que ela havia se suicidado, que Deus a tenha era uma boa pessoa, o pai dela não era aquelas coisas não, até sumiço em mim ele tentou mandar os capangas dele dar e depois precisou de mim por causa da filha dele a Shirley, muitas coisas aconteceram, tinham lojas de móveis no Tatuapé e meu padrasto era gerente o celi, hoje que estou lendo toda a história do que realmente aconteceu com essa menina, que Deus a tenha 🙏🙏🙏

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    1. Escreva para mim pelo e-mail uoo@umoutroolhar.com.br Gostaria de conversar com você. Obrigada!

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  2. Miriam, gostaria muito de contribuir com a pagina, como posso falar com voce?

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