Em subúrbio carioca, Gisela Queiroz mantém espaço seguro para lésbicas

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

"O Resiliência é para a gente ter um espaço que consiga falar sobre tudo
que não falam lá fora, ou que falam de uma outra forma."

Gisela Queiroz, a dona do espaço seguro para lésbicas no subúrbio carioca

Demitida após episódios de assédio moral, terapeuta ocupacional transformou garagem da casa em espaço cultural prioritário para mulheres. “O que eu vendo é segurança: um lugar de escuta, troca e segurança."

Quem chegar no número 52 da rua Galvani, em pleno subúrbio carioca, vai encontrar uma casa de cor laranja, com uma árvore grande na entrada e, já de fora, vai observar livros, quadros e mais plantas na garagem. É ali que mora Gisela Queiroz, de 54 anos, mas isso já é secundário: há três anos, o endereço abriga também o Resiliência Espaço Cultural e Atelier. O lugar é um bar, um sebo, um espaço para rodas de conversa e, principalmente, abrigo para escutas e afetos para as lésbicas da cidade do Rio de Janeiro. Gisela, "sapatão desde sempre", tem seu público definido mas não barra ninguém, exceto os idiotas, como ela mesmo define.

A ideia de criar o Resiliência não veio acompanhada de calmaria, pelo contrário. Terapeuta ocupacional por formação, Gisela se viu desempregada após enfrentar uma série de episódios de assédio moral no seu local de trabalho, há quatro anos. Observara pequenas sabotagens no exercício da profissão. Alocada inicialmente na Barra da Tijuca, zona oeste, pediu transferência para Irajá, zona norte e mais perto da sua casa, para fugir da rotina estressante e discriminatória. Ali, encontrou uma chefe que a respeitava, e "só a via profissionalmente". Foi bom enquanto durou: com a saída dessa profissional, entretanto, teve de lidar com mais boicotes e desqualificações, de acordo com seu depoimento ao HuffPost Brasil.

Entrou outra pessoa, extremamente insegura, que foi indicada para a chefia sem experiência e recém formada. A pessoa mais experiente para lidar com idosos era eu, e eu não fui indicada para a chefia. Mas eu nem estava preocupada com isso. Só que ela chegou se sentindo ameaçada, pela minha idade e pela minha experiência. Na cabeça dela, quis inventar algo para me desqualificar. Eu sou sapatão desde sempre na minha vida, mas isso não interessa no meu local de trabalho", afirma Gisela. Ela também acrescenta que ser negra, gorda, e usar dreads nos cabelos há 20 anos são características que podem contribuir para sua estereotipação enquanto profissional.

Por conta dessa experiência, Gisela deu entrada em uma emergência psiquiátrica, depois buscou auxílio no programa Rio sem Homofobia, mantido pela prefeitura da capital fluminense e criado para prestar assistência às vítimas do preconceito. Lá, foi atendida por um psicólogo que a encaminhou para a área jurídica. A chefe de Gisela foi denunciada no Conselho Regional de Enfermagem, mas "não deu em nada" além da demissão da própria Gisela. Hoje, ela afirma que desenvolveu Síndrome do Pânico e tenta se reerguer.

Na época da demissão, com o fim do valor recebido com a rescisão contratual, Gisela se viu cansada de procurar empregos em vão. Àquela altura, amigos já ocupavam a garagem da rua Galvani 52 para fazer churrascos, conversar e beber cerveja. Por que não unir o útil ao agradável e criar uma nova fonte de renda?
"Fui desenhando a história, pensei primeiro em um lugar para pessoas LGBT que estivessem envelhecendo, porque a gente não tem lugar quando começa a envelhecer, um lugar seguro. Mas as pessoas que têm a mesma idade que eu não entenderam a proposta, não se interessavam. Então eu repensei e conheci alguns coletivos lésbicos aqui da cidade, que adoraram o lugar no primeiro momento, mas como era coisa de militância pintaram outros interesses e resolveram fazer seus eventos em outros locais", afirma.
Para Gisela, a localização do Resiliência impede que seja um local mais fixo para a militância LGBT:
 "Eu estou no subúrbio, e aqui não tem mídia. Se aqui fosse uma casa de samba, talvez, mas não é o caso. O que dá mídia para a militância LGBT é centro ou zona sul".
Hoje, o bar se aperfeiçoou no seu objetivo e é tocado por uma lésbica para acolher o público com segurança. Do meio LGBT, menos militantes, mas sempre pessoas politizadas. Não sem restrições.
O público é restrito: a gente não quer saber de gente idiota. Não tem condição, porque aqui é a nossa casa. Não aceitamos esse discurso confuso que está aí fora, de que estamos segregando. A gente não está fazendo isso. Só que aqui é um lugar prioritariamente de mulher. Alguém tem que pensar em sapatão, nem que seja eu. Já que ninguém consegue pensar num espaço, ou num discurso somente para sapatão, ao menos uma pessoa no Rio de Janeiro pensa", afirma a empresária.
Casada, ela equilibra as contas da casa e sonha com o dia
em que o bar será uma fonte fixa de renda.
De riso fácil e hospitalidade admirável, Gisela mantém um Resiliência aconchegante. E ela reforça: ali não é só um bar.

A ideia de um bar misto com lugar cultural é justamente para eu não rasgar totalmente meu diploma, porque foi um investimento", explica. Junto com uma amiga psicóloga, ela trabalha bastante a questão da saúde mental com as frequentadoras, com grupos de apoios para lésbicas e encontros para discutir temas tangentes à vivência feminina.
O Resiliência é para a gente ter um espaço que consiga falar sobre tudo que não falam lá fora, ou que falam de uma outra forma."
Com o crescimento de episódios de homofobia, lesbofobia e violência contra minorias sociais nos últimos dias, Gisela não esconde o medo do que pode ser do seu empreendimento no futuro.
Eu temo o momento político atual, inclusive profissionalmente. Esse bairro aqui [Vila da Penha] é extremamente conservador. Se eu estivesse no centro da cidade seria outro mundo. No subúrbio é pior: a sensação que dá é que estamos sozinhos se acontecer alguma coisa", confessa a dona do bar.
Mesmo com a resistência de manter um espaço dito subversivo numa vizinhança conservadora há três anos, Gisela ainda não consegue viver exclusivamente com o lucro do bar. Casada com Lúcia, ela equilibra as contas da casa e sonha com o dia em que o bar será uma fonte fixa de renda. O diferencial do espaço, ela acredita, é a segurança.
Quem sai de casa para se aborrecer não vai encontrar isso aqui. Aqui realmente é para ficar tranquilo. O que eu vendo é segurança. Um lugar de escuta, troca e segurança", explica.
Questionada se o substantivo que nomeia o espaço vira um adjetivo na sua personalidade, ela desvia: não sabe se pode afirmar-se uma pessoa totalmente resiliente. O processo rumo a essa conquista, entretanto, iniciou antes do bar e não acaba com ele, ainda que temerosa com a conjuntura social.
No momento atual, não sei se vou sobreviver, porque o Resiliência não é só um bar. Não sei se vou dar outra volta por cima. Alguns amigos falam que agora não tem volta, que as mulheres vão precisar de espaços seguros", analisa. E se depender do carinho e do cuidado de Gisela com cada detalhe do espaço, a casa de cor laranja na rua silenciosa sempre será um lugar para mulheres estarem.
Fonte:  Huffpost Brasil, por Lola Ferreira (texto), Andréa Martinelli (edição), Valda Nogueira (fotos). Figurino: C&A; Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC. 19/10/2018


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