A ausência de legislação sobre o casamento civil homossexual traz insegurança à população LGBT

sexta-feira, 6 de maio de 2016



“Só vamos ter paz quando houver uma lei”

Há cinco anos, STF reconheceu união homoafetiva, um marco que elevou casais gays à categoria de família e ajudou a combater estigmas. Mas ausência de legislação faz muitos temerem que seus direitos sejam postos em risco.

Um casamento pode significar amor, união e família, mas também a libertação de um preconceito. “A marca de promiscuidade que a sociedade coloca nos homossexuais é muito pesada, e o casamento tira esse estigma”, diz Flávia Marques, de 43 anos, que celebrou a união com a esposa, Vânia Cunha, de 50 anos, em 2012.

As enfermeiras tinham uma filha adotiva e viviam juntas há mais de uma década, mas a possibilidade de formalizar a relação só apareceu em 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável homoafetiva – uma decisão que completa cinco anos nesta quinta-feira (05/05).

Quando soube da notícia, o casal acelerou os preparativos. “Podia ser a nossa única chance. Queríamos fazer antes que a decisão fosse revogada. Era uma questão de cidadania”, conta Flávia. Em 2013, as enfermeiras conseguiram converter a união estável em casamento.

Flávia assegura que a legalização foi um marco, que mudou até a forma como alguns parentes encaravam a relação. “Tinha uma tia que sempre torcia o nariz. Quando eu falei que ia casar, isso mexeu com a cabeça dela. Ela começou a ver a minha família com mais seriedade.”

O casamento era um sonho antigo de Flávia. Ela lembra que a festa no Rio de Janeiro, para mais de cem pessoas: teve pastor e não teve bebida alcoólica, porque as enfermeiras são evangélicas. Foram dois vestidos de noiva e dois buquês. E Luísa, a filha adotiva, entrou com as alianças.

“Foi muito emocionante. A gente já quer renovar os votos, queremos casar todo o ano”, diz Flávia, com uma gargalhada. “Estar casada é uma sensação muito boa. Às vezes eu ainda digo que a Vânia é minha companheira e ela me corrige: companheira não, esposa!”

Decisão histórica

Assim como Flávia e Vânia, milhares de casais gays assinaram papéis nos últimos anos. Em 2013 e 2014, foram celebrados 8.555 casamentos homoafetivos, de acordo com dados mais recentes do IBGE. Desde 2006, foram realizadas 9.360 uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, segundo levantamento da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg-BR) junto ao Colégio Notarial do Brasil (CNB).

Apesar da sentença do STF ser de 2011, casais já haviam conseguido fazer a união estável em alguns estados do país. “Tinham decisões no mesmo sentido, mas elas não tinham a força de uma corte suprema, porque o STF é o responsável por interpretar a Constituição”, explica a advogada Maria Berenice Dias, presidente da comissão de diversidade sexual da Ordem dos Advogados do Brasil.

Para especialistas, o julgamento foi histórico. “Antes a sociedade tratava os gays como uma questão de sexualidade, não de afeto. Elevar à categoria de família foi muito importante”, afirma a advogada Patrícia Gorisch, presidente da comissão de direito homoafetivo do Ibdfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família).

A partir daí, como a Constituição prevê que deve ser facilitada a conversão da união estável em casamento, vários casais gays realizaram o procedimento. Muitos pedidos foram negados até que, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu que cartórios se recusassem a celebrar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Longa espera

A habilitação de casamento de Dália Tayguara e Eva Andrade, ambas de 45 anos, foi uma das que foram negadas nesse período. Dália, que é advogada, deu entrada no pedido em 2012, mas a aprovação só veio um ano e meio depois.

“Quando saiu o recurso, tinha um prazo de 60 dias pra casar ou a gente ia perder a habilitação. Foi uma correria dos infernos. Arrumar roupa, lugar, comida... Acabamos fazendo uma recepção para 80 pessoas, em uma segunda-feira. Teve muito parente não pôde ir e ficou xingando a gente”, diz ela, que se casou na Igreja Cristã Contemporânea, no Rio de Janeiro.

Quando formalizaram a união, Dália e Eva estavam juntas há 18 anos e tinham três filhas adotivas. “Geralmente as pessoas casam para formar uma família, nós chegamos à Igreja já quase com netos. Queríamos apenas o respeito e a dignidade de uma família”, diz Dália.

Além do reconhecimento, a advogada queria ter acesso a direitos e benefícios vinculados ao casamento, que vão desde a herança à inclusão no seguro de saúde do cônjuge.

A preocupação com a segurança jurídica é recorrente entre casais gays, que sentem seus direitos ameaçados pelo preconceito. Essa foi uma das conquistas do casamento, na opinião de Otávio de Lima, de 37 anos. Ele vivia há oito anos com o companheiro Carlos Freire, no Rio de Janeiro, quando decidiu se casar.

“Se algum dia um de nós dois faltar, parente nenhum vai vir aqui meter o pé na porta. Porque nós somos uma família reconhecida pela Justiça”, diz Otávio.

Sem lei

Apesar das conquistas, casais temem que seus direitos sejam colocados em risco. Isso porque, no Brasil, o casamento homoafetivo é reconhecido pela Justiça, mas não é previsto pela legislação. “Nós só vamos ter paz quando houver uma lei”, resume Dália.

“Entre mais de 20 países do mundo que aceitam o casamento homoafetivo, o Brasil é um dos poucos em que a decisão é da Justiça. Há uma lacuna legal, e isso é uma fragilidade”, afirma Dias, da OAB. A advogada teme a aprovação de projetos polêmicos que tramitam na Câmara dos Deputados, como o Estatuto da Família, que, na prática, impediria homossexuais de se casarem e adotarem crianças. “Seria um retrocesso enorme”, defende.

Especialistas também apontam a criminalização da homofobia como um avanço necessário e urgente. “O Brasil é campeão do mundo em crimes violentos contra LGBTs”, diz Gorisch, do Ibdfam.

Preconceito

Para as famílias, além das questões legais, é preciso enfrentar o preconceito. Elas relatam problemas recorrentes nos serviços de saúde e educação.

Dália conta que já foi convocada duas vezes na escola das filhas para explicar a dinâmica familiar. “É um ponto nervoso, porque as meninas não têm vergonha de falar que têm duas mães. Aí as professoras me chamam para saber como é criar as filhas sem uma figura paterna, se elas não vão ter nenhum abalo emocional ou problemas educacionais”, afirma.

Em centros de saúde, casais gays também passam por constrangimentos. Dália já foi obrigada a levar a certidão de nascimento da filha a um hospital, só para conseguir entrar no quarto onde a menina estava internada. E Otávio, ao ser operado de apendicite, precisou convencer a enfermeira de que seu marido não era um amigo e podia acompanhá-lo na cirurgia. “Tive muito orgulho de dizer: somos casados, ele é a minha família.”

Fonte: Terra, via Deutsche Welle, 05/05/2016

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