Lydia Tár: glória e decadência da maestra lésbica na era do cancelamento

domingo, 21 de maio de 2023

Cate Blanchett como Lydia Tár 


Míriam Martinho

Enredo  (contém spoilers)

TÁR (2022), do diretor Todd Field (Pecados íntimos, Entre 4 paredes), conta a história da maestra Lydia Tár, genial como artista, mas discutível como pessoa, como se verá ao longo do filme. Todd vai lentamente despindo a personagem da glória a ruína, ruína causada por acusações de assédio sexual e moral contra alunas, ao longo de duas horas e quarenta minutos.

A princípio, ela é apresentada no auge da carreira, plena de reconhecimento, poder e popularidade. A primeira cena do filme se inicia com uma longa entrevista da maestra para um jornalista (Adam Gopnik, por ele mesmo) do The New Yorker que apresenta o seu imenso currículo para uma plateia repleta de entusiastas. Também, no auditório (Lincoln Center - Alice Tully, NY), vê-se sua ajudante embevecida Francesca Lentini (Noémie Melant) e uma moça ruiva só filmada de costas. Ficamos sabendo, entre outros feitos, que Tár mantinha uma associação, intitulada Associação para Regentes Accordion (Acordeão), para apoiar moças aspirantes a regentes, proporcionando-lhes estágios em orquestras de todo o mundo. Ficamos sabendo também que Tár iria começar os ensaios, com a Filarmônica de Berlim, do qual era regente, para a futura apresentação da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler (que seria gravada).


No plano pessoal, o filme nos mostra que ela era casada com a primeira violinista da Filarmônica de Berlim, Sharon Goodnow (Nina Hoss), com quem adotara uma menina (Petra, Mila Bogojevic). A família vivia num apartamento estilo brutalista na capital alemã, e o relacionamento das duas aparentava ser amoroso. Tár também mantinha um outro apartamento mais popular (um estúdio) onde ia se refugiar para compor e, ao que parece, levar jovens de sua apreciação.

E a decadência de Tár se inicia exatamente quando uma dessas jovens, Krista Taylor, se suicida, e Lydia passa a ser acusada, pelos pais da moça, de ter relação com a tragédia. Essa versão passa a ter ares de verdade, quando, depois do suicídio de Krista, ficamos sabendo, pela leitura dos e-mails nos laptops de Tár e de Francesca que a maestra estava desrecomendando Krista, por considerá-la emocionalmente instável, para inúmeras orquestras com as quais sua associação mantinha contato. Pelos e-mails de Francesca, com quem Krista se correspondia, observamos a moça dizendo que não entendia por que não conseguia obter vaga em nenhuma orquestra. Depois, supondo corretamente que Tár a estava boicotando, ela afirma que a maestra a "queria morta", por isso nenhuma orquestra lhe oferecia vaga. E que ela não sabia o que tinha feito para Tár persegui-la. Mas não ficamos sabendo se  Tár boicotara a moça porque ela podia ser realmente problemática para as orquestras ou por que a teria desagradado pessoal, amorosamente, de alguma forma. 

O fato é que as acusações dos pais de Krista contra a maestra passam a ser assunto do conselho diretor da orquestra de Berlim, onde lhe é apresentado artigo do jornal The New York Post, sobre o suicídio da jovem, com supostos depoimentos de outras alunas da Accordion, acusando-a de "atrair e aliciar várias jovens para práticas sexuais em troca de favores profissionais. E de bloquear oportunidades para as que não consentiam com seus avanços". Nesta reunião, Tár nega essas acusações e vai dizer que Krista tinha fixação por ela, a importunava constantemente com presentes bizarros, editava sua página na Wikipédia onde se colocava como sua musa. Inquirida se tinha dado queixa da moça ou conversado com Sharon sobre o assunto, disse que não, embora devesse ter tomado essas ações, o que não teria feito, no caso da esposa, por não querer sobrecarregá-la.

Ao viajar a Nova York para lançar seu livro Tár on Tár (Tár sobre Tár), Lydia teve também que depor no escritório de advocacia dos advogados dos pais de Krista Nessa reunião, uma das representantes da acusação diz que Lydia só falava não saber de nada ou não lembrar de nada e indaga se a exposição dos e-mails dela (Tár) e de sua ajudante Francesca sobre Krista refrescariam sua memória. Os e-mails podem ter sido descobertos pelos pais da moça, mas também por intermédio de Francesca, assistente de Lydia, que se demitira do cargo após ser relegada pela maestra na promoção para o  cargo de assistente da orquestra de Berlim. Rejeitada, ela provavelmente resolveu retaliar Tár entregando os e-mails que trocara com a falecida para os advogados dos Taylor. Em outra cena, o regente diletante Eliot Kaplan (Mark Strong), financiador e cofundador da Accordion com Tár, encerra a parceria em uma conversa particular.

Ainda na palestra que dá por ocasião do lançamento do seu livro, onde vai acompanhada da jovem violoncelista Olga, a quem ajudara a incluir na Filarmônica de Berlim, Lydia também enfrenta manifestação pública contra seu real ou suposto abuso de Krista. De volta a Berlim, perde a própria mulher que não suportou o fato de Tár não ter lhe contado sobre o escândalo em curso, acusando-a de prejudicar a família delas. Perde também a filha que a esposa não lhe permitiu mais ver. Por fim, uma nova reunião com o conselho diretor da orquestra vai tirar Lydia Tár de seu cargo de regente da Filarmônica de Berlim no exato momento em que ela se preparava para avançar ainda mais rumo ao topo da carreira com sua versão da Quinta Sinfonia de Mahler

Tár volta para casa da família em Nova York, onde parece tentar um recomeço via uma agência para artistas de música clássica chamado CAMI (Columbia Artists Management). Na casa da família, é mal-recebida pelo irmão que afirma haver muitas pontas soltas no escândalo envolvendo a irmã. Ficamos sabendo então que seu nome real era Linda Tarr e sua origem, humilde. Por fim, vamos acompanhá-la ao Sudoeste Asiático (Filipinas, embora filmado na Tailândia) onde ensaia uma orquestra juvenil para o que parece vir a ser um concerto. Na última cena do filme, Lydia aparece à frente dessa orquestra, mas logo nos damos conta de que ela está regendo a trilha sonora de um videogame, chamado Monster Hunter, para a plateia de uma convenção de cosplayers.


Temas de TÁR: geração woke, cultura do cancelamento, separação artista-obra, abusos de poder


Antes dos temas, um pouco da ambientação e do ritmo do filmeTÁR se diferencia de outras obras atuais, para começar, por colocar a maior parte de seus créditos no início do filme ao som do canto de uma mulher do povo Shipibo-Conibo, do leste do Peru, cuja arte Tár registrara. É um filme de diálogos, não de ação, que se desenvolve lentamente mais vai acelerando com o passar do tempo. Principalmente na primeira parte, torna-se um pouco enfadonho com suas conversas específicas sobre o mundo da música clássica, da regência de orquestras e dos bastidores de suas administrações. Mesmo tendo estudado piano e tocado peças clássicas, não acompanho orquestras, seus virtuoses e regentes famosos como estrelas de rock, portanto, tive que arrumar paciência com os primeiros momentos do longa. Mas valeu a pena.

Percebi que o diretor buscava retratar de forma fidedigna o ambiente em que Lydia Tár habitava, tarefa em que foi bem-sucedido segundo comentários de músicos de orquestras e mesmo maestros que li em resenhas e ouvi em vídeos. Reparos apenas a alguns gestos mais exagerados de Cate Blanchett ao reger. Nesse afã realista, vale salientar que muita gente em cena está interpretando a si mesma, tais como o jornalista Adam Gopnik, a violoncelista Sophie Kauer (Olga Metkina) e os músicos da Filarmônica de Berlim (músicos de fato, mas da Filarmônica de Dresden), fora as locações reais de cenas em Nova York e na Alemanha. Esse realismo foi uma das razões, somado ao pouco conhecimento do mundo das filarmônicas, que levou tanta gente a ir buscar no Google, inclusive eu, informações a respeito de Lydia Tár, em dúvida sobre se a personagem era real ou não. 

                 
Wokismo: a cena em Julliard

E é nessa primeira parte mais lenta e que corresponde ao tempo de glória de Lydia que o filme vai abordar alguns de seus temas principais: a cultura woke (estar pretensamente consciente das injustiças sociais) e do cancelamento e a separação artista-obra. A cultura woke se caracteriza por uma visão segmentada da humanidade, baseada em identidades estanques, onde grupos sociais são divididos essencialista e maniqueisticamente em opressores e oprimidos. E a cultura do cancelamento, resultante do wokismo, é o boicote social e profissional contra pessoas que cometeram ou disseram algo que, para esses justiceiros sociais, é considerado inaceitável.

Lydia Tár vai dar uma aula na prestigiosa escola de música Julliard, em Nova York, onde tenta dialogar com um aluno, chamado Max, candidato a regente, sobre o que o inspirava em termos musicais. Lydia não gostara da escolha da música que Max apresentara para ela ouvir, com um pequeno grupo de músicos (Ró, da compositora islandesa Anna Thorvaldsdóttir), e queria instigá-lo a tentar algo diferente. Ela então lhe pergunta se não gostaria de tentar algo como a Missa de Bach em Si Menor. Ao que o rapaz responde, no jargão woke:
Honestamente, Bach não é minha praia. Como uma pessoa BIPOC (na sigla em inglês, black, indigenous, people of color), ou seja, negra, indígena, pessoa de cor, e pangênera, eu diria que a vida misógina de Bach me torna impossível levar sua música a sério. 
Na continuação dessa fala, Max acrescenta que Bach era misógino porque tinha sido pai de 20 filhos. Ao que Tár responde "de muito mais obras também". Cumpre informar que Bach foi pai de 20 filhos de seus dois casamentos, lá no século dezoito, quando os métodos anticonceptivos eram parcos e falhos e muitas mulheres tinham muitos filhos. Não custa lembrar que a pílula anticoncepcional surge na década de 60 do século passado.

A resposta de Max faz com que Lydia decida instigá-lo ainda mais. Ela vai ao piano da sala e o convida a sentar-se a seu lado. Passa a tocar trecho de uma Fuga de Bach. Quando ela termina, Max retruca:
Você toca muito bem, mas hoje em dia compositores homens, brancos e "cis" não são minha praia.

Tár decide então constrangê-lo, expondo sua hipocrisia ao pedir aos outros alunos da classe que o julgassem a partir de seus próprios critérios. Acrescentando ainda se ele gostaria que seus próprios músicos o avaliassem a partir desses critérios, se não seria injusto para com ele se reduzissem sua avaliação profissional ao seu sexo, etnia, sexualidade. 

Enraivecido, Max deixa a sala xingando Tár, incapaz de entender ser possível não se identificar com um determinado artista, por suas características externas ou suas posições pessoais, mas apreciar sua música. Há quem diga que ela humilhou o rapaz, mas o debate girou em torno de questões artísticas e estéticas e da aplicação dos critérios não musicais de Max a obras musicais. Bach não ser a praia do rapaz, por questões musicais, é algo aceitável como escolha do que tocar, reger. Não ser sua praia porque o autor era homem, branco, "cis" e supostamente misógino, à parte o anacronismo da avaliação, é de uma estupidez atroz. 

Desta cena, destaca-se uma frase da maestra para Max:

O narcisismo das pequenas diferenças pode levar a mais entediante conformidade. 

(para ser um bom regente) Você tem que se sublimar. sublimar seu ego. E sim, sua identidade. Você deve de fato ficar diante do público e de Deus e obliterar a si mesmo.

Sobre Schopenhauer politicamente incorreto

Em outra cena, quando Lydia está conversando, sobre o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, com seu antigo mentor Andris Davis (Julian Glover), tem-se o seguinte diálogo:
Schopenhauer media a inteligência de um homem por sua sensibilidade ao ruído”, diz seu mentor.
Ele também não jogou uma mulher escada abaixo que depois o processou?” pergunta Tár. 
Sim”, ele responde. “Não ficou claro se essa falha particular e pessoal teve qualquer relevância para seu trabalho.”
Como disse no início, estas duas cenas condensam uma das questões centrais de TÁR: como as falhas pessoais e privadas dos artistas podem pesar contra suas obras ou, em outras palavras, se é possível separar o artista de sua criação.

Na verdade, essa expressão "separar a obra do artista" é uma espécie de clichê que distorce a discussão. De fato, não é possível separar o artista de sua obra porque esta é produto do talento, da criatividade, da técnica do artista, de sua individualidade. O artista está em sua obra. No entanto, a obra de um artista o transcende ou o artista se transcende em sua obra que ganha autonomia em relação a seu criador. Daí a produção de um artista não poder arcar com as consequências dos erros de seu criador em outros âmbitos que não o artístico, que não o da criação artística. Artistas devem arcar com seus malfeitos como quaisquer outros profissionais, quaisquer pessoas, perante a lei, mas suas obras, maiores do que eles, não podem ser canceladas sob pena de jogarmos boa parte da cultura ocidental na lata do lixo.

Um exemplo contundente

Dou como um exemplo contundente, porque relativo ao nazismo, considerado o epítome do mal, da necessidade de distanciamento intelectual ao analisar obras artísticas e seus criadores, no caso criadora. Considerada uma das mais importantes cineastas da História, a alemã Leni Riefenstahl, produziu obras-primas da sua arte, filmando o nazismo. Leni caiu nas graças do Führer e obteve recursos para soltar seu espírito inovador nos documentários Triunfo da Vontade, sobre o sexto encontro do partido nazista, e Olympia, sobre as Olimpíadas de Berlim de 1936. Criou tantas novidades técnicas e estéticas que influenciou todos que vieram depois dela no cinema, no documentário, na publicidade, na propaganda política. Ao assistir essas suas duas obras-primas, a despeito de filmes em preto e branco, de baixa resolução, salta aos olhos a atualidade de suas imagens. É que, de fato, ela inventou novas formas de olhar pela câmera, revolucionando as imagens de tal forma que criou um padrão do qual outros artistas se tornaram tributários até hoje, sendo essa a marca dos gênios.

Leni foi julgada depois do final da II Guerra e absolvida de ligações diretas com os crimes nazistas. Afirmou, em sua defesa, que tinha sido uma inocente oportunista que aproveitara uma chance de fazer seu trabalho e que desconhecia os aspectos mais escabrosos da ideologia nazista, pois não entendia de política.

A considerar sua obra, observamos que ela comungava com os nazis do ideal de beleza dos corpos atléticos, mas, no caso dela, esses corpos podiam ser de qualquer etnia. Mesmo em Olympia, ela já dedica bons minutos de filmagem ao atleta americano negro Jesse Owen, primeiro a vencer quatro ouros em uma Olimpíada, desafiando a crença na superioridade da raça ariana. 

Em 1962, Leni foi viver na África, com a tribo sudanesa Nuba, com a qual ficou durante 7 anos e a quem fotografou intensamente. Nas imagens, a mesma elegia da beleza do corpo humano só que agora negro. Difícil acreditar que uma nazista de carteirinha fosse passar tanto tempo com gente negra e ainda por cima para imortalizá-la com suas lentes especiais. De qualquer forma, embora tenha escapado da prisão, após a derrota nazista, não escapou do cancelamento da época sendo ostracizada por bom tempo tanto social quando profissionalmente. Seu trabalho com os Nubas parece tê-la reabilitado o suficiente para que a genialidade de sua obra em geral fosse revista e pudesse sair um pouco da marginalidade. Morreu aos 101 anos, em 2003, mas sua ligação com o nazismo continua sendo constantemente revisitada. Mais informações sobre ela no texto Leni Riefenstahl, a cineasta genial que filmou o nazismo que escrevi há tempos, mas sempre atualizo.

Finalizando, a questão é: podemos reconhecer a validade de uma obra, por seu valor intrínseco, e de seu criador mesmo quando tematiza uma das ideologias mais funestas que a barbárie humana já inventou? Se for um identotário woke como o Max, sem dúvida que não. Se, em sua estupidez infinita, ele não podia levar a música de Bach a sério, por sua suposta vida misógina, imagine o que pensaria, se fosse aluno de cinema, e alguém o instigasse a analisar todas as inovações técnicas e estéticas de um documentário sobre o nazismo. No mínimo, iria denunciar o professor ou a professora por apologia à ideologia do holocausto. Agora, nos cérebros onde algum Tico mantém comunicação com um Teco, há sim a capacidade de tomar distância e analisar a obra e seu autor com a parcimônia devida.

Lydia Tár: sem maestria no uso do poder



TÁR é um filmaço cheio de referências musicais, cinematográficas, arquitetônicas, geográficas que se abre a múltiplas interpretações. Dá até para ajudar a melhorar a cultura geral procurando por tantos dados e desenferrujar os neurônios buscando juntar os fragmentos de informação oferecidos para compor um quadro mais preciso da história. Como todo o filme de grosso calibre vêm disparando muita polêmica desde seu lançamento, em setembro de 2022, no Festival de Cinema de Veneza, quando Cate Blanchett de cara já foi levando o prêmio de melhor atriz por encarnar a genial, mas manipuladora maestra Lydia Tár.

Uma das principais polêmicas sobre TÁR é se ele tematiza a cultura do cancelamento ou o poder, com mais votos para o tema do poder. Trata-se de uma falsa polêmica pois nada mais exemplificador dos abusos do poder do que a cultura do cancelamento. Fruto da geração woke, uma juventude velha, pseudovirtuosa, moralista, mentalmente estreita, punitivista e autoritária, a cultura do cancelamento muito se assemelha aos métodos dos nazistas ao queimar livros e destruir arte degenerada, dos maoístas ao levar supostos inimigos do regime para praças públicas, onde lhes eram penduradas placas da vergonha plenas de insultos (sem falar na destruição de monumentos públicos), e dos inquisidores da Idade Média que torturavam pessoas, mulheres em particular, para fazê-las confessar ligações com o diabo, e depois as queimavam em praças públicas. A cultura do cancelamento é herdeira do que de pior a humanidade já produziu em termos do chamado "poder".

Então, a polêmica é muito falsa. TÁR tematiza de fato o poder, as dinâmicas de poder e seus abusos, exemplificando-as com a cultura do cancelamento e o assédio moral e sexual que pessoas em posição de poder exercem sobre as com menos poder. Atuais e velhas dinâmicas de poder em confronto nesse roteiro. Como exemplo dos abusos de poder da cultura do cancelamento, temos principalmente a já citada cena sem cortes da aula no conservatório Julliard onde um aluno de regência revela não levar a música de Bach, considerado um dos maiores compositores da História, a sério, porque ele tinha tido 20 filhos, suposta prova de sua vida misógina. Ao ser confrontado por Lydia se gostaria de ser julgado pelos mesmos critérios subjetivos com que julgava Bach, pelo seu sexo, etnia, orientação sexual, vida pessoal, ele sai xingando a maestra de "puta fodida". 

O outro exemplo de dinâmica de poder que o filme tematiza é o assédio moral e sexual que pessoas em posição de poder exercem sobre as com menos poder. No caso em questão, o uso que Lydia Tár suposta ou realmente fazia de sua posição de poder tanto na Associação para Regentes Accordion quanto na própria Filarmônica de Berlim para privilegiar ou boicotar jovens mulheres musicistas pelas quais se interessava não só musicalmente. Eu falo da suposta posição predadora de Tár não para passar pano para suas arbitrariedades, mas sim porque o filme deixa muitas perguntas sem respostas e mesmo informações contraditórias sobre a dimensão do problema, a partir do suicídio de Krista Taylor, e sobre o perfil da maestra Lydia Tár.

Olga Metkina e Lydia Tár

O que o filme revela explicitamente é que Lydia tinha sim queda por mulheres jovens, o que fica patente quando colabora para que uma moça, Olga Metkina, viesse a ocupar vaga aberta para violoncelista da Filarmônica de Berlim não pelo critério musical, a princípio, mas sim pelo da aparência. Tár se encaminhava para a audição dos candidatos à citada vaga quando entra no banheiro para lavar as mãos. Nesse ínterim, entra Olga, que Tár mede de cima abaixo, fixando o olhar em suas botas. Chamou-lhe tanto a atenção que chega a olhar para baixo da cabine do banheiro, onde a moça entrara, para rever aquelas botas. A audição dos candidatos é feita com eles atrás de placas que cobrem sua identidade de modo que os professores julguem apenas seu som. Ao fim da audição, quando os avaliadores estão concluindo suas notas, Tár ouve o ruído daquelas botas na escada e as observa deixando o auditório. Nota-se então que ela apaga algo em suas anotações, provavelmente alterando a avaliação mais objetiva por uma subjetiva sobre a última pessoa a se apresentar. Depois, vai manipular a Filarmônica para conseguir que Olga fizesse o solo de uma obra complementar à Quinta Sinfonia de Mahler, Concerto para Violoncelo de Edward Elgar, passando por cima da primeira violoncelista da orquestra. Por fim, leva a jovem com ela para Nova York quando o escândalo de seus reais ou supostos abusos contra Krista Taylor já rolava pela internet. Inclusive um tweet, com um vídeo delas chegando à livraria, onde Lydia ia dar palestra sobre seu livro, aparece dizendo que Olga era a "carne fresca" de Tár. 

Outro dado que o filme explicita, como descrevi na parte do enredo, são os e-mails apresentados no laptop de Lydia, após o suicídio de Krista, onde aparecem mensagens da maestra, para várias orquestras, desabonado a jovem por ser emocionalmente instável e problemática. E, no laptop de Francesca, os e-mails de Krista comentando que estava desesperada por não conseguir vaga em nenhuma orquestra, embora se sentisse em condições para tal, que Tár estaria tentando "matá-la", e ela não sabia o que teria feito para isso. Então, de fato, Lydia estava usando de sua influência para obstaculizar a carreira da jovem, o que supostamente seria retaliação por Krista não ter cedido a seu assédio. Será mesmo?

Quando assisti ao filme pela primeira vez não tinha lido qualquer crítica sobre a obra, e a falta de referências me deixou perdida na história que inclusive achei chata a princípio, mas depois me fisgou. Então, apenas como mera espectadora, comprei a narrativa de que Lydia era uma predadora de jovens mulheres que trocava promoções profissionais por atos sexuais, como o artigo sensacionalista afirmava.

Entretanto, o filme me deixou várias questões, por isso revi algumas cenas a fim de ver se entendia melhor o enredo, mas a questão do assédio continuou me incomodando. Decidi então pesquisar mais, principalmente em resenhas do exterior (as brasileiras estão fraquinhas) e, mais bem aparelhada de informações, revi o filme inteiro em detalhes. E a minha impressão começou a mudar, com as dúvidas aumentando substancialmente. Outros fragmentos de informação colocados ao longo do filme apresentam aspectos diferentes a serem considerados na descrição de Lydia como simplesmente a vilã da história. 

Os e-mails da maestra desrecomendando Krista para as orquestras e os da falecida para Francesca reclamando de não conseguir emprego trazem, repetindo, o fato de que Tár realmente estava boicotando a moça. Mas seria mesmo porque ela não teria cedido aos seus encantos ou porque de fato a moça era problemática e emocionalmente instável ou ainda por outro motivo de natureza não sexual? Chama a atenção, nas mensagens que Krista envia a Francesca, a ausência de qualquer colocação mais pessoal - ela só fala dos problemas da carreira - e sobretudo pelo fato de ela dizer que não sabia o que teria feito para Lydia boicotá-la. Em uma das mensagens ela inclusive pergunta a Francesca se sabia se Tár não a considerava boa regente. Que isso a ajudaria a entender por que não conseguia uma vaga em lugar algum. Se ela tivesse sido assediada pela maestra e rechaçado a investida, ela ao menos não suspeitaria ter sido essa a razão do boicote? Ou se tivessem tido um caso, mas Krista desistira da relação deixando Tar ressentida, Krista não suspeitaria ter sido essa a razão do boicote?

Challenge de Vita Sackville-West

Por outro lado, existe ainda a possibilidade de Lydia e Krista terem tido um affair que terminou mal, porque a maestra considerou a moça problemática, por suas exigências (?), e a deixou. Inconformada a moça é que viveria assediando Tár, como a maestra declarou numa das reuniões do conselho da orquestra de Berlim, e uma cena também parece corroborar. Krista deixou, na portaria do prédio no qual Tár se hospedara em NY, o livro Challenge de Vita Sackville-West que retrata o caso tumultuado que a escritora teve com Violet Trefusis que tanto na realidade quanto na versão literária, sempre ameaçou se matar caso Vita a deixasse. Irritada com esse assédio, Lydia teria decidido retaliar a moça, prejudicando-lhe a carreira? Mas não teria mais sentido se livrar desse assédio enviando Krista para uma orquestra em outro continente? 

O fato de Krista haver se suicidado demonstra que realmente estava bem instável emocionalmente. Krista era de família rica, e o fato de a associação para regentes não ter encontrado estágio para ela em alguma orquestra já se tornara, segundo Kaplan, assunto latente ou presente de toda reunião do Citibank a que seu pai comparecia (Kaplan, além de regente diletante, era banqueiro de investimentos. Também o pai de Krista, pelo visto). Krista aparentava desconhecer o que Tár tinha contra ela, mas, em seus e-mails finais, revela saber que Tár a estava boicotando. Fosse qual fosse o motivo, não era caso de ela ter falado com os pais, e eles terem exigido uma explicação da maestra, inclusive porque a filha era tida como uma promessa da regência, como aparece em seu obituário numa notícia da Internet? Só depois de sua morte, seus pais resolveram responsabilizar Lydia pela tragédia? Teriam tido acesso ao laptop da moça depois de sua morte e se deparado com os e-mails da filha para Francesca? Mas, por eles, não se poderia afirmar que o boicote da maestra à carreira de Krista se dava por retaliação a investidas sexuais rechaçadas ou casos mal resolvidos. No filme, não há clareza sobre o teor das acusações da família Taylor contra Tár. Não se sabe qual foi a defesa da maestra (só disse que não lembrava de nada?). Nem se fica sabendo se daquela reunião resultou um processo contra ela. 


Lydia Tár: entre luzes e sombras e pedaços de contradição


Outros fragmentos de informação também traçam um perfil contraditório da maestra, um misto de luzes e sombras. Na conversa com Kaplan já citada, Lydia diz que eles deveriam abrir a associação de regentes também para rapazes. Kaplan então retruca que eles provavelmente perderiam doadores pois estariam implodindo o princípio fundador da entidade. Se a associação era a principal fonte de jovens mulheres com quem Tár supostamente gostava de trocar promoções profissionais por favores sexuais, teria sentido querer abri-la para homens? Ou ela estaria fazendo cena nessa conversa?

Outros fragmentos de informação mostram que Lydia era fã do casamento. Na tentativa de diálogo que teve com o aluno woke de regência, em determinado momento, ela se identifica como lésbica U-Haul que em inglês identifica lésbicas que mal começam um relacionamento já querem se casar (uma tradição lésbica, aliás). Em outro diálogo em que informa ao maestro assistente da orquestra de Berlim, Sebastian, que o estaria substituindo, e ele reage acusando-a de querer trocá-lo por Francesca, entre outras coisas, Tár retruca depreciando-o por ser misógamo (quem tem horror ao casamento) em comparação com o mentor de ambos, Andris Davis, que era muito bem-casado. Combina com o perfil de predadora sexual uma mulher que tem o casamento em tão alta conta a ponto de desprezar alguém por ser solteiro? Poderia ser pura hipocrisia dela ou uma visão ultrapassada do casamento onde puladas de cerca unilaterais faziam parte do contrato?

Para contribuir com o perfil complexo de Lydia, temos também seu relacionamento com a filha adotiva Petra pela qual tinha amor só comparável a sua paixão pela música. Tomando conhecimento de que a garota estava sofrendo bullying na escola, leva-a para a aula e lhe pergunta qual menina a estava atormentando. Petra aponta uma menina de casaco vermelho, ladeada de duas outras. Lydia se despede da filha e se aproxima da garota, chamada Johanna, e lhe diz que sabia o que estava fazendo com Petra e que se continuasse o bullying ela iria "pegá-la". A ameaça surtiu efeito e Petra foi deixada em paz. Para os críticos, a bronca de Lydia foi um exemplo de seu caráter sombrio já que ameaçara uma menininha, um anjinho louro que se juntara inclusive a outras duas gurias para bater na filha da maestra, uma menina mestiça, filha de duas mulheres. 

Entre a misofonia e a alucinação


Temos também o fato de que Tár sofria de misofonia, uma condição de hipersensibilidade a pequenos ruídos cotidianos nos quais a maioria das pessoas sequer repara (a inteligência de uma pessoa pode ser medida por sua sensibilidade ao ruído?). A condição pode gerar intensa irritabilidade, raiva e medo. Algumas vezes, Lydia acordava durante a noite e ouvia o barulho do metrônomo guardado dentro do armário ou o barulho do funcionamento da geladeira, levantando-se para investigá-los. Desperta, ouvia o barulho da saída de ar do carro amplificado, a campainha do apartamento do vizinho tão alta que a levava ao corredor para investigá-la. Embora essa condição possa atingir qualquer pessoa, me pareceu bem verossímil que afetasse alguém cuja profissão é ouvir os mais diferentes sons de uma orquestra.

Mas o diretor Todd Field aproveitou a misofonia da personagem para inserir elementos surreais e mesmo fantasmagóricos em seu filme, algumas pessoas dizendo que esses elementos correspondem à culpa de Lydia pela morte de Krista (olhos de lince apontaram o vulto da moça tanto no apartamento da família de Tár quanto em seu estúdio); outras dizendo que correspondem a alucinações provocadas pelo colapso mental da maestra em compasso com o desmoronamento de sua carreira. O fato é que, numa das saídas de Tár para praticar corrida, ela cruza um parque onde ouve uma mulher gritando alto (os gritos foram tirados do filme A Bruxa de Blair) e fica meio atônita com o som. Noutra cena, ela envereda pelos corredores de um prédio meio abandonado onde vira Olga entrar e, de repente, se depara com o vulto de um cão ao longe que a bota em pânico e a põe a correr, levando-a a tropeçar e cair de cara no chão. Pesadelos com suas mulheres e símbolos da tribo Shipibo-Konibo, do leste do Peru, cuja arte Tár pesquisara, como o labirinto, aparecem na primeira página do livro que Krista deixara para a maestra, junto ao metrômano que a acordara no meio da noite, nos desenhos de sua filha. 

O mesmo desenho de labirinto desenhado no livro Challenge

As razões para inserção desses elementos fantasiosos num filme que não é thriller de terror se abrem, como de resto toda a história, para mil interpretações. É certo, porém, que Lydia estava sempre tomando uma pílula aqui e acolá que, num caso ao menos, é até identificada no começo do filme como "pílula da Sharon". E depois identificada, pela própria Sharon, como Metoprolol, uma medicação para um tipo de arritmia cardíaca que pode ter, como efeitos colaterais, insônias, pesadelos, problemas de memória e mesmo alucinações. Medicações para problemas cardíacos, taquicardia, às vezes são utilizadas para controlar os batimentos cardíacos em situações de nervosismo, estresse, como, por exemplo, apresentações em público de qualquer natureza. Será que Tár não abusava de tal medicação e não estava sofrendo as consequências desses abusos? Vale lembrar também que ela conviveu com a tribo Shipibo-Konibo por 5 anos, conhecida por suas cerimônias com Ayahuasca, uma substância alucinógena. Provavelmente experimentara a droga mais de uma vez e poderia estar tendo reverberações do seu uso. Prefiro essa análise mais realista da situação do que acreditar que a maestra estivesse sendo perseguida por espíritos. No entanto, há quem afirme o caráter espiritualista que o filme adquire, a partir do suicídio de Krista, e que inclusive muito do que se vê a partir desse evento é alucinação de Tár.

A cultura do cancelamento acaba com a presunção de inocência

O primeiro passo para o escândalo que derrubou Tár dos píncaros da glória para as ruínas de regente de trilha sonora de videogame foi o artigo publicado no The New York Post, um tabloide sensacionalista de levada conservadora, após o suicídio de Krista Taylor, com supostos depoimentos de outras alunas da Accordion, acusando-a de "atrair e aliciar várias jovens para práticas sexuais em troca de favores profissionais. E de bloquear oportunidades para as que não consentiam com seus avanços". Apesar de Lydia dizer que ninguém lia aquele lixo sensacionalista, o fato é que o jornal, apesar da pouca credibilidade, tem muitos leitores nos EUA inteiro.

Então do caso específico da Krista, com o boicote de sua carreira por Tár, cujos motivos podem ter ido de ressentimentos por caso mal resolvido a reais preocupações com o estado emocional da moça numa orquestra, passou-se à generalização de que Tár usava a associação para, na real, ter um prato cheio e bem servido de moças com quem se engajar amorosamente. Embora já com 49 anos, Tár ainda era uma mulher bonita, charmosa e brilhante com quem as jovens flertavam, como se nota logo no começo do filme quando uma jovem fã, após uma conversa bajulatória, pergunta se poderia mandar-lhe uma mensagem. Não parece plausível que precisasse viver de chantagens para conseguir namoradas.

O que se sabe com certeza é que Tár privilegiava algumas moças, como Olga, para tê-las por perto. O que não se sabe é se também boicotava as que não cediam a suas demandas ou caprichos, como o caso de Krista parecia indicar. Não há no filme nenhum outro caso que aponte Lydia como "bloqueadora de oportunidades para as que não aceitavam seus avanços". 

Mas o caso chegou a público pela via sensacionalista, e a turma do cancelamento que, a partir de uma acusação, já parte para a condenação, correu para a frente da livraria onde Lydia Tár ia dar palestra, sobre seu livro Tár on Tár, com plaquinhas de "guilty" (culpada) e "Justiça para Krista". A chegada dela com Olga a tiracolo rendeu vídeos no twitter onde a moça foi considerada sua "carne fresca", como já referido. A bola de neve que já vinha aumentando desceu a encosta da montanha de vez triplicando de tamanho.

Marin Alsop se sentiu ofendida com as semelhanças
que viu entre sua vida e a história de Lydia Tár

Não obstante as perguntas sem respostas, as ambiguidades do roteiro, e a personalidade complexa de Lydia Tár, alguns críticos assumiram que Lydia era um monstro por supostamente predar jovenzinhas. Tal definição para a maestra mostra que as pessoas perderam o senso de proporcionalidade. Monstros são os que cometem crimes hediondos não os que agem de acordo com a muito comum régua social da troca de favores. Embora execrável, tal régua mede boa parte das relações por aí. Meio mundo seria monstro então, principalmente no Brasil.

A maestra da vida real, Marin Alsop, também lésbica, inclusive se sentiu ofendida dizendo que TÁR foi baseada em sua vida, exceto a parte do abuso. Inclusive ela também fundou uma associação para ajudar jovens regentes. Para ela, TÁR seria antifeminista e antimulher (sic).
Tantos aspectos superficiais de TÁR pareciam se alinhar com minha própria vida pessoal. Mas, assim que vi o filme, passei da preocupação para a indignação, fiquei ofendida: fui ofendida como mulher, fui ofendida como maestra, fui ofendida como lésbica”.
Ter a oportunidade de retratar uma mulher nesse papel e torná-la uma abusadora – para mim, foi de partir o coração. Acho que todas as mulheres e todas as feministas deveriam se incomodar com esse tipo de representação porque não se trata realmente de mulheres regentes, não é? É sobre mulheres como líderes em nossa sociedade. 
Existem tantos homens – homens reais com casos documentados – em que este filme poderia ter sido baseado, mas, em vez disso, colocaram uma mulher no papel, com todos os atributos desses homens. Isso parece antimulher. Supor que as mulheres se comportarão de forma idêntica aos homens ou ficarão histéricas, loucas, insanas é perpetuar algo que já vimos em filmes tantas vezes antes.”
Como Lydia disse a Max, na masterclass em Julliard, Alsop não deveria ter ficado tão ansiosa por se sentir ofendida. Primeiro que Tár é uma personagem de ficção, embora o docudrama psicológico em que reside passe a impressão contrária. Depois, que Blanchett afirmou ter baseado Tár sobretudo na escritora, ensaísta e ativista Susan Sontag e não numa maestra em particular, apesar de ter obviamente se inspirado também em regentes em geral. Por fim, porque integrantes de grupos discriminados, apesar da experiência com a dor do preconceito e da discriminação, são seres humanos, portanto, falhos e sujeitos a reproduzir padrões de comportamento abusivos como quaisquer outros mortais.

Na verdade, como diz um velho ditado, é a ocasião que faz o ladrão. Às voltas com situações de poder, mulheres também falham no teste de caráter promovido por essas situações. Movidas por questões de competição, ressentimentos por egos feridos em relações pessoais, mulheres hétero ou homo são perfeitamente capazes de sair retaliando suas adversárias, ex-amantes, qualquer coisa, se tiverem possibilidade para tal. No caso das lésbicas, onde entra o componente erótico-afetivo, as retaliações podem até ser mais sórdidas. Eu que o diga. E são bem comuns no meio lésbico. Aliás, as mulheres mais fálicas que conheci são exatamente as que se dizem feministas, sobretudo as lésbicas.

Não há nada de antimulher em reconhecer que as mulheres podem se comportar de forma idêntica aos homens em situações de poder. Homens são os grandes protagonistas de abusos morais e sexuais simplesmente por serem os principais detentores de poder. Ser integrante de qualquer grupo discriminado não imuniza ninguém contra comportamentos execráveis.

Todos os abusadores de poder têm seus cúmplices. 

Os que definiram Lydia Tár como uma monstra predadora de mocinhas, numa leitura superficial, acham que o diretor Todd Field passou pano para os abusos da maestra e a defende. Bem pelo contrário, Field derruba Tár do Olimpo do mundo da regência, da fama e do poder, para o reino de Hades do opróbio e do ostracismo. Parece mesmo uma tragédia grega, onde personagens de elevado destaque, plenos de sentimento de potência, de afirmação de sua existência, sucumbem às paixões humanas e acabam punidos com grandes sofrimentos.

Embora não me pareça ter sido essa a intenção do diretor, ele acaba abrindo espaço para uma vilanização excessiva da maestra, apesar de não oferecer informações suficientes para uma condenação tão peremptória. Assentada em extraordinária carreira artística, Tár era de fato, orgulhosa, arrogante, controladora e mesmo manipuladora na relação com outros músicos e pessoas mais próximas a ela, mas suas ações eram relevadas e, portanto, referendadas pelos que a circundavam. 

O ato mais condenável da maestra foi boicotar, seja lá qual tenha sido o motivo, a carreira da jovem Krista Taylor, o que seguramente agravou os problemas emocionais que a levaram ao suicídio. Como o filme não explicita quais seriam esses problemas emocionais que a desabilitariam para integrar uma orquestra, somos levados a crer que Tár inclusive contradisse sua máxima de que o julgamento de um artista deveria ser por sua obra e não por seus outros possíveis aspectos pessoais discutíveis. Krista foi definida como uma promessa da regência, portanto, tinha talento e poderia sim participar de qualquer orquestra, a não ser que seu problema emocional estivesse mais para problema psiquiátrico. Mesmo assim, a decisão de desaboná-la, perante possíveis postos de trabalho, não poderia vir de uma só pessoa, muito menos de uma com quem teve desentendimentos pessoais. 

Kaplan fez vista grossa para a situação de Krista

Voltemos ao fato de que as ações de Tár eram relevadas e consequentemente referendadas pelos à sua volta. Por exemplo, Eliot Kaplan, o maestro diletante e cofundador com Tár da Associação para Regentes Accordion, sabia que Krista era a única das jovens da associação que não obtivera vaga em lugar algum. Quando Tár lhe disse que pensava em abrir a associação também para rapazes porque eles já tinham provado que podiam colocar jovens mulheres regentes em várias orquestras pelo mundo, Eliot responde "sim, todas menos uma". Ao que Tár retruca: "ela tinha problemas". Eliot responde:
Então, ouvi falar. O tema é, senão inevitável, sempre latente em cada reunião do Citibank a qual seu pai (de Krista) comparece.
Lamento por isso - diz Tár.
Tudo bem. Não é coisa com a qual eu não possa lidar - pondera Eliot.
Mais preocupado em ter acesso a partituras ou a dicas de Tár sobre a regência de determinadas obras, Kaplan não se preocupou em saber quais seriam os problemas de Krista que a impediriam de ser integrada a alguma orquestra, embora fosse um tema sempre trazido pelo pai da moça quando se encontravam. Sendo cofundador e financiador da associação, não deveria ter investigado a situação em vez de enrolar a família da moça?

A filarmônica de Berlim sabia das indiscrições de Lydia

A filarmônica de Berlim também sabia que Lydia privilegiava jovens de sua simpatia. Quando ela decide transferir Sebastian, o maestro assistente, para outro lugar, por considerá-lo superado, robotizado, o músico toma coragem de dizer que ela queria trocá-lo por Francesca, assistente de Tár. Quando a maestra retruca que não sabia do que ele estava falando, o regente declara:
Ah, por favor. Apenas porque ninguém ousa dizer, não significa que não sabemos das coisas que você faz. Dos favorzinhos que concede.

Quando a segunda peça mais importante na derrocada de Tár, depois das acusações dos pais de Lydia, o artigo publicado no The New York Post acusando-a de trocar promoções profissionais por favores sexuais leva à primeira reunião do conselho diretor da orquestra, a publicitária da filarmônica informa que ainda não havia escrito ao jornal pois precisava montar uma estratégia de resposta. Que o artigo ainda não havia ganhado muita tração, sem links ou comentários, sendo melhor esperar para ver o que aconteceria. Um integrante do conselho diz a Lydia que a estavam alertando para que se preparasse, pois tinham reunião com um dos doadores da orquestra, a que ela deveria comparecer. Apesar de desconfortáveis com a situação, os membros da direção da orquestra estavam mais preocupados com os efeitos do escândalo em fermentação para o caixa da entidade do que com a possível culpa da maestra na história.

Francesca bancava a assistente pau-para-toda-obra de Lydia de olho no cargo de assistente da orquestra. Por isso, também não ajudou a amiga Krista.

Após a conversa tensa com Sebastian, Lydia comenta com Sharon sobre o acontecido e diz que não gostou do que o músico havia insinuado, que ele provavelmente já teria ido reclamar com Andris Davis, mentor do músico e de Lydia, sobre sua transferência. Sharon pondera que ela e Francesca não estavam num relacionamento, portanto não haveria muito pano para manga, mas talvez fosse o caso de esperar mais para decidir sobre o assunto. Posteriormente, conversando com Andris, Tár confirma que Sebastian tinha ido conversar com o velho regente, pois este lhe pergunta se ela estava decidida a respeito da transferência do maestro assistente e sobre quem seria seu substituto. Tár responde que provavelmente Andrew Crust que assistira o maestro Otto Tausk na Orquestra Sinfônica de Vancouver. Ao que o velho maestro acrescenta: "- Não a garota?"

Rat on Rat (Rato sobre Rato)

Embora a pergunta tenha ficado sem resposta, Tár percebeu que seria mais prudente descartar Francesca para o cargo citado, apesar de tê-la encorajado a se candidatar. Como sempre evitando conversas francas, Tár informa à assistente que, apesar da afeição que lhe tinha, a função demandava enorme responsabilidade, e ela havia decidido procurar alguém mais experiente. Francesca não diz nada, mas a expressão de seu rosto denota indignação. Posteriormente, ao perceber que não havia sido informada sobre o depoimento que deveria dar na reunião com os advogados dos Taylor, Tár se deu conta de que sua assistente se demitira sem lhe dignar uma palavra. Ao buscá-la em seu apartamento, já desocupado, a maestra resgata do chão a página de início de sua autobiografia Tár on Tár (Tár sobre Tár) com o nome original riscado e substituído pelo anagrama Rat on Rat (Rato sobre Rato).

O filme insinua que Lydia e Francesca também já haviam partilhado da mesma cama, mas a relação findara nesse nível e se tornara profissional com uma certa tensão pessoal no ar. De qualquer forma, era uma relação hierárquica, onde Francesca fazia bem mais do que assessorar Lydia em questões ligadas ao trabalho, incluindo lhe trazer comida e bebida. Francesca se mostrava irritantemente subserviente, mas, pelo visto, aturava várias coisas com vistas à promoção de sua carreira no mundo das orquestras. Ao se dar conta de que Tár a relegara na promoção ao cobiçado cargo de maestro assistente da orquestra de Berlim, abandona-a e provavelmente a retalia enviando, para os advogados dos Taylor, cópias dos e-mails de Krista e talvez também os da maestra desabonando a moça para várias orquestras.

Vale salientar que Francesca tinha plena consciência da situação da amiga Krista com a qual até se preocupava. No início do filme, ela diz a Tár que recebera outro e-mail estranho de Krista, este lhe parecendo desesperado. Pergunta como deveria responder, e Lydia diz apenas para não responder nada. Aparentemente acatou a ordem da maestra bem como pareceu acatar, após o suicídio de Krista, a ordem de apagar a correspondência da colega de seu laptop, mas não o fez. De olho no cargo de Sebastian, o que implicava não desagradar Tár, não ajudou a amiga em perigo. 

Sharon não era uma Amélia resignada e sim uma mulher que definia seu relacionamento com Tár como transacional

A mulher de Tár, Sharon, tida como outra vítima da maestra, tipo Amélia amargurada pelas traições da marida, mostra um outro lado bem diferente da simples mulher resignada ao saber do escândalo envolvendo o suicídio de Krista e o passeio com Olga em Nova York. O que a incomodara nem fora tanto a viagem com a violoncelista, mas sim o fato de Lydia não ter lhe contado o que estava se passando, por não ter vindo lhe consultar sobre a situação toda como costumava fazer. Disse ela:
Há muitas coisas que aceito em você e, no final, certamente superaria algo assim. Mas não é sobre isso que estamos falando, não é?
O diálogo entre as duas se dá com elas caminhando pelo apartamento da família. Num aparte ao próprio discurso, Sharon fala com perplexidade das acusações dos pais da garota que tinha se suicidado. E Tár lhe responde como ela podia acreditar no que estavam dizendo, que eram mentiras.

Depois Sharon traz a conversa de volta ao seu eixo principal, o que ela considerava realmente a grande traição de Tár:
Você não imagina o que senti quando entrei na minha seccional ontem e vi as pessoas cochichando sobre mim. Não tem nada a ver com o que estão lhe acusando. É simplesmente o fato de você não ter me alertado que nossa família estava em perigo.
Lydia responde que não vira o bem que a revelação traria a Sharon e o que ela poderia ter feito para melhorar as coisas. Sharon retruca de forma contundente:
Porque eu mereço isso! Estas são as regras. Você deveria ter pedido a porra do meu conselho como sempre fez. Do jeito que fez quando apareceu aqui pela primeira vez como regente convidada buscando um cargo permanente. Você perguntou qual era a política, os movimentos, por onde poderíamos ir. Claro que essas discussões tiveram lugar em outra cama. Ou melhor, no sofá daquele lugar horrível (o estúdio de Tár) do qual não abre mão.
Tár responde como era cruel da parte de Sharon definir o relacionamento delas como uma transação. E Sharon retruca:
Não existe um único relacionamento que você tenha tido que não seja transacional, exceto o que está dormindo no próximo quarto (se refere à Petra). Aparentemente, isso não lhe passou pela cabeça.

Como visto, por esses exemplos, Tár pode ter tido papel relevante na morte de Krista e em sua própria derrocada, mas contou com muitos cúmplices de seus erros. Na verdade, foi essa derrocada e a consequente perda das vantagens que trazia, por seu talento excepcional como maestra, garantidora de ascensões profissionais e doações tanto para a associação de regentes quanto para a orquestra de Berlim, que a levou à desgraça e não simplesmente os favores que prestava às moças a quem privilegiava. Se o caso do suicídio de Krista, envolvendo Lydia, pudesse ter sido abafado, bem provável que muito pouco mudasse nessa dinâmica de poder. Todos os abusadores de poder têm cúmplices. 


The End

TÁR  é um filme que deixa muitas perguntas sem respostas, como buracos que os espectadores devem preencher com suas interpretações, especulações, imaginação. Demanda mais de uma audiência só para o espectador se situar melhor na história. Para procurar entendê-lo, escrevi esta crítica que também - espero - possa ajudar os novos apreciadores dessa obra a caminhar por seus labirintos. É sem dúvida um dos melhores filmes dos últimos tempos. E conta com a interpretação magistral de Cate Blanchett como Lydia Tár que, além de ter ganhado o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza, repetiu o feito no 80º Globo de Ouro, no 28º Critics' Choice Awards e no 76º British Academy Film Awards. O filme também ganhou vários prêmios que podem ser vistos aqui.

Estranhamente não ganhou o Oscar, embora sua superioridade sobre o ganhador seja flagrante. E o desempenho de Cate Blanchett muito melhor do que o de Michelle Yeoh, a quem também aprecio. A vitória de Tudo em todo Lugar ao Mesmo Tempo, como filme, e a de Michelle Yeoh, como melhor atriz, só podem ser entendidas como concessão ao politicamente correto no viés étnico-racial. Hora de dar um Oscar para a comunidade asiática para ficar bem na fita dos portadores de virtudes. Como cinema mesmo, o Oscar deveria ter ido pelo menos para Cate Blanchett como melhor atriz. Os aficionados por sua carreira dizem que Lydia Tár é seu melhor desempenho até agora. 

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