Prisioneiras: 80% das detentas têm comportamento homossexual nos presídios brasileiros

terça-feira, 11 de julho de 2017

Drauzio Varella em seu consultório em São Paulo. 

Drauzio Varella: “O único lugar em que a mulher tem liberdade sexual é na cadeia”
Em novo livro sobre uma penitenciária feminina, oncologista discute as marcas do machismo na trajetória das presas

"A prisão é um experimento sádico da nossa sociedade”, afirma o oncologista e escritor Drauzio Varella. Mas sem ignorar a dor provocada pelo confinamento, abandono e distanciamento dos filhos e familiares, o médico vislumbra no cárcere um espaço onde mulheres conseguem se livrar, ao menos temporariamente, da repressão machista que impera do outro lado do muro. “As mulheres são reprimidas desde que nascem, não existe nenhum outro local na sociedade onde ela é livre assim como na cadeia”, afirma Varella em entrevista ao EL PAÍS. Atrás das grades da Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, convivem em harmonia diversos tipos de sapatões (homossexuais que assumem aparência masculina), entendidas (homossexuais que mantêm aparência feminina) e mulheríssimas (heterossexuais que ocasionalmente tem relações com mulheres) - os termos foram criados pelas próprias presas. A exceção são as aborteiras, que precisam ficar em celas isoladas.

O escritor relata suas experiências tratando de detentas no livro Prisioneiras(Companhia das Letras). A obra fecha uma trilogia – os outros são Carandiru e Carcereiros ambos publicados pela mesma editora - sobre sua vivência de décadas atendendo de forma voluntária presos e presas paulistas. "Cadeia é um lugar muito sensível de uma sociedade. Se você visitar uma cadeia, um pronto socorro e um estádio de futebol lotado, você consegue fazer uma ideia de como é uma sociedade", afirma.

Pergunta. Existe comportamento homossexual nos presídios femininos?

Resposta. O comportamento homossexual entre as presas é muito mais abrangente do que aparenta no início. Isso leva tempo para perceber. Porque essas relações femininas são mais sutis. Na cadeia de homens você percebe que alguns presos são notadamente homossexuais. Mesmo que não sejam travestis, são homossexuais, andam com outro homem que você sabe que é o marido dele. Na cadeia feminina não. Entre elas as relações adquirem uma outra dinâmica. Um número muito grande de presas tem comportamento homossexual, é a maioria esmagadora! Gira em torno de 80%, talvez até mais.

P. No livro você fala sobre os diferentes perfis de homossexualidade no presídio feminino. O que lhe chamou a atenção?

R. O contato com essas diferenças de sexualidade é imediato. Quando você entra numa cadeia feminina tem uns 15% de mulheres que você olha e são homens. Estas mulheres usam o cabelo bem curto, com aquelas riscas que jogador de futebol faz, elas têm trejeitos de homem. Se você faz uma observação mais cuidadosa percebe que elas não se depilam. Quando eu fui examiná-las, percebi que elas não usam calcinha, usam cueca, e tops bem apertados para esconder o seio.

Essas mulheres que têm aparência masculina são sapatões. Na rua é uma palavra pejorativa. Na cadeia não. Elas falam assim: “Sou casada com um sapatão”, com o maior respeito. As que têm o estereótipo feminino não são sapatões, já entram na categoria das entendidas. E com o tempo percebi que não se pode dividir em duas categorias, porque existem vários subtipos: o sapatão original, que já era lésbica do lado de fora, sapatão sacola, que é hetero nas ruas, mas na cadeia assume outra identidade de gênero, sapatão badarosca, sustentada pela parceira, e a chinelinho, que elas dizem que sai da cadeia e abandona o homossexualismo, calça o chinelinho de cristal e vai atrás do príncipe encantado.

P. Por que você acha que o comportamento homossexual predomina nos presídios femininos?

R. O único lugar em que a mulher tem liberdade sexual é na cadeia. Não existe nenhum outro local na sociedade onde ela é livre assim. As mulheres são reprimidas desde que nascem: a menina de dois anos de idade senta com a perna aberta e a mãe diz “fecha a perna”. Essa repressão ocorre o tempo inteiro. Comportamentos que são aceitos e naturalizados para um homem são execrados para mulheres. E no presídio, sem os homens, não existe essa repressão social. Isso faz com que elas tenham o comportamento social que desejarem ter. A homossexualidade está muito mais próxima do universo feminino do que do masculino, e o que a cadeia faz é criar condições que dão liberdade para que a mulher se comporte do jeito que ela achar melhor, sem repressão. E do outro lado você tem a solidão. Essa mulher vive praticamente sozinha, pouquíssimas recebem visitas íntimas, apenas umas 120 de um total de 2.200.

P. Nenhum comportamento sexual é malvisto na cadeia feminina?

R. Existem comportamentos sexuais que não são bem vistos, mas não são reprimidos. Elas não se diminuem de jeito nenhum por ter essa ou aquela conduta sexual. Uma sapatão original, por exemplo, não pode ficar com outra sapatão original. Elas dizem que é “pederastia”. A lógica interna delas é: se você é sapatão original você é um homem, está vendendo a imagem de um homem. Não pode “rebolar”, como elas dizem. O sapatão original nem se deixa tocar e não tira a roupa de jeito nenhum. Na hora do exame você percebe que tem um certo constrangimento, eu tenho sempre muito cuidado. Eu examino uma mulher com muito mais liberdade do que um sapatão. Eu digo “olha, vou ter que levantar a camiseta para poder te auscultar”. É algo que fui aprendendo na prática.

P. A sexualidade então é muito diferente de um presídio masculino...

R. O homossexual ou a travesti no presídio masculino não pode nada. Não pode distribuir comida, não pode brigar com outro, não pode gritar com malandro... Não pode enfrentar jamais. Na detenção morria gente quando acontecia isso. Já no feminino tudo é visto com naturalidade. “Minha mulher”, elas falam. “Sou casada com fulana”, “meu amor foi para o regime semiaberto, estou sozinha, estou triste”. E as guardas, a diretoria, todo mundo respeita, ninguém cria caso.

P. Que outras diferenças você observa entre um presídio masculino e um feminino?

R. A diferença fundamental é que essas mulheres todas têm filhos. É muito raro encontrar alguma sem filhos. O homem quando está preso pode até estar preocupado com os filhos dele - alguns nem aí, né? Mas ele sabe que tem uma mulher cuidando das crianças: uma irmã, uma tia, a mãe... Mas gravidez indesejada é problema para a mulher, não para os homens, porque eles simplesmente abandonam. A mulher vai pra cadeia e perde o controle da família. Ela sabe que as crianças vão ficar desprotegidas: as pessoas abusam de criança com a mãe presa. E os filhos muitas vezes são espalhados. Imagina três irmãos, acostumados a ficarem juntos, e quando a mãe é presa vai cada um para um lado. Imagina a dor dessas crianças. E a mulher sabe disso, sabe que quem está causando isso é ela, ela foi a responsável pela separação. Ainda que de forma involuntária, foi algo provocado pelo crime que ela cometeu.

Quer machismo mais evidente do que um cara ser preso e condenado a mais de 25 anos de cadeia, e a mulher não pode abandonar ele, tem que fazer visita íntima todo final de semana? E quando a mulher vai presa o cara simplesmente desaparece.

P. Um número grande de mulheres foi presa por tráfico de drogas. Como se aproximam desse universo?

R. Muitas vezes o crime foi a forma de sobrevivência que ela encontrou. Não quer dizer que ela tenha a mentalidade perversa. Ela começou a traficar droga, usava um pouco, conhecia os traficantes... Na periferia o traficante muitas vezes é o seu colega de classe, você brincava com ele no recreio. E de repente ele está no crime. Aí num aperto ou até por vontade de melhorar de vida, a mulher tem ali a pessoa que oferece uma oportunidade de trabalho que ela não teria de outra forma. Sem ter que passar por aquela condição sofrida, com um esforço enorme de deslocamento para ir trabalhar, horas e horas todo dia por um salário ruim. E uma vez que elas começam a ganhar dinheiro traficando, esquece.

P. A população carcerária no Brasil não para de crescer. Estamos enxugando gelo?

R. Como a sociedade age? É preciso ter alguma repressão ao crime. Senão vira uma tragédia social, ninguém sai de casa. Só que precisamos estar conscientes de que a repressão não reduz a criminalidade. É uma guerra perdida. Nos anos 90 tínhamos 90.000 presos no Brasil. Agora temos 675.000. Aumentou 700%. E a criminalidade não caiu, a insegurança é cada vez maior. Então aprisionar não reduz a criminalidade.

É preciso que a sociedade reflita: estamos prendendo pessoas que têm que ser presas? Crimes que não são violentos devem ser punidos com prisão? Isso custa caro, não só a manutenção de um preso lá dentro, mas o fato de que ele vai sair pior. Não é à toa que eles chamam cadeia de faculdade do crime. O cara sai de lá articulado, conhecendo muita gente. A cadeia congrega.

P. Se prender não é a solução, como se resolve esse problema?

R. Quer atacar o problema da violência? Tem que ir lá atrás. Três condições aumentam o risco de violência. Por que ela se dissemina nas classes mais pobres? Porque lá estão os fatores de risco. São as crianças que sofreram abuso na infância ou tiveram uma infância abandonada. Que na adolescência não tiveram imposição de limites ou conviveram com outros mais violentos. É a condição de milhões de brasileiros. É de estranhar que não tenhamos mais gente ainda envolvida com o crime.

P. Por que aumentou o número de mulheres presas?

R. São muitos fatores. Primeiro há uma liberdade maior para a mulher. Antes ela ficava trancada em casa. Só que esses direitos que as mulheres conquistaram não foram distribuídos igualmente. Nas classes mais pobres a situação melhorou, mas elas não se beneficiaram tanto dessa evolução econômica e social. Elas ainda vivem numa sociedade profundamente machista. E isso se reflete na iniciação sexual precoce e na gravidez na adolescência. A menina que tem filho aos 14 anos faz o que? Para de estudar. 75% delas param, porque não tem com quem deixar a criança. E ao parar de estudar ela comprometeu o futuro dela e da criança também.

P. Como as presas lidam com quem fez aborto?

R. Elas reprimem as que fazem aborto. Não podem conviver, são expulsas, vão para o seguro [ala da prisão destinada a estupradores e jurados de morte]. É malvisto quase como um estuprador no presídio masculino, mas com um pouco mais de tolerância, porque elas não matam a que fez aborto. Elas dizem que quem pratica aborto “mata criancinhas”.

P. Quais os maiores problemas de saúde das presas?

R. O problema básico delas é a obesidade. Porque lá elas são sedentárias e tem uma dieta rica em carboidratos. Elas ganham peso e ficam hipertensas e diabéticas. Isso é muito comum, assim como a dor nas costas e problemas ortopédicos provocados pelo excesso de peso.

E elas também têm doenças pulmonares relacionadas ao cigarro. Muitas começaram a fumar com 10 anos. Essas têm os lábios azulados e os olhos cheios de vasinhos de sangue. Quando elas entram para o exame eu tenho uma técnica de aterrorizar mesmo. Eu digo “olha, morte por enfisema não desejo pro meu pior inimigo. Olha bem nos meus olhos. Sou médico, não tenho interesse nenhum em você morrer ou ficar viva, não faz diferença nenhuma na minha vida, mas eu tenho obrigação de dizer o que vai acontecer”. Elas ficam muito assustadas, mas nem todas param.

P. Qual a vantagem para um preso de ser do Primeiro Comando da Capital(PCC)?

R. O PCC é uma ideologia. Muito mais do que uma organização criminosa. Eles se impuseram primeiro com a violência, mas só isso não basta, então desenvolveram uma ideologia. Qual a justificativa? Primeiro, acabar com a repressão no sistema. E segundo, vingar a morte dos 111 do Massacre do Carandiru. O PCC é consequência direta do massacre, isso está no estatuto deles. Extorsão das famílias e roubos das coisas que elas traziam para os presos eram comuns. Aí o PCC fala: “nosso problema é se defender do sistema”. Qual a vantagem de ser do PCC? Você tem a segurança dos irmãos[nome dado aos integrantes] em todo o país. No presídio e na rua. E ninguém mais morre na cadeia. Todo mundo diz que o maior sonho de quem está preso é a liberdade. Não é. É se manter vivo. E o PCC garante isso. As famílias do preso recebem cesta básica todo mês... Em compensação, você obedece ordens. Se mandarem matar, você mata.

P. E o papel das mulheres no PCC?

R. Elas não pagam mensalidade sob a justificativa de que elas são mães, que têm criança para cuidar. Os homens do PCC pagam 600 reais. Quando elas são presas, as famílias têm o mesmo direito a uma cesta básica. Se elas são casadas com alguém do PCC, são chamadas de cunhadas. As do PCC são as irmãs. Cunhadas e irmãs são respeitadíssimas. Elas têm autoridade no presídio, mas recebem ordens de fora, da torre geral [apelido dado à cúpula da organização]. As mulheres ocupam o degrau inferior, a base do PCC. Uma ou outra que se destaca pode fazer parte da torre. Mas o comando é dos homens, é uma organização totalmente machista.

P. É possível que surja uma facção só das mulheres?

R. Não, acho difícil. Porque se existisse iria competir com o PCC, e isso é impossível. Eles são muito violentos com concorrentes e com quem vai contra eles.

P. Quem é mais cruel no presídio, homens ou mulheres?

R. Acho que os homens são mais violentos do que as mulheres. A violência da mulher é de outro tipo, não é tanto física, é mais uma tortura psicológica. As histórias que eu escuto das presas antigas são assustadoras. Chegava uma menina bonitinha na cadeia, a sapatão olha e a mulher dela ficava com ciúmes. Aí metia uma gilete na cara da novata. Eu conheço várias mulheres mais velhas, com 50 anos, com cicatriz no rosto. O diretor da cadeia, Maurício Guarnieri, diz que “o homem quando tem um problema com o outro vai lá e mata. A mulher quer ver sofrer”.

P. O estupro é aceito na cadeia feminina?

R. Hoje não existe mais. Tinha estupro antigamente, uma mulher mais forte obrigava a outra a fazer sexo com ela, apesar do estupro sempre ter sido reprimido na cadeia feminina. É curioso. O homem não aceita o estupro, muito embora o faça. [...] O cara mata um pai de família, comete um latrocínio, e é bem visto na prisão. Estuprador morre. As maiores barbaridades que eu vi na cadeia foram contra estupradores. É inesquecível, nos momentos mais inesperados, volta a imagem daqueles corpos mutilados.

P. A situação dos presídios de São Paulo é péssima. Porque não temos mais rebeliões?

R. Existem dois lados desta questão. São Paulo desenvolveu um sistema de administração penitenciária muito competente, que envolve os funcionários, carcereiros e a administração. Existe um setor de inteligência que fica interceptando chamadas telefônicas, juntando pedaços de um quebra cabeça. E tentam se antecipar: “esse cara está levando informação pra lá, vamos transferir”. É um jogo de gato e rato.

Por outro lado, rebelião atrapalha muito os negócios do crime. Existe um interesse do PCC. Já ouviu falar de fuga em São Paulo? Há muito tempo não se fala de fuga. Em nenhuma cadeia do mundo você tem isso. O próprio PCC sabe que não pode bater de frente, já fizeram isso no passado. Mas ir para o enfrentamento causa problemas que repercutem aqui fora. O PCC amadureceu muito com os anos, surgiu com uma violência absurda, mas foi se moderando.

P. O PCC tirou o pé da luta contra o Estado que apregoavam no estatuto?

R. Eles viram que não dava certo para eles, né? Veja quantos morreram em maio de 2006 [naquele mês a facção desencadeou ataques contra agentes de segurança pública, seguidos por uma retaliação de grupos de extermínio]. Você acha que mataram filho de investigador e não morreu ninguém da família de membros do PCC? Fizeram esse tipo de ação em outros Estados, em São Paulo de jeito nenhum. Existe um interesse econômico muito grande. Eles faturam 500 milhões por ano. Imagina. Sem imposto. Que empresa fatura isso?

P. Como retratar as presas de forma a não vitimizá-las nem retratá-las como monstros?

R. É uma coisa meio natural, que eu faço desde o Carandiru. Pensei muito nisso ao escrever o Carandiru. Não gosto de ler livros quando percebo uma intenção oculta do autor. É lógico que toda história passa pelo filtro de quem escreve, mas não posso tomar partido enquanto estou escrevendo. Eu tento contar a história como um narrador que está vendo de fora. Ninguém é vítima. Elas entraram por esse caminho do crime por alguma lógica delas. E independentemente do que fizeram, elas não perdem sua condição humana.

P. O que mais te comoveu em todos esses anos de trabalhos nos presídios?

R. Acho que as cenas que mais me tocam são as cenas de estupro. No Brasil 100% das mulheres sofreram algum tipo de abuso sexual. É um cara que põe a mão na perna, fala um absurdo, aproveita o aperto do ônibus... E isso independe de classe social. Mas é lógico que é pior nas classes sociais mais baixas. E grande parte dos estupros são cometidos por familiares. É o avô, padrasto, vizinho, namorado da mãe... Estupram crianças de seis anos. Imagina que futuro, o que pode acontecer com uma criança que passou por uma coisa dessas... Essas histórias são tão comuns...

P. Toda essa convivência com presos fez de você alguém melhor?

R. Melhor não sei, acho que mais interessante (risos). Porque você não passa por uma experiência dessas incólume. Isso te molda. Penso que se eu não tivesse essa experiência toda eu não teria a visão social que eu tenho. Cadeia é um lugar muito sensível de uma sociedade. Se você visitar uma cadeia, um pronto socorro e um estádio de futebol lotado, você consegue fazer uma ideia de como é uma sociedade. Confinar pessoas em cadeias é um experimento sádico. Como as pessoas se comportam nessa situação? Que regras se estabelecem? Os primatas se organizam.
Fonte: El País, Gil Alessi, Marina Ross, 09/07/2017

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