Atriz que faz Vanessa na novela "Em Família" diz querer que todas as Vanessas possam passear com as namoradas e beijá-las quando e onde bem entenderem

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Maria Eduarda Carvalho, a Vanessa de Em Família
Por Maria Eduarda Carvalho

“Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária”, vaticinou Clarice Lispector. Sou da época das festas americanas em que os meninos levavam salgado, as meninas levavam doce, e eu dançava com a vassoura. Sempre. Em 1990, o ruivo não era o “novo loiro”, e tudo o que eu queria era ser mais uma na multidão. Aos 13 anos, descobri no Tablado, através do olhar precioso de Cacá Mourthé, que ser diferente tinha o seu valor. Mas no meio do caminho da menina atriz tinha uma adolescência, e esta chegou implacável. Superei a puberdade, as espinhas e a timidez. Então o jogo virou: primeiro namorado (amém!), cineminha. Que emoção. Minutos antes de o filme começar, o rapaz improvisa: “Você tem uma beleza tão — coração disparado — bizarra.” Oi?! Será que ele queria ter dito exótica? A dúvida permanece. O namoro não engrenou, porém peguei ritmo. É ridículo, mas confesso que, em algum momento da vida, acreditei verdadeiramente fazer parte de uma minoria segregada. A minoria ruiva.

Quase 20 anos depois, recebo o tão sonhado convite para participar de uma novela do Maneco. Vanessa, minha personagem, entre muitas outras coisas, é gay, e cada comentário preconceituoso que escuto sobre sua sexualidade me dá a certeza de que não tenho a menor ideia do que é ser, de fato, segregado. Por conta da personagem, as perguntas em torno do tema multiplicam-se: o que achei do beijo gay, se eu beijaria outra mulher em cena, ou se já fui cantada por mulheres são indagações frequentes. Não sou socióloga formada pela USP, jamais serei chamada para opinar sobre a “cura gay” no “Jornal das Dez”, mas como atriz me posiciono.

Acho curioso o fato de ninguém ser preconceituoso no Brasil. Aqui? Não existe preconceito! Somos um povo amigo. Ninguém é de ninguém e todo mundo é de todo mundo, no carnaval. Viva a liberdade sexual! Agora, vai um filho seu te contar que gosta de homem. Ou sua filha te dizer que é lésbica... É aí que perdemos o rebolado e fazemos lembrar o Irã. “Imagine, comparar o Brasil a um país que apedreja até a morte uma mulher que cometeu adultério. A ruiva é polêmica. Esse povo sardento. Tá falando o quê, gringa? Volta pra Irlanda!”

Somos hipócritas. Recentemente, durante a euforia momesca da cidade maravilhosa, duas meninas foram espancadas na saída de um bloco, no Centro. Estavam de mãos dadas. Enquanto uma delas era chutada e tinha parte das roupas arrancadas, a outra gritava por socorro, porém, ninguém intercedeu por elas. Nas palavras de Vanessa de Holanda, uma das moças agredidas: “(…) Tinha gente, muita. Tinha segurança, sim. Era um lugar iluminado (…) Mas eu não vou à polícia. Não vou porque eles também não se importam (…) Ontem à noite eu me senti minoria. E que ninguém além dos meus pode ser comigo. Nós estamos sós. Não dói.”

Não importa se a minha Vanessa vai ou não beijar outra mulher na novela, mas sim o direito da verdadeira Vanessa de passear com sua namorada, e poder beijá-la quando bem entender, na sagrada liberdade do carnaval ou em qualquer época do ano.

Fonte: O Globo, 30/03/04

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