A vida de gays e lésbicas na velhice

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Naiara (E): "As pessoas se torcem para olhar. 'Onde já se viu
 duas velhas sapatonas no meio da rua?'"Andréa Graiz / Agencia RBS

A velhice entre iguais: como é a vida de gays e lésbicas depois dos 60 anos
A rotina na terceira idade inclui a paixão e, também, o sexo. Mas, para os homossexuais, pode haver particularidades. GaúchaZH ouviu idosos sobre seus afetos e suas relações

Elas simulam o primeiro beijo até hoje: se há algum desentendimento, um selinho que depois passa para um toque de lábios mais demorado, quando uma não deixa a outra se afastar, tem o poder de lembrá-las da fortaleza do relacionamento de mais de três décadas e, ao mesmo tempo, do frescor de que esse amor ainda desfruta. 

A comerciária aposentada Mary Saupe Malavolta, 66 anos, com os cabelos grisalhos que nunca quis pintar, já está plenamente instalada na terceira idade, grupo formado pelos indivíduos a partir dos 60. Falar de envelhecimento é comum para uma população que está se tornando cada vez mais longeva, mas a velhice dos homossexuais ainda é tabu até mesmo entre o público LGBT. Desafios como a deterioração da forma física e da saúde, a necessidade de amparo, a solidão e a falta de políticas públicas específicas podem dar tons mais dramáticos às vivências desse grupo, nativo de um tempo em que as relações entre pessoas do mesmo sexo eram reprovadas com muito mais veemência.

Mary e a companheira, a servidora pública federal aposentada Ana Naiara Malavolta Saupe – uma adotou o sobrenome da outra –, 51, estão juntas há 33 anos. Enfrentaram caras feias e grosserias no começo, namoraram escondidas, tiveram suas próprias barreiras a superar, como qualquer par, mas jamais passaram por uma situação que provocasse um rompimento. São reconhecidas como um casal não apenas nas rodas por onde circulam e pelos vizinhos, mas também quando são somente duas anônimas na multidão: andam de mãos dadas, abraçam-se na parada de ônibus, afagam-se quando sentadas lado a lado. A tolerância com a diversidade deveria ter aumentado muito em todo esse período, mas elas ainda chocam.
Sai comigo e com a Mary na rua um dia. As pessoas se torcem para olhar. "Onde já se viu duas velhas sapatonas no meio da rua?" — relata Naiara.
Alguns querem tirar a prova e as questionam se são mãe e filha, dando abertura para a resposta natural:
Não, ela é minha esposa. 
Andréa Graiz / Agencia RBS

A sensibilidade do tema e o forte preconceito ainda vigente ficaram evidentes nas dezenas de tentativas de Zero Hora para convencer idosos homossexuais a contarem suas histórias. A reportagem carecia de voluntários dispostos a falar abertamente, sem se proteger por trás de nomes fictícios ou letras iniciais, e a se deixarem fotografar. Possíveis entrevistados, quando contatados, sentiram-se até ofendidos. Alguns toparam conversar, narrar suas rotinas – a prática de frequentar saunas para socializar e se satisfazer sexualmente, os encontros clandestinos, a dificuldade de arranjar parceiros devido à idade –, mas apenas como desabafo, sem cogitar jamais que as confidências viessem a público. Muitos saudaram a ideia de ver o tema no jornal como um meio de conscientizar os leitores e dissolver preconceitos, mas se desculparam por não terem interesse ou coragem de encarar a repercussão. Um conhecido senhor de mais de 80 anos alegou que uma tia sabia de sua orientação, mas jamais suportaria passar pela exposição do sobrinho.
Se já é difícil ser gay no dia a dia, imagine quando todos os vizinhos e parentes enxergarem minha foto estampada no jornal falando sobre minha homossexualidade — alegou outro dos personagens sondados para dar um depoimento.
Não é questão de se esconder, de ser enrustido, o que não sou, mas expor minha vida em jornal não faz minha cabeça — desculpou-se um terceiro, de 68 anos. — Somos pessoas que pertencem a uma geração muito reprimida. Na época de juventude, éramos vistos como coisa demoníaca, um pecado, um insulto a Deus, uma aberração. Fomos achatados por uma cultura religiosa, educacional e familiar, o que é bem diferente da gurizada de hoje, muito mais livre, solta, natural nos seus gestos e atitudes, que teve pais que não a sufocou com conceitos retrógrados e pobres.
Mary, 66 anos, e Naiara, 51, moradoras de Viamão, estão juntas
há mais de três décadas Andréa Graiz / Agencia RBS

Quando pequena, como quase toda menina, Mary brincava com bonecas. Com uma diferença fundamental nos papéis atribuídos a ela e aos brinquedos: o contexto não era de mamãe e filhinhas, mas de namoradas que se beijavam. As duras reprimendas da mãe eram acompanhadas de palmadas na bunda e beliscões nos braços. Mary se sabia diferente, mas levou muito tempo até descobrir o que era. Seguiram-se amores platônicos pela professora e por uma menina da escola, além de tentativas de casinhos com meninos – por pressão de familiares e amigos –, cujos beijos lhe provocavam repulsa. 
Eu não tinha a quem recorrer, organizações que pudessem acolher ou tirar dúvidas. A homossexualidade era considerada anormal. Eu nem conhecia a palavra lésbica. Conhecia a palavra que a minha mãe usava: machorra — recorda a comerciária, durante uma manhã de agosto em que conversou com a reportagem, na companhia de Naiara, diante do fogão a lenha de casa, em Viamão. 
A primeira relação com uma mulher aconteceria apenas por volta dos 30 anos. Mary virou motivo de chacota e, ao mesmo tempo, um troféu a ser conquistado: naquela idade, ainda era uma "princesinha", virgem, disputada por garotas que queriam lhe ensinar as artimanhas da transa entre iguais. Em um período de muito sofrimento, Mary era cobrada para que se assumisse. À época, os termos "coturno" ou "sapatilha" designavam os papéis masculino e feminino na relação. 

Um episódio traumático traria uma certeza. Lateral-direita de boa técnica e condicionamento físico, Mary disputava um campeonato feminino de futebol no Litoral quando deu um chute forte que atingiu em cheio a coxa de uma jogadora. A atleta se queixou, começaram as reclamações, um burburinho, "manda embora essa sapatão!", "não pode!", "é homem!". De repente, a fúria da quadra incendiou a plateia ao redor.
Sapatão! Machorra! — urrava quase uma centena de torcedores. 
As crianças olhavam para Mary como se mirassem um ET. Ela segurou o choro. Amigos a incentivaram a "ficar surda" para a balbúrdia. O jogo recomeçou, a lateral marcou incríveis 10 gols e deu mais quatro ou cinco boladas nas adversárias. Seu time ganhou. 
Aquilo me fortaleceu em algumas convicções. Saí arrasada, cara, mas sem nenhuma dúvida do que eu era — recorda.
Naiara estava na turma que deu força a Mary na partida. Apesar do fracasso da abordagem inicial, anos antes, na boate Vitreaux, quando Mary aproveitou a trilha sonora para revelar suas intenções em relação à jovem atraente, bem mais moça do que ela, cantando Deixa Eu te Amar, de Wando ("Quero te pegar no colo/ Te deitar no solo e te fazer mulher"), ambas já haviam entrado uma na vida da outra para não mais sair.

Duplo estigma

Envelhecer, para a população homossexual, pode ser mais pesado devido a um duplo estigma: além dos muitos enfrentamentos que homens e mulheres têm no espaço social, eles ainda sofrem com a rejeição dentro do grupo. Ou seja, gays e lésbicas idosos, frequentemente, são desprezados ou ignorados por seus pares mais jovens. O sociólogo Murilo Peixoto da Mota, do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas de Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), descreve um movimento comum de recuo, protetivo, na idade avançada. 
 O homem que, ao longo da vida, lutou para se autoafirmar como homossexual, quando consegue tornar isso público, depara com o seu envelhecimento. Então, muitos voltam para o armário depois de terem lutado para sair do armário — explica o autor de Ao Sair do Armário, Entrei na Velhice... Homossexualidade Masculina e o Curso da Vida.
Mota percebeu resistência ao assunto inclusive em suas pesquisas:
 É um tema do gueto na academia. A academia olha de lado: que importância tem estudar gay velho?
Outros marcadores podem tornar a experiência do envelhecimento ainda mais dolorosa. Carlos Eduardo Henning, antropólogo, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador na área da gerontologia LGBT, cita, além da homossexualidade e da velhice como geradores de preconceito, a raça e a classe social. A experiência varia em graus de dificuldade para gays e lésbicas idosos de classes altas ou baixas e para os negros, por exemplo. 

Henning encontrou as primeiras publicações sobre o envelhecimento LGBT datadas da década de 1960, apresentando um cenário sombrio, sobretudo para os homens, solitários e excluídos dos espaços de socialização, tomados pela mocidade. Era como se os gays idosos não existissem. Decorrido mais de meio século, houve avanços. Hoje, relata o pesquisador, a representatividade é um pouco mais ampla, graças à atuação de militantes e à inserção do tema no enredo de filmes, séries e novelas – Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg provocaram polêmica ao se beijarem no primeiro capítulo de Babilônia, trama exibida em 2015 pela Globo (RBS TV). Para Henning, agora é possível, graças a exemplos positivos, vislumbrar um futuro para os homossexuais. 
Algumas pesquisas mostram que, para você se conceber como velho, não teria como se conceber como gay. Quando as pessoas não veem modelos bem-sucedidos de velhice, não conseguem conceber o que é isso, vira um vácuo de representação. Esse traço de imediatismo era muito presente há 10 anos. Muitos diziam: "Estou vivendo o momento, não vou chegar à velhice, não quero envelhecer". Agora a gente está vendo que a velhice é um projeto possível. A juventude de hoje começa a pensar que um futuro como velho LGBT é algo bem distinto de antigamente. Muitos entrevistados me disseram: "Eu nunca me imaginei chegando até aqui" — conta Henning, também pesquisador do Ser-Tão – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade, ligado à UFG.
Apesar da militância pelas causas lésbica e feminista, Mary tinha até anos atrás uma trava que a levou a buscar apoio psicológico: fugia das demonstrações públicas de carinho. Naiara, também ativista, cobrava:
 Estou aí falando de liberdade e a gente não consegue sair de mãos dadas. Como assim?
As sessões, durante um ano e meio, provaram-se libertadoras.
 Me reafirmei como lésbica. Não tenho que ter medo de expressar a minha sexualidade, e é um direito que tenho o de ser respeitada por isso. Comecei a dar entrevista, sair de mão dada com ela, abraçá-la... Chamo ela de "mor" em qualquer lugar agora — orgulha-se Mary.
A visibilidade, garantem as duas, é protetora, empodera. A vergonha e o medo, por outro lado, dão brecha para agressões e chacotas. Se ouve algum comentário depreciativo ou piada de mau gosto, Mary encara: 
Qual é o problema que o senhor tem com isso? No que posso ajudá-lo? Tem alguma dúvida? Quer saber alguma coisa? Porque eu sou lésbica!
Tanta segurança também impulsiona Mary a intervir em defesa de outras mulheres. Em mais de uma ocasião, flagrou homens forçando proximidade com jovens em ônibus lotados. Furiosa, chamou a atenção das vítimas, que, muitas vezes, entretidas com os celulares, nem perceberam o que estava se passando.
 Por favor, senta aqui no meu lugar, menina — pediu Mary certa vez. — Senta aqui que eu quero ver se vão se esfregar em mim como estão se esfregando em ti! — falou, alto, atraindo a atenção dos demais passageiros.
Ao trocar de posição, encarou o abusador, indicando com as mãos o seu próprio corpo:
Tá, meu querido, vai ou não vai? Não gostou do material? Vamo lá!
Começou uma movimentação no coletivo, outros usuários se oferecendo para atirar o sujeito pela janela, Mary dispensando a ajuda e alegando estar no comando da situação. Na parada seguinte, o agressor desembarcou.
 Não aguento mais esse tipo de coisa — revolta-se ela.
No exercício de uma intimidade tão duradoura, Mary e Naiara observam em detalhes as mudanças em seus corpos. Mary sentiu a diminuição da libido na menopausa. No toque e no beijo, sua falta de vontade para o sexo já era percebida pela parceira, o que nunca foi motivo de atrito, graças a muita conversa. A comerciária diz não se constranger por estar 15 anos à frente. Questionada sobre o que a incomoda defronte ao espelho, tem dificuldade em encontrar a resposta. Pensa e responde: as varizes. No geral, a diminuição da força e do vigor. Para Naiara, a atração continua intacta. 
Adoro o barrigão dela! — diverte-se a servidora pública aposentada, provocando uma gargalhada geral. — (O envelhecimento dela) não afeta minha libido, de jeito nenhum. As pessoas são condicionadas a achar que tem a ver com a estética. Não tem! Tem a ver com o cheiro, a química, a intimidade. Adoro o cheiro dela. A cumplicidade que a gente tem... Somos duas mulheres, não há entendimento melhor do que esse. Ela sabe que sou apaixonada por ela.
Mary retribui:
 Nós tiramos na loteria quando nos encontramos.
A residência do bairro São Lucas está à venda. O plano, antigo, é uma mudança para a Bahia – o pai de Mary, de 87 anos, vai junto. É hora de aproveitar a vida, justificam elas. Pretendem também organizar uma espécie de comunidade, cercando-se de pessoas que possam cuidar umas das outras conforme a idade aumenta.
Morrer é da vida, né? A probabilidade é de que eu vá antes — comenta Mary, explicando que esse tema não é proibido nas conversas. 
Quero mais 33 anos do ladinho dela — deseja Naiara.
Fonte: GauchaZH, 07/09/2018

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